"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2019

Jurisprudência 2018 (165)


Pessoa moral de direito canónico;
competência absoluta; consequências*


1. O sumário de RC 16/10/2018 (4680/08.0TBLRA.C2) é o seguinte:

I – Independentemente do quadro jurídico vigente à data dos factos – o CDC de 1917 – não consentir que se operasse qualquer distinção substantiva entre associações públicas ou privadas, o facto de a referida A. ter sido canonicamente erecta em 2 de Março de 1959 pelo então Bispo de ..., ainda que acedendo a uma solicitação privada, conferiu-lhe irrecusavelmente, não só o reconhecimento da ordem jurídica canónica como pessoa de direito canónico (como “pessoa moral” de direito canónico), mas a natureza de uma entidade pública de direito canónico, diante do quadro legal instituído pela mesma ordem canónica vigente. 

II - Temos assim como adquirido que a A. PIA UNIÃO nasceu como uma associação pública de fiéis e, por via disso, deverá ser tratada como uma Associação Pública de Fiéis, agora no âmbito do actual CDC, estando por isso especificamente sujeita aos cânones 312 a 320 desse tipo de associações, para além de se lhe aplicarem as normas comuns dos cânones 298 a 311 do mesmo Código.

III - Independentemente da opção que se tome sobre a natureza da A. PIA UNIÃO como associação pública ouprivada – dicotomia inelutável à luz do Código de Direito Canónico de 1983 que não pode deixar de atravessar todas as entidade e associações criadas após a cessação da vigência do Código de 1917 –, certo é que sempre ela participará da característica essencial de uma entidade ou pessoa de direito canónico, por isso se submetendo inteiramente a essa específica ordenação jurídica em tudo quanto diga respeito à sua estrutura, organização e modo de funcionamento.

IV - Por conseguinte, não tinha o tribunal
a quo – como não tem a Relação – fundamento para se pronunciar sobre uma relação de direito canónico como é aquela que se estabelece entre uma pessoa de direito canónico como é a 1ª A. e a autoridade eclesiástica corporizada no Bispo de ... 

Com esse alcance, o dito pronunciamento seria mesmo indiscutivelmente violador da regra da separação jurisdicional consagrada no art.º 11 da Concordata em vigor.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão da nulidade/invalidade dos Decretos Bispais do Bispo de ... de 15 de Julho de 2008 e 13 de Julho de 2009 e respectivas consequências na actividade da A. Pia União.

Independentemente da opção que se tome sobre a natureza da A. PIA UNIÃO como associação pública ou privada – dicotomia inelutável à luz do Código de Direito Canónico de 1983 que não pode deixar de atravessar todas as entidade e associações criadas após a cessação da vigência do Código de 17 – certo é que sempre ela participará da característica essencial de uma entidade ou pessoa de direito canónico, por isso se submetendo inteiramente a essa específica ordenação jurídica em tudo quanto diga respeito à sua estrutura, organização e modo de funcionamento.

Como se ponderou no Ac. desta Relação de 23/06/2015 proferido na Apelação nº 2153/06.5TBCBR.C1, há um quadro normativo próprio que não permite pensar numa solução para o problema da representação da A. PIA UNIÃO fora do âmbito do direito canónico e, por via dele, da autoridade canónica competente.

Aí se escreveu a propósito de tal quadro normativo:

“O CDC regula a disciplina das Associações de Fiéis nos Cânones 298 e seg.s, ali se distinguindo entre associações privadas e públicas de fiéis; porém, todas elas, sejam públicas ou privadas, devem ter por finalidade a missão sobrenatural da Igreja, e ainda que louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, se chamam associações privadas (Cânones 298 e 299) ou públicas (estas a seguir explicitadas) – cf. Código de Direito Canónico, Edição Anotada da Universidad de Navarra Instituto Martin De Azpilcueta, Tradução Portuguesa a cargo de José A. Marques, Edições Theologica, Braga, 1984, a pág. 237, por contraponto às públicas que são erigidas pela autoridade eclesiástica competente. De acordo com o Cânone 301 (Cf. autores e ob. ora cit., a pág.s 238 e 239) entende-se por “associação pública aquela que foi erigida por acto formal da autoridade eclesiástica competente, ainda que talvez, na sua origem, a associação provenha da iniciativa privada dos fiéis. Sobre o alcance da qualificação de pública, o c. 116 Parágrafo 1.º, precisa que a pessoa jurídica dotada deste carácter actua em nome da Igreja dentro do âmbito para o qual foi instituída, acrescentando-se que só a autoridade competente pode erigir associações de fiéis para fins que, pela sua natureza, estejam reservados à hierarquia eclesiástica, o que implica que a associação assim erigida se deverá manter dentro dos limites para os quais foi constituída.

Todavia, independentemente da sua qualificação como pública ou privada, toda a associação de fiéis está sujeita à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar, como decorre do cânone 305.

As públicas devem obedecer ao estatuído nos cânones 312 a 320, designadamente, são erectas pela autoridade eclesiástica competente, tendo em vista a prossecução dos fins que se propõem realizar, carecendo os seus estatutos de aprovação da autoridade eclesiástica a quem compete a respectiva erecção, administrando os bens que possui em conformidade com os estatutos sob a superior direcção da autoridade eclesiástica respectiva, a quem devem prestar contas anualmente.

Assume especial relevância para o caso em apreço o disposto no cânone 318, Parágrafo 1.º, segundo o qual:

“Em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a autoridade eclesiástica referida no cân. 312 P. 1.º pode designar um comissário que em seu nome dirija temporariamente a associação.”.

Como se refere no CDC anotado já anteriormente citado, pág.s 247 e 248 “A nomeação de um comissário poderá ter lugar quando as circunstâncias aconselhem que a autoridade competente não só exercite a alta direcção (c. 315), mas que também assuma temporariamente o regime da associação, procurando ao mesmo tempo que cessem quanto antes os motivos que dão lugar a essa intervenção extraordinária.”.

Por seu turno, o regime das associações privadas encontra-se tipificado nos cânones 321 a 326, de onde resulta, no que aqui importa, que as mesmas são governadas pelos fiéis segundo as prescrições dos estatutos, com a ressalva de que se encontram sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, nos termos do cânone 305, acima já referidos.

Por último, de acordo com o cânone 325, confere-se às associações privadas o direito de administrarem livremente os bens que possuem, de acordo com as prescrições dos estatutos e sem prejuízo de a autoridade eclesiástica competente vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação.

De ater ainda ao disposto nas Normas Gerais das Associações de Fiéis, designadamente, nos seus artigos 7.º e 23.º, de acordo com os quais, todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar e que possibilita a este, em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a nomeação de um comissário que em seu nome dirige temporariamente a associação”.


Concordando com esta interpretação do regime de vigilância/intervenção da autoridade eclesiástica competente no sentido de que ele se também se estende às associações privadas de fiéis, indo ao ponto de ter como legítima a nomeação no respectivo âmbito de comissários temporários, verificada que seja a presença de uma razão grave, não está esta Relação – como não está nenhum outro tribunal não eclesiástico – legitimada a declarar a validade ou invalidade dos Decretos Bispais que, invocando precisamente o grave condicionalismo aludido na lei, nomearam os mencionados comissários para a 1ª A..

Há, portanto, um particular e grave condicionalismo para a intervenção do Ordinário nas associações de fiéis com reconhecimento canónico – no caso, foi a 1ª A. canonicamente erecta na vigência do anterior CDC – mesmo quando se trata da gestão e funcionamento de uma associação privada de fiéis.

Ora é esse particular condicionalismo que surge na motivação do primeiro dos Decretos Bispais agora atacado. 

É que, na verdade, para além da invocação do governo corrente privado, também não há quaisquer normas de direito estadual civil que sejam questionadas pelos Decretos Bispais cuja declaração de nulidade vem pedida.

Para as Autoras, a nulidade em apreço assentaria num suposto desrespeito das regras de organização, estrutura, gestão e funcionamento de uma pessoa de direito canónico – para as Autoras constituída em associação privada defiéis, para nós integrando uma verdadeira associação pública de fiéis – segundo o regime e a disciplina previstos no Código de Direito Canónico.

Ou seja, as regras cuja infracção poderia ditar a nulidade dos Decretos Bispais pertencem exclusivamente à ordem jurídica canónica.

Por conseguinte, não tinha o tribunal a quo – como não tem a Relação – fundamento para se pronunciar sobre uma relação de direito canónico como é aquela que se estabelece entre uma pessoa de direito canónico como é a 1ª A. e a autoridade eclesiástica corporizada no Bispo de ... 

Com esse alcance, o dito pronunciamento seria mesmo indiscutivelmente violador da regra da separação jurisdicional consagrada no art.º 11 da Concordata em vigor.

Sem afrontar o acórdão que anteriormente tomou partido pela competência dos tribunais estaduais para a presente causa, temos para nós que um hipotético pronunciamento visando aquilatar da validade ou invalidade de um acto com tal cunho ou origem representaria uma inaceitável intromissão na esfera que está reservada a essa autoridade e aos meios e formas de impugnação previstos pela ordem jurídica canónica."

*3. [Comentário] a) O acórdão levanta duas questões nada despiciendas. 

A primeira é a seguinte: de acordo com o que consta do relatório e como é aludido na fundamentação, "por acórdão desta Relação de 31 de Maio de 2011 foi o despacho saneador revogado e, em função disso, declarada a competência dos Tribunais Estaduais Judiciais para a apreciação do litígio.". Quer dizer (segundo se pode depreender): no mesmo processo, há uma decisão que considera que os tribunais judiciais são competentes para apreciar o litígio. Por esta razão, tendo essa decisão força de caso julgado formal (art. 620.º, n.º 1, CPC), não podia o presente acórdão considerar que os tribunais judiciais não têm competência judicial para se pronunciarem sobre o litígio. Ao fazê-lo, o acórdão é, nessa parte, ineficaz (art. 625.º, n.º 2, CPC). 

A segunda questão é a seguinte: o acórdão termina, de forma algo surpreendente, afirmando que "em suma, conhecendo embora do objecto do recurso, mas constatando que esta Relação não pode declarar a nulidade dos actos da referida autoridade eclesiástica – que, aliás, foram actos destinados a regular de forma excepcional a organização e funcionamento de uma pessoa de direito canónico com a apontada natureza (de associação pública de fiéis) – a sentença ora recorrida, ao julgar a acção improcedente e absolver os RR. do pedido, não poderá deixar de ser mantida." 

Admite-se que, ao entender que os tribunais judiciais não têm competência para se pronunciar sobre a validade de Decretos Bispais e, ao mesmo tempo, ao confirmar a decisão de improcedência proferida pela 1.ª instância, tenha havido um mero lapso de escrita. Ainda que assim tenha sucedido, a verdade é que isso não evita a nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos (a incompetência dos tribunais judiciais) e a decisão (a confirmação de uma decisão de mérito) (cf. art. 666.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, al. c), CPC).

Como é óbvio, a decisão conforme aos fundamentos seria uma decisão de absolvição da instância por incompetência absoluta dos tribunais judiciais (art. 99.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, al. a), CPC). Se, no caso concreto, esta decisão era admissível, isso é, como acima se referiu, outra questão.

b) Embora a fundamentação do acórdão quanto à incompetência dos tribunais judiciais para apreciar a validade de Decretos Bispais mereça acolhimento, não pode deixar de se assinalar as duas imperfeições técnicas que o mesmo contém.

MTS