"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/01/2019

Jurisprudência 2018 (156)


Causa de pedir; identidade;
excepção de caso julgado
 

I. O sumário de STJ 18/9/2018 (21852/15.4T8PRT.S1) é o seguinte:

1. A exceção de caso julgado material exerce uma função negativa consistente no impedimento de que as questões alcançadas por caso julgado anterior se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura, tendo como requisitos a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, nos termos do artigo 581.º do CPC.

2. Para tais efeitos, a identidade do pedido afere-se pela identidade do efeito prático-jurídico considerado à luz do estatuído no quadro normativo aplicável ao litígio em causa.

3. Por sua vez, a causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo impetrante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC.

4. A densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.

5. Todavia, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.

6. Embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir.

7. Porém, perante uma pretensão deduzida e julgada numa ação, não basta empreender uma qualificação jurídica diferente sobre a mesma factualidade para, em ação posterior, se concluir por causa de pedir diversa, já que ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”.

8. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.

9. Assim, num caso em que, como no dos presentes autos, em ação anterior foi julgada improcedente uma pretensão indemnizatória por danos patrimoniais, fundada na violação do interesse contratual negativo na decorrência da invocada nulidade de contratos celebrados, tal não preclude, por via do efeito de caso julgado, a possibilidade de se deduzir, em ação posterior, pretensão indemnizatória por danos patrimoniais sustentada na mesma factualidade mas agora com fundamento em violação do interesse contratual positivo, na medida em que esta pretensão revele, sob o ponto de vista normativo, um alcance essencialmente diferente da pretensão anteriormente julgada, quanto à valoração dos comportamentos ilícitos em causa e dos danos ressarcíveis e, nesta medida, um modo específico de tutela distinto com reflexo no efeito prático-jurídico pretendido.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Antes de mais, convém reter que a caracterização jurídico-processual do litígio não deve ser feita numa base meramente empírica da identidade sócio-económica do conflito de interesses subjacente, devendo antes passar pelo crivo do seu enquadramento jurídico, substantivo e processual. Um mesmo conflito de interesses pode ser fonte de uma diversidade de pretensões judiciais, consoante os diversos modos de tutela jurídica que o mesmo potencie, cabendo ao impetrante optar por aquele que, em função dos meios de prova de que disponha ou de outras condicionantes, melhor satisfaça o interesse pretendido.

Como acima se deixou dito, a diferenciação de causas de pedir é, em regra, feita na base da conjugação da factualidade alegada com o quadro normativo aplicável, em função da espécie de tutela jurídica visada, o mesmo é dizer, do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor.

Porém, como também ficou ressalvado, casos há em que a mesma factualidade empírica alegada é suscetível de preencher quadros normativos distintos de modo a sustentar efeitos prático-jurídicos qualitativamente diferentes, pelo que, em tais situações, a diferenciação da causa de pedir é feita basicamente à luz do seu recorte normativo.

É certo que não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente, posto que ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”. [...]

Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa [...].

Ora, no âmbito do processo n.º 566/08.7TVPRT, os ali autores deduziram pretensões de reconhecimento de nulidade dos negócios em causa e de condenação do réu na consequente restituição de prestações, valores e documentos. [...]

A par disso, os ali autores cumularam pedidos indemnizatórios pelos prejuízos patrimoniais decorrentes da alegada atuação do réu, consubstanciada ainda nas violações invocadas como fundamento de tais nulidades.

Nesse contexto alegatório, tais pedidos indemnizatórios apresentam-se como complementares, inscrevendo-se na esfera da responsabilidade pré-contratual pela chamada violação do interesse contratual negativo, posto que se mostram formulados na decorrência e pressuposição das invocadas nulidades dos negócios em causa.

Na presente ação, os pedidos indemnizatórios patrimoniais vêm agora estribados no pressuposto de validade dos sobreditos negócios e, por conseguinte, na perspetiva da violação do interesse contratual positivo.

Significa isto que a causa de pedir na presente ação convoca um quadro normativo globalmente distinto do aplicável no âmbito do processo n.º 566/08.7TVPRT, na medida em que envolve equacionar os comportamentos ilícitos imputados ao R., ainda que à luz de algumas normas similares, em especial respeitantes à intermediação financeira, constantes do CVM, mas agora convocados para o quadro legal regulatório da complexa e multifacetada relação contratual validamente firmada entre o A. e o R..

Neste novo conspecto, os padrões de exigência dos deveres a que o R. ......, agora como parte na relação contratual, se encontrava vinculado são suscetíveis de implicar dimensões de maior diversidade e espessura do que os ditados no quadro da fase pré-negocial, seja quanto aos deveres de prestar típicos, primários ou principais, seja quanto a deveres secundários deles acessórios, ou ainda no quadro dos denominados deveres laterais de conduta, em ordem a assegurar a boa execução do programa contratual [...].

Assim, os deveres de informação e de cooperação, bem como os ditames da boa fé, no plano de cumprimento das obrigações contratuais, por parte do ora R., prioritariamente à luz das regras gerais e especiais dos contratos de intermediação financeira constantes dos artigos 321.º e seguintes do CVM e, subsidiariamente, do princípio geral consagrado no art.º 762.º do CC, ganham maior latitude e espessura com a suscetibilidade de conduzir a um modo específico de tutela jurídica, nomeadamente para efeitos indemnizatórios em sede de responsabilidade contratual, qualitativamente distinto do modo de tutela decorrente de deveres, em parte, da mesma categoria (dos deveres de conduta), no quadro na responsabilidade pré-contratual e, em particular, no respeitante à violação do interesse contratual negativo. [...]

Sustentou o R. na contestação, que o pedido de condenação do ...... a pagar ao A. todos os valores de capital e juros que, no âmbito das operações realizadas, aquele já recebeu deste, não representa materialmente mais do que o que está na causa de pedir: a desvalorização dos títulos e a correspondente perda patrimonial; e que os pedidos são materialmente os mesmos, só diferindo formalmente em consequência do diverso fundamento jurídico invocado.

Embora se admita que o fim aqui visado pelo A. seja a reparação material do prejuízo resultante da desvalorização dos títulos, tal reparação pode ser obtida por via de tutelas distintas:

- no caso de violação do interesse contratual negativo, pressupondo a nulidade dos negócios em causa, como fora pretendido no processo n.º 566/08.7TVPRT, visa-se a tutela ressarcitória do prejuízo que os ali autores não teriam se tais negócios se não tivessem celebrado, atenta a alegada violação dos deveres do ......, como intermediário financeiro, no quadro da fase pré-negocial;

- no caso de violação do interesse contratual positivo, como se pretende na presente ação, tem-se em vista obter a tutela ressarcitória do prejuízo sofrido pelo A. em virtude de os negócios em causa não terem sido exatamente cumpridos, nomeadamente em sede dos deveres de conduta do ......, como são os deveres de informação e de cooperação, bem como dos ditames da boa fé, agora sob o prisma da execução do programa de uma complexa e dinâmica relação contratual de intermediação financeira já firmada, importando, por isso, um diferente e maior nível da tutela da confiança entre as partes e uma maior espessura daqueles deveres.

A especificidade desta última via de tutela ressarcitória pela violação do interesse contratual positivo, em relação à tutela ressarcitória do interesse contratual negativo, encontra-se bem espelhada na alegação do A. do modo como ele, perante o ......, foi aceitando as operações de aquisição de ações e sujeitando-se aos financiamentos que lhes iam sendo associados e às garantias exigidas, envolvido como já estava pelos vínculos daquela relação contratual.

Nesse quadro negocial, afigura-se ser de equacionar um maior grau de exigência na tutela da confiança entre as partes, mormente ao intermediário financeiro, em virtude da progressiva consolidação da relação contratual, do que no âmbito de uma relação pré-negocial.

Não se trata, pois, de uma mera qualificação formal, mas de duas perspetivas de tutela jurídica ressarcitória suscetíveis de âmbitos essencialmente diferentes.

Não cabe, no entanto, no âmbito deste recurso, ajuizar sobre o mérito da alegada violação contratual e pertinência dos danos patrimoniais nessa base invocados, bastando constatar, para efeitos de caracterização da exeção de caso julgado material, a perspetiva em que vêm colocados e que ora se apresenta em sede da responsabilidade civil contratual.

E, nessa perspetiva, atentos os contornos do objeto das ações em confronto acima enunciados e aos modos de tutela especificamente visados numa e noutra, afigura-se, como já foi dito, estarmos perante qualificações jurídicas – responsabilidade pré-contratual / responsabilidade contratual - que desembocam em dimensões normativas substancialmente distintas, seja no campo da valoração da ilicitude dos comportamentos em causa, seja no alcance dos danos ressarcíveis daí decorrentes.

Nesta linha, salvo o devido respeito, não se acolhe o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, quando reconduz as pretensões indemnizatórias formuladas numa e noutra ação ao genérico quadro da responsabilidade civil, sem atentar numa destrinça clara da duas vertentes em que ela se configura – responsabilidade por violação do interesse contratual negativo e responsabilidade por violação do interesse contratual positivo -, respetivamente numa e noutra ação, não obstante tratar-se da mesma factualidade empírica.

É certo, no processo o n.º 566/08.7TVPRT, os ali demandantes bem podiam ter formulado pedidos subsidiários de indemnização patrimonial para o caso de improcedência das pretensões de declaração de nulidade dos contratos em causa. Mas não é menos certo que o não fizeram e que a lei o não impõe, cabendo ao impetrante, como já foi dito, à luz do princípio processual do dispositivo, escolher a oportunidade e a estratégia processual que melhor lhe convenha.

Assim, bem se compreende que, na decisão proferida naquele processo, julgadas que foram improcedentes as pretensões de declaração de nulidade dos contratos em causa, se tenha igualmente julgado improcedentes as pretensões de indemnização patrimonial deduzidas, complementarmente, na pressuposição de tais nulidades. Convolar tais pretensões indemnizatórias para a sede da responsabilidade contratual seria atentar contra o limite da condenação consagrado no art.º 609.º, n.º 1, do CPC, já que se traduziria em condenação numa espécie de tutela jurídica qualitativamente diversa da as-sim peticionado pelos autores.

Em suma, a causa de pedir invocada no processo n.º 566/08.7TVPRT, no que concerne às pretensões de indemnização patrimonial ali deduzidas, é diferente da deduzida na presente ação, não obstante se tratar de factualidade idêntica, por se recortarem em quadros normativos qualitativamente diferenciados: ali, no âmbito da responsabilidade civil pré-contratual; aqui, no âmbito da responsabilidade civil contratual.

De igual modo, os repetivos pedidos de indemnização patrimonial são diferentes, por se reconduzirem, ao fim e ao cabo, em efeitos prático-jurídicos radicados em distintos âmbitos de tutela – ali, a reparação de danos decorrentes da violação do interesse contratual negativo; aqui, a reparação de danos decorrentes da violação do interesse contratual positivo -, ainda que possam, porventura, lograr valores materialmente equiparáveis.

Nesta conformidade, conclui-se que da decisão proferida no processo n.º 566/08.7TVPRT, relativamente às pretensões de indemnização por danos patrimoniais, não decorre efeito preclusivo da qualificação jurídica aplicável às pretensões deduzidas na presente ação com efeito de caso julgado material que aqui se imponha.

Por todas as razões expostas, improcede a invocada exceção de caso julgado no que respeita às referidas pretensões de indemnização por danos patrimoniais deduzidas na presente ação."

III. [Comentário] Basta verificar que, como se refere no acórdão, a responsabilidade pelo denominado interesse contratual positivo só podia ter sido invocada na anterior acção de forma subsidiária e atentar em que não há nenhum ónus de deduzir um pedido subsidiário para que se ter que concluir que a improcedência de uma acção baseada no interesse contratual negativo não pode produzir força de caso julgado numa outra acção fundamentada no interesse contratual positivo.

MTS