"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/01/2019

Jurisprudência 2018 (163)


Audiência prévia; dispensa;
nulidade processual; consequências*


1. O sumário de RL 23/10/2018 (1121/13.5TVLSB.L1-1) é o seguinte: 

I. A dispensa, em contravenção dos critérios legais, da audiência prévia constitui nulidade prevista no art.º 195º do CPC.

II. Porque tal nulidade está coberta por decisão judicial o modo processual adequado de a denunciar é o recurso daquela decisão judicial.

III. A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se.

IV. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz.

V. Destinando-se a audiência prévia, entre outras finalidades, a facultar às partes a discussão de facto e de direito quanto ao mérito da causa e a proceder à delimitação do litígio, se necessário complementando e concretizando a alegação factual (art.º 591º, nº 1, als. b) e c) do CPC, há-de considerar-se compreendida nessa finalidade a actividade conducente à dedução de uma ampliação do pedido.

VI. Tendo a Autora invocado expressamente a sua intenção de formular ampliação do pedido na audiência prévia, não podia o Mmº juiz a quo dispensar a audiência prévia.

VII. Não contendendo a nulidade praticada com a decisão já proferida (verificação de caso julgado relativamente ao primeiro pedido e procedência do segundo pedido) esta haverá de manter-se intocada. O único efeito dessa nulidade será a determinação de realização de audiência prévia para formulação de ampliação do pedido e a prossecução do procedimento consequente a tal formulação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os denunciados vícios de que padecerá a decisão recorrida não são seguramente integradores das nulidades da sentença previstas taxativamente no art.º 615º do CPC.

Eles traduzir-se-ão na omissão de um acto determinado na lei (realização de audiência prévia) e na prática de um acto proibido por lei (decisão surpresa); e como tal integraram as nulidades inominadas previstas no art.º 195º do CPC [nesse sentido cf. Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 1ª ed., 2014, pgs. 17 e 369].

Pelo que logo se levanta a questão de descortinar se a via recursiva – que foi a utilizada - é adequada para invocar tais nulidades, tendo em conta o princípio de que das nulidades cabe, por regra, reclamação perante o tribunal onde o vício se consumou.

A esse propósito Alberto dos Reis afirmava [Comentário ao Código de Processo Civil, II, pgs. 507-508] que “a arguição de nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.

Ensinamento esse reiterado por Manuel de Andrade (“se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: ’dos despachos recorre-se, contra a nulidades reclama-se’” [Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 183]), Antunes Varela (“se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão” [Manual de Processo Civil, 1985, pg. 393]) e Anselmo de Castro (“tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso” [Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, 134]).

E que tem sido acolhido na jurisprudência, como se pode ver, a título exemplificativo, nos acórdãos do STJ de 30JUN2011 (proc. 527/05.8TBVNO.C1.S1), da Relação de Lisboa de 04JUN2009 (Proc. 67/00.1DSTB-B.L1-2) e 11JAN2011 (Proc. 286/09.5T2AMD-B.L1-1), e da Relação do Porto de 24ABR2012 (Proc. 10336/11.0TBVNG-B.P1) e 24SET2015 (Proc. 128/14.0T8PVZ.P1).

No caso concreto dos autos é manifesto que as nulidades invocadas estão cobertas e sustentadas pela decisão recorrida, pelo que o recurso deduzido se mostra o meio processual adequado para contra elas reagir, sendo lícito a esta Relação delas conhecer."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o acórdão -- bem como a jurisprudência nele citada -- não considera uma distinção que parece ser essencial. Efectivamente, são possíveis três situações bastante distintas:

-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;

-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;

-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.

No primeiro caso -- como aliás resulta expressamente da passagem transcrita de Alberto dos Reis --, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. Este caso merece, no entanto, os seguintes esclarecimentos:

i) No âmbito da passagem transcrita no acórdão, Alberto dos Reis refere a situação em que, perante a não aceitação da contestação pela secretaria por alegada apresentação extemporânea, o réu reclama para o juiz, que vem a aceitar a junção do articulado ao processo; Alberto dos Reis conclui -- e bem -- que, a partir do momento em que há uma decisão que nega o fundamento para a rejeição da contestação pela secretaria, o que o autor tem a fazer é recorrer dessa decisão (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 509); 

ii) Em parte alguma Alberto dos Reis refere que há uma nulidade cometida através de uma decisão; o que Alberto dos Reis analisa é apenas o meio de reacção da parte contra uma decisão que, na óptica desta parte, é ilegal.

No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.

Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.

Ao contrário do que fez, o acórdão devia ter considerado este terceiro caso, dado que o tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia e proferiu o despacho saneador, ou seja, proferiu duas decisões.

b) Neste enquadramento, parece ser demasiada temerária a afirmação peremptória constante do acórdão de que "os denunciados vícios de que padecerá a decisão recorrida não são seguramente integradores das nulidades da sentença previstas taxativamente no art.º 615º do CPC." Será que é mesmo impossível que uma decisão padeça de um vício de nulidade como consequência de uma outra decisão que dispensa a realização da audiência prévia?

A resposta à questão é esta: essa hipótese não só não é impossível, como até está consagrada expressamente na lei. Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

Portanto, o que a RL deveria ter feito era verificar se:

-- A dispensa da realização da audiência prévia era admissível;

-- A dispensa indevida da audiência prévia implicava a nulidade do despacho saneador por excesso de pronúncia.

c) Atente-se ainda em que, contrariando a regra de que as nulidades são arguidas através de reclamação perante o tribunal a quo, o acórdão acabou por concluir o seguinte: "[...] a nulidade praticada em nada contende com a decisão já proferida, que se mantém intocada. O seu único efeito será a determinação de realização de audiência prévia para formulação de ampliação do pedido e a prossecução do procedimento consequente a tal formulação."

Quer dizer: a RL não conheceu de nenhum vício das duas decisões recorridas, mas, ainda assim, deu provimento ao recurso, por conhecer de uma nulidade processual. Como se disse, não era desta nulidade que a RL devia ter conhecido, mas antes da legalidade da decisão que dispensou a audiência prévia e das consequências de uma eventual ilegalidade dessa decisão para o despacho saneador. 

O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida -- hipótese em que o recurso é procedente -- ou não há vícios da decisão impugnada -- situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.

É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula -- isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer -- ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual -- situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.

MTS