"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/01/2019

Jurisprudência 2018 (162)


Junção de documentos;
segredo profissional 


1. O sumário de RP (decisão singular) 24/9/2018 (868/17.1T8PRT-B.P1) é o seguinte:

I - O Estatuto da Ordem dos Advogados não contém qualquer norma que preveja uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.
 
II - O nº 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.
 
III - Na alínea e) do n.º 1 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.
 
IV - Na alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 92º o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos de que o Mandatário teve conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas em que tenha intervindo.
 
V - A junção ao processo de correspondência (não confidencial) trocada entre mandatários e onde consta apenas e só que o valor correspondente a um determinado cheque já se encontra depositado no banco sacado e que o mesmo cheque pode ser reapresentado a pagamento pelo respectivo beneficiário não constitui violação do segredo profissional do advogado nos termos do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é pacífico, o dever de sigilo profissional que impende sobre o Advogado tem a sua razão de ser na necessidade de preservar o princípio da confiança, sendo que o exercício da advocacia assume reconhecido interesse público, dada a natureza social dessa função.

Como se consagra no n.º 2.3.1. do Código de Deontologia dos Advogados Europeus: “ É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, pois, reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado.

A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado.“

E como forma de salvaguardar e proteger esse dever de sigilo profissional, acrescenta-se no n.º 2.3.2 que “O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional.“ [...]

Neste sentido, como se refere no AC desta Relação de 7.07.2010 [AC RP de 7.07.2010, Processo n.º 10443/08.6TDPRT-A.P1, relator EDUARDA LOBO, disponível in www.dgsi.pt] “ Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de elevado interesse público. “ E, ainda, refere-se em outro passo do mesmo aresto que “ O segredo profissional é um direito e um dever do advogado. Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial.“ [...]

O nº 3 do citado artigo 92º apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo.

Portanto, nem todos os factos estão abrangidos pelo sigilo profissional, mas apenas aqueles que se reportam a assuntos profissionais que o advogado tomou conhecimento, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste, ou, ainda, no âmbito de negociações que visem pôr termo ao litígio, tenham essas negociações obtido o almejado acordo de interesses (judicial ou extrajudicial) ou não tenham obtido esse acordo (negociações malogradas), pois que o princípio da confiança, essencial e imprescindível ao exercício dessa função, exige confidencialidade relativamente aos factos e informações reveladas pelo seu cliente e que, não fora essa garantia, o mesmo não os revelaria a mais ninguém.

Por conseguinte é este, em nosso ver, o preciso e específico sentido do artigo 92º do EOA e é, logicamente, com tal interpretação que o mesmo deve, pois, ser aplicado o caso dos autos.

Ora, sendo assim, o documento n.º 3 ora em apreço – em função do seu conteúdo – não se integra em qualquer uma das hipóteses do n.º 1 do artigo 92º do EOA e, em particular, não se integra nas hipóteses contempladas nas suas alíneas e) e f).

Com efeito, o dito documento, ao contrário do que sustentam os recorrentes, pelo seu conteúdo, não dá a conhecer quaisquer factos que vieram ao conhecimento do Mandatário do embargante/recorrido no decurso de negociações entre ambos; Ao invés, o dito documento dá apenas nota de ter já existido entre ambos os Srs. Advogados contactos ou troca de correspondência prévia ao mail que constitui o dito documento n.º 3; Todavia, como é bom de ver, a simples troca de correspondência entre Advogados não significa, de per si, que tenham existido negociações entre ambos.

Nestes termos, o dito documento – em função do seu conteúdo (lido e interpretado segundo os cânones interpretativos que decorrem do preceituado no artigo 236º do Código Civil) – não dá conta da existência de quaisquer negociações entre os Srs. Advogados em representação dos respectivos clientes e, por maioria de razão, não dá conhecimento de quaisquer factos integrados e conhecidos, directa ou indirectamente, nesse (inexistente) processo negocial.

Destarte, a junção de tal documento aos autos e a sua admissão pelo Sr. Juiz a quo não comporta a violação do segredo profissional tal como o mesmo decorre da previsão das citadas alíneas e) e f) do artigo 92º do EOA, em contrário do que invocam os recorrentes.

Pode, no entanto, colocar-se a questão de saber se a possibilidade de tal junção infringir a mais genérica alínea a) desse mesmo n.º 1 do artigo 92º, onde se estatui que o advogado é obrigado a guardar segredo no que respeita a factos que vieram ao seu conhecimento no exercício da sua actividade, exclusivamente, por revelação do cliente ou que lhe foram revelados por ordem deste.

Não pode, contudo, ignorar-se que os factos cujo conhecimento advenha para o advogado em virtude do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços não são todos e quaisquer factos, mas apenas aqueles que tenham vindo ao seu conhecimento em situação tal que, pela relação de confiança criada com o respectivo cliente, seja indesculpável deontologicamente a sua revelação.

Acontece que não é de modo manifesto a situação dos autos.

Como já se assinalou, a documentação em causa corresponde tão só a um mail que foi enviado pelo Mandatário do recorrido ao Mandatário dos recorrentes em que aquele primeiro dá a conhecer a este último que o valor correspondente a um determinado cheque já se encontra depositado no banco sacado e que esse cheque pode ser reapresentado a pagamento. Nada mais.

Como assim, a junção ao processo de um mail com tal conteúdo não envolve factos que tenham vindo ao conhecimento do advogado em contexto tal que torne a sua revelação como deontologicamente reprovável em face do seu cliente, que, naturalmente, lhe deu (ao seu Advogado) a conhecer esse facto para o comunicar à outra parte, através do seu Advogado, sendo certo que é corrente que tais assuntos, em vez de serem tratados directamente pelos clientes, sejam tratados pelos seus Advogados.

E sendo assim, em conclusão, nada obsta à luz do EOA à junção aos autos de tal documento e, consequentemente, nenhuma censura é possível dirigir ao despacho (ora recorrido) que o admitiu."

[MTS]