"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/01/2019

Jurisprudência 2018 (147)


Penhora; registo; remissão para os meios comuns;
embargos de terceiro


1. O sumário de RP 11/9/2018 (1755/10.0T2AGD-B.P1) é o seguinte:

Em processo de execução, após penhora, remetido os interessados para os meios comuns ao abrigo do art. 119º nº 1 do CRPredial os embargos de terceiro não deixam, por isso, de ter interesse.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1. Relatório

Por apenso à execução que o MP moveu a B…, foi penhorado o prédio misto, sito em …, Freguesia de …, Concelho de Anadia, descrito na Conservatória do registo Predial de Anadia, sob o nº 5649, da dita freguesia, inscrito na respectiva matriz urbana sob o nº 1972 e na matriz rústica sob o n.º 2939 com o valor patrimonial de €13.881,98.


Por o prédio em causa ter sido penhorado em momento anterior noutra execução, foi proferido despacho sustando os termos da execução, ao abrigo do disposto no artigo 794.º, n.º 1, CPC.

Entretanto, C… deduziu embargos de terceiro alegando ser o proprietário do referido prédio, aliás, inscrito no registo a seu favor, por o ter adquirido ao executado e mulher, seus pais, através de doação.

Conclui pedindo o levantamento da penhora.

Entretanto, foi proferido despacho, a fls. 172, remetendo os interessados para os meios comuns, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, CRPredial, não obstante a execução se encontrar sustada. [...]

3.2. Da (in)utilidade dos embargos de terceiro face à remessa dos interessados para os meios comuns, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, CRP

O apelante deduziu embargos de terceiro por ter sido penhorado um prédio que lhe pertencia numa execução a que era alheio.

Ao tomar conhecimento da penhora de um imóvel que lhe pertencia, o apelante deduziu embargos de terceiro.

Dispõe o artigo 342.º, n.º 1, CPC, que Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.

A penhora atingiu o direito de propriedade do apelante, que é, obviamente, incompatível com a realização da penhora.

Com efeito, e como explica Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 6.ª edição, pg. 329-30, o conceito de direito incompatível deve ser equacionado em função da finalidade da acção executiva, que é a satisfação do direito do credor através venda executiva.

No caso vertente, a circunstância de o bem penhorado pertencer a terceiro é incompatível a penhora, por impedir a realização da função da acção executiva - a transmissão forçada do bem penhorado.

Enquanto a penhora se mantiver, mantém-se o interesse do embargante na apreciação dos embargos de terceiro, pois só a sua procedência acarretará o levantamento da penhora.

Ainda que o imóvel penhorado venha a ser vendido para pagamento da dívida que motivou a primeira penhora - o ora apelante é executado naquela execução - os embargos de terceiro continuam a ter interesse para o embargante, por que aquele bem não responder pela dívida a que se reporta a execução aqui em causa.

A remessa dos interessados para os meios comuns também não retira interesse aos embargos de terceiro; pelo contrário.

Vejamos:

O registo da penhora na execução a que estes embargos estão apensos foi efectuado provisório por natureza nos termos do artigo 92.º, n.º 2, alínea a), CRP, por a propriedade do bem penhorado estar registado a favor de pessoa diversa do executado (contrariamente ao que sucedeu com a primeira penhora, pois na respectiva execução o ora apelante é executado).

Nestas situações - registo provisório da penhora por o bem estar inscrito em pessoa diversa do executado - o artigo 119.º, n.º 1, CRP, prevê a citação do titular inscrito para declarar, no prazo de dez dias, se o prédio lhe pertence.

Este mecanismo legal tem por finalidade proteger o titular inscrito, obstando a que se avance para a venda do bem na acção executiva sem a sua intervenção.

Se o citado declarar que o bem não lhe pertence ou não fizer qualquer declaração, esse facto é comunicado ao serviço de registo para conversão oficiosa do registo. E a execução pode prosseguir os seus termos.

Diversamente, se o titular inscrito declarar que o bem lhe pertence, como sucedeu no caso dos autos, o juiz remete os interessados para os meios comuns, sendo tal facto bem como a data da notificação da declaração para ser anotada no registo (artigo 119.º, n.º 4, CRP).

O n.º 5 do artigo 119.º, CRP, determina que o registo da acção declarativa na pendência do registo provisório é anotado neste e prorroga o respectivo prazo até que seja cancelado o registo da acção.

Esta acção declarativa está inserida no processo de trato sucessivo, consagrado no artigo 34.º CRP, que pressupõe a continuidade das inscrições registais. Assim, só com a intervenção do titular inscrito se pode lavrar nova inscrição definitiva.

A acção declarativa destina-se, pois, a ilidir a presunção de propriedade decorrente do registo, de que o prédio pertence ao titular inscrito (cfr. artigo 7.º CRP), por forma a permitir que sem a sua intervenção (e sem violação do princípio do trato sucessivo), a inscrição lavrada como provisória por natureza, possa ser convertida em definitiva.

Deverá, pois, ser intentada pelo exequente para que possa levar a bom termo a venda do bem penhorado na execução.

Aqui chegados, pergunta-se se, neste contexto, fará sentido o prosseguimento dos embargos de terceiro, pois o interesse da conversão da penhora em definitiva será do exequente embargado.

A resposta tem de ser negativa.

Em primeiro lugar, os embargos de terceiro preenchem a finalidade de salvaguarda do princípio do trato sucessivo pressuposta pelo mecanismo estabelecido pelo artigo 119.º CRP.

Como se refere no Proc. n.º R.P. 134/98 DSJ-CT, BRN 6/99, apud Blandina Soares, Código do Registo Predial Anotado, Almedina, pg. 486,

“…Tendo o embargante obtido já o registo (definitivo) da sua aquisição, poder-se-á efectuar a conversão do referido registo de penhora mediante a simples prova de que foram deduzidos embargos de terceiro - dado que está verificado com aquele incidente, a intervenção exigida pelo art. 34.º, n.º 2, do Código do Registo Predial, quanto ao titular supervenientemente inscrito (o embargante). Dever-se-á então convolar o pedido efectuado de anotação da prorrogação do prazo de vigência do registo provisório da penhora para o pedido de conversão desse registo. É que, julgados procedentes os embargos, o juiz determinará o levantamento da penhora, e será com base no respectivo despacho, que se procederá ao cancelamento do registo. Ao invés, julgados improcedentes os embargos, o registo da penhora, já convertido em definitivo, garante os direitos que a execução visa realizar.”

Com a reforma do Processo Civil de 1995-6, os embargos de terceiro abandonaram a estrutura de acção eminentemente possessória, passando a integrar o elenco dos incidentes da instância, com vocação para a defesa de qualquer direito incompatível com a subsistência da penhora (ou qualquer diligência de cariz executório judicialmente ordenada), designadamente o direito de propriedade.

Contrariamente ao que sucedia anteriormente, a questão da propriedade passou a poder ser suscitada pelo embargante de terceiro, e não apenas pelo embargado como sucedia no âmbito do artigo 1042.º, alínea b), CPC pregresso (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 2.ª ed., pg. 324 e ss.).

Este regime transitou para o CPC actual, sendo de sublinhar que, nos termos do artigo 349.º CPC, que reproduz o artigo 358.º do diploma pregresso, A sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados.

Conclui-se, pois, que os embargos de terceiro são idóneos para preencher o desiderato do artigo 119.º CRP.

Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto, de 2011.05.09, Mendes Coelho, www.dgsi.pt.trp, proc. n.º 1743/06.0TBVRL.P1.

Acresce que o caso em apreço apresenta uma particularidade que determina, mais que a utilidade dos embargos de terceiro, a sua imprescindibilidade para a tutela dos interesses do apelante.

Como já se referiu, a primeira penhora foi registada como definitiva, por o ora apelante deter a qualidade de executado naqueloutra execução, o que significa que o apelado (o MP, exequente), não tem qualquer interesse em intentar acção declarativa destinada a ilidir a presunção de titularidade.

Depreende-se que essa qualidade de executado decorre da procedência de uma acção de impugnação pauliana, que apenas aproveita ao credor impugnante (artigo 616.º, n.º 4, CC).

No entanto, se o crédito do apelado (MP) tiver sido graduado para ser pago pelo produto da venda, o bem pertencente ao embargante de terceiro poderá acabar por responder por uma dívida alheia.

A forma de reagir contra esta situação será precisamente através dos embargos de terceiro, cuja procedência acarretará o levantamento da penhora e consequente impossibilidade da lide relativamente ao crédito reclamado.

Os embargos de terceiro permitirão dirimir definitivamente a questão da propriedade, no confronto do embargante com o MP exequente.

Não se verifica, pois, qualquer inutilidade da lide dos embargos de terceiro."

3. [Comentário] a) Segundo se percebe, a situação apreciada no acórdão é a seguinte:

-- Estão pendentes duas execuções:

(i) Uma execução em que C é executado;

(ii) Uma execução em que B é executado;


-- Na execução em que B é executado foi penhorado um imóvel alegadamente pertencente a C;

-- C embargou de terceiro;

-- Dado que na execução proposta contra B foi penhorado o mesmo imóvel registado em nome de C, foi este citado para declarar se o imóvel lhe pertence (art. 119.º, n. 1, CRegP);

-- Perante a afirmação de C de que o imóvel lhe pertence, foram os interessados remetidos para os meios comuns (art. 119.º, n.º 4, CPC).

b) Com base nesta factualidade, a RP teve de decidir se os embargos de terceiro que C tinha proposto podem ser considerados meios comuns para efeitos do disposto no art. 119.º, n.º 4, CRegP. A RP respondeu no sentido afirmativo. Dado que esses embargos seguem, depois do seu recebimento, os termos do processo comum (cf. art. 348.º, n.º 1, CPC), nada há a objectar ao decidido.

Neste sentido, supõe-se que onde no acórdão, depois de se perguntar se faz sentido o prosseguimento dos embargos de terceiro, se afirma que "a resposta tem de ser negativa", se devia ter escrito que "a resposta tem de ser positiva".

[MTS]