"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/03/2019

Jurisprudência 2018 (189)


Recurso de revisão;
documento superveniente

I. O sumário de RG 31/10/2018 (539/05.1TBCBC-C.G1) é o seguinte:

1 - O trânsito em julgado, por regra, torna inatacável qualquer sentença proferida pelos Tribunais. É a chamada autoridade do caso julgado só, excepcionalmente, quebrada nos casos taxativamente estabelecidos na lei - artº 696º do CPC.

2 - O recurso extraordinário de revisão não serve para a parte reagir contra uma decisão que lhe é desfavorável, invocando o que poderia e deveria já ter trazido a juízo em momento anterior. Desse modo, está fora do âmbito do recurso de revisão apreciar prova documental que pudesse já ter sido apresentada e valorada pelo Tribunal cuja sentença se quer ver revista.

3 - A carta junta em sede de recurso de revisão, consubstanciando a troca de correspondência entre advogados e reportando-se a uma situação de diferendo, prévia à acção judicial, na qual eram intervenientes os representados de cada um deles, em cujo teor são feitas afirmações relativas a factos atinentes aos representados e com directo reporte à situação do diferendo inseridas no escopo de proposta para a sua resolução extrajudicial, é um documento sujeito ao sigilo profissional do advogado nos termos do artigo 92º alíneas e) e f) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

4 - Embora tal documento estivesse coberto pelo segredo profissional, isso não significaria a impossibilidade de o mesmo vir a ser dispensado nos termos legalmente previstos.

5 - Para o funcionamento da alínea c) do artigo 696º do CPC, impõe-se que a parte não tivesse conhecimento do documento, ou que dele não tivesse podido fazer uso no processo respectivo, e, em ambos os casos, que o documento seja, por si só, suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

6 - O teor de tal documento (inserido num contexto de resolução do diferendo), ainda que ultrapassada a questão do sigilo profissional, nunca poderia, por si só, relevar para a alteração do decidido já que não é apto a provar qualquer facto inconciliável com a decisão revidenda, desde logo porque não tem força probatória para tal, necessitando sempre, na sua coadjuvação, de outros elementos probatórios globalmente produzidos em juízo.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Numa breve abordagem impõe-se referir que o trânsito em julgado, por regra, torna inatacável qualquer sentença proferida pelos Tribunais. É a chamada autoridade do caso julgado só, excepcionalmente, quebrada nos casos taxativamente estabelecidos na lei - artº 696º do CPC. [...]

Resulta indubitável que o documento em apreciação consubstancia correspondência trocada entre dois advogados numa fase preliminar/ anterior ao processo judicial que decorreu entre o ora apelante como réu e a aí autora «Construções X, Ldª».

Analisado o respectivo teor resulta indubitável que o mesmo consubstancia a apresentação de uma proposta para resolução do diferendo que existia entre as partes, prévia à interposição da acção judicial e como forma de a evitar (veja-se o seu teor e segmento final). A acção veio a ser posteriormente intentada (a acção principal teve início no ano de 2005), o que significa que as negociações resultaram frustradas e nesta acção o ora apelante veio a ser condenado por decisão proferida em 12.10.2015, já transitada em julgado.

Aqui chegados vejamos então se o indicado documento não podia, como se sufraga na decisão recorrida, ter sido apresentado/apreciado no referido processo ou, posteriormente, em sede de recurso de revisão.

Diz-nos o artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados - Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro -, no que ora releva:

«1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: […]

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.»

O segredo profissional está disciplinado no art. 92.º do EOA, permitindo a cláusula geral do seu n.º 1, que se incluam no referido segredo, para além das elencadas nas suas diversas alíneas, outras situações que conflituem com os interesses que ela visa proteger.

Por seu turno, resulta do n. 2 a extensão da vinculação ao segredo a todos os profissionais forenses que no exercício das suas funções tenham tido alguma relação com o litígio.

E como refere o normativo citado, a par dos factos, o sigilo profissional abrange quaisquer documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo – cfr. n.º 3 do artigo 92º.

Por último, decorre do n. 4 que a revelação de factos sujeitos a sigilo profissional apenas é permitida quando verificados os seguintes requisitos cumulativos:

a) Que a mesma seja indispensável para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes;

b) Que haja prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo.

Sendo que os actos praticados pelo advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo (n.5).

“O segredo profissional é correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança.” [Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República P000561994, votado em 09.03.1995. disponível em www.dsi.pt ]. [...]

Aqui chegados e reportando as considerações acabadas de enunciar ao caso dos autos, resulta para nós inultrapassável a afirmação de que o documento em referência, carta junta pelo apelante em sede de recurso de revisão, consubstanciando a troca de correspondência entre advogados e reportando-se a uma situação de diferendo, prévia à acção judicial, na qual eram intervenientes os representados de cada um deles, em cujo teor são feitas afirmações relativas a factos atinentes aos representados e com directo reporte à situação do diferendo inseridas no escopo de proposta para a sua resolução extrajudicial, necessariamente teremos de concluir que tal documento está sujeito ao sigilo profissional do advogado nos termos do artigo 92º alíneas e) e f) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Na verdade, e como elucidativamente se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 9.3.1995, CJ, ano XX, tomo II, págs. 67 e segs., o sigilo profissional numa situação como a dos autos, acrescentamos nós, é uma: «Solução que se compreende, uma vez que nestas negociações, tendentes a evitar o recurso aos tribunais, se espera um comportamento de boa fé e se age com uma certa dose de confiança. Aliás, o esforço de fazer sentir à parte contrária as razões próprias obriga a que se abra o jogo e se digam factos que não se devem converter em trunfos para o adversário. Em suma, sendo provável a existência, nestas negociações, do objectivo de conseguir uma transacção, é natural que se façam cedências ou concessões cuja revelação se não quer.». [...]

Deste modo, embora com os pressupostos enunciados, não concordamos com a afirmação liminar da impossibilidade absoluta de que tal documento não pudesse ter sido junto aos autos principais, ou nestes apreciado, desde que, reiteramos, reunidos os requisitos legais para tal.

Já subscrevemos na íntegra a decisão proferida pela Ex.mª Sr.ª Juiz quando nesta se afirma a inviabilidade da sua junção nestes autos de recurso de revisão.

Concretizemos:

Conforme já acima referido, a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos casos previstos no artigo 696.º, do C.P.C., nomeadamente, quando, e para o que ora releva, se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Comentando esta disposição, diz o Cons. António Abrantes Geraldes in ‘Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, pg. 452 e segs.: «A al. c) integra um outro fundamento de revisão agora traduzido no relevo de documento que a parte desconhecia ou de que não pôde fazer uso e que se revele crucial para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente. Também aqui importa notar que o acesso ao recurso de revisão apenas pode ser permitido nos casos em que não tenha sido objectiva ou subjectivamente possível à parte apresentar o documento a tempo de interferir no resultado declarado na decisão revidenda, o que convoca, além do mais, a possibilidade conferida pelo artº 662º, nº 1, de junção de documentos supervenientes em sede de recurso de apelação». [...]

Voltando de novo à situação dos autos, claramente se mostra evidenciado que nenhum dos requisitos previstos no artigo 696º al. c), a que acima fizemos referência, se mostra aqui verificado.

Atentando em todo o já exposto, e considerando que o autor se encontrava patrocinado na acção principal pelo advogado que recepcionou a dita carta (carta esta de que aquele necessariamente tinha conhecimento desde momento anterior ao da propositura da acção e que se encontrava, como aliás é por si referido, no dossier do processo) face ao patrocínio exercido, necessariamente terá de se concluir que a parte (ora recorrente/aí réu) não desconhecia o documento em questão. Este documento existia e era do conhecimento da parte (ainda que através do mandatário que o patrocinou na dita acção).

Mas mais, na sequência do que vem de se expor, não logrou o autor demonstrar que não pudesse ter feito uso do documento no processo em que foi proferida a decisão a «rever». Aliás, veja-se o documento junto – diga-se de forma extemporânea, já que só em requerimento posterior ao recurso de revisão - a autorização concedida em Janeiro de 2018, pelo conselho regional respectivo da Ordem dos Advogados- sendo a alegação de que apenas teve conhecimento do documento quando o dossier do processo lhe foi entregue pelo advogado insuficiente para se concluir que não foi imputável à parte vencida e ora recorrente a omissão da oportuna junção do documento, mormente na ocasião da instrução do processo em que foi proferida a decisão que ora pretende revista.

Note-se que a não se entender deste modo, estaria aberto o caminho para a todo o tempo se reabrir a discussão sobre os factos objecto de julgamento em quaisquer processos findos.

Em conclusão, a falta in casu de qualquer um dos pressupostos quanto à apresentação do documento, faria desde logo soçobrar o recurso de revisão interposto.

Mas mais, como se salienta no despacho recorrido, este documento – troca de correspondência entre advogados , por si só, nunca poderia fundar o recurso de revisão.

E não o podia, também por duas razões essenciais:

Por um lado, porque face ao disposto pelo artigo 698º do CPC, o documento em que o recorrente funda o pedido de revisão tem necessariamente que instruir o recurso. Ora, considerando que o recorrente no recurso de revisão interposto apenas juntou cópia da carta (sem dar cumprimento ao disposto no n.4 do artigo 92º da Lei 145/2015, de 09 de Setembro, já que apenas juntou a autorização em requerimentos posteriores à decisão de indeferimento proferida- embora tal autorização tivesse data anterior ao recurso-), nunca tal documento poderia ser considerado no âmbito do recurso de revisão, por violação do dever de sigilo profissional nos termos do art. 92º nº 1 e) e f) do E.O.A.

Mas mais, ainda que não fossem as demais razões apontadas, considerando que o documento a que alude a al. c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, só pode servir de fundamento ao recurso de revisão se cumulativamente com o requisito já indicado fizer prova, sem o auxílio de outros meios de prova, de um facto que seja incompatível, no todo ou em parte, com a base factual que serviu de fundamento à sentença, de forma que tal facto, só por si, conduzirá a uma decisão, no mínimo, mais favorável ao recorrente, claramente se evidencia que o documento que o apelante pretende erigir em prova insofismável, não reveste minimamente tal qualidade.

Com efeito, não estamos perante um documento autêntico ou autenticado, mas perante um documento particular, que consubstancia apenas uma troca de correspondência entre advogados de partes de um diferendo, em data muito anterior à instauração da acção, no qual são feitas referências a factos relativos à situação em litígio, mormente quanto a valores, tendo em vista um acordo para a não interposição da acção.

O teor de tal documento (inserido num contexto de resolução do diferendo), ainda que ultrapassada a questão do sigilo profissional, nunca poderia, por si só, relevar para a alteração do decidido já que não é apto a provar qualquer facto inconciliável com a decisão revidenda, desde logo porque não tem força probatória para tal, necessitando sempre, na sua coadjuvação, de outros elementos probatórios globalmente produzidos em juízo.

Neste particular, o documento apresentado é manifestamente inidóneo para produzir o efeito previsto no segmento final da alínea c) do artigo 696º do CPC, pelo que afastada sempre estaria a relevância do documento junto – troca de correspondência entre advogados- para sustentar o recurso de revisão interposto.

Por último, resulta de tudo o que vem de se expor, que não se estando perante um documento «novo» a que a parte do processo no qual foi proferida a decisão a rever não tinha acesso no decurso da acção onde foi proferida a decisão a rever, claramente se evidencia que sendo a caducidade de conhecimento oficioso [cfr. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo civil, págs. 456], há muito decorreu o prazo de 60 dias a que alude o disposto pelo artigo 697º n.2 al. c) do CPC para interposição do recurso, sendo desse modo irrelevante a data em que foi entregue pelo advogado ao ora apelante o dossier relativo ao processo findo."
[MTS]