"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/03/2019

Jurisprudência 2018 (200)

 
Matéria de facto; poderes do STJ;
baixa do processo


1. O sumário de STJ 6/12/2018 (3759/15.7T8LRA.L1.S1) é o seguinte:
 
I. A decisão da matéria de facto deve traduzir, de forma inequívoca, a realidade que se considera provada, impendendo sobre as instâncias, face ao disposto no art. 607º, nºs 3 a 5 do Código de Processo Civil, o dever de discriminar e, se necessário, de concretizar os factos que, dentro dos “temas de prova”, retratem essa realidade.

II. O uso de expressões polissémicas na decisão sobre a matéria de facto, geradoras de ambiguidade, justificam, face ao disposto no artigo 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, a ampliação e/ou a clarificação da decisão de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2.1. [...] porque como é consabido e resulta claro do disposto no art. 682º, nº1 do CPC, ao Supremo Tribunal de Justiça cabe fundamentalmente a aplicação do direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, importa relançar um olhar sobre os factos dados como provados, por forma a certificarmo-nos de que os mesmos permitem encontrar, com segurança, a solução jurídica a dar à questão supra enunciada.

No caso dos autos, verifica-se que no precedente recurso de apelação o autor impugnou a decisão de facto no sentido de serem dados como provados, para além de outros factos, que «Tivesse sido afiançado que o Banco Réu garantisse o retorno das quantias subscritas com as obrigações da DD», ou seja, os factos descritos na sentença sob a alínea o) e que o Tribunal de 1ª Instância considerou como não provados, «porquanto o que se provou foi que os funcionários do Banco ao venderem este produto diziam que a rentabilidade do mesmo era superior à dos depósitos a prazo e que apesar da subscrição ter um prazo de 10 anos, sempre poderiam os clientes transmitir as obrigações a terceiro, por terem muita procura e, por outro lado, que o produto seria seguro porquanto a emitente era a acionista do próprio, sendo que naquela data uma eventual insolvência de bancos era inimaginável».

Relativamente a este segmento da impugnação, o Tribunal da Relação considerou que:

«Salvo o devido respeito por opinião contrária, não fazemos a mesma leitura da prova produzida.

A testemunha HH depôs no sentido de que a percepção que tinham era de que o produto era seguro, equiparado ou similar, em termos de segurança, a um depósito a prazo, e era isso que transmitiam aos clientes, tendo as vendas acontecido na base da confiança (dos clientes nos gestores de conta) e da segurança (afiançada do produto), tendo a DD tudo a ver com o CC.

Declarou, efectivamente esta testemunha que, na altura, era dito aos clientes que a subscrição era por 10 anos, e que “o banco assegurava uma pró-actividade no sentido de revender ou de encontrar um cliente terceiro para ficar com a posição do cliente porque a procura era superior à oferta”.

Esta testemunha não acompanhou directamente o A., como explicou.

Quem o acompanhou directamente, embora não no momento da subscrição, foi a testemunha II, a qual referiu que, conjuntamente com o sobrinho do A., e, depois, individualmente, sempre disse ao A. que o produto era garantido, que era um produto garantido pelo banco, era um produto do banco, da dona do banco e estava garantido pelo próprio Banco CC [...].

Aliás, esta testemunha declarou que isto era o que dizia aos clientes, e não só ao A., que era um produto que tinha garantia 100% do banco, que era da dona do banco e que tinha a garantia do próprio banco, era um produto com risco-banco, confundindo-se a DD e o CC, resultando deste depoimento que a ideia que era transmitida aos clientes era que, na prática, DD ou CC era quase a mesma coisa.

Nesta conformidade, afigura-se-nos que da prova produzida resulta, em parte, provada a factualidade em causa, devendo dar-se como provado que: “
Foi assegurado ao A. pelo funcionário do R. que o retorno das quantias subscritas com as obrigações DD era absolutamente garantido, indistintamente pelo CC e pela DD”.». 
 
Daí ter julgado procedente esta pretensão do autor, pelo que tais factos foram aditados sob o nº 33 aos factos considerados “provados”.

A verdade é que a afirmação de que «o retorno das quantias subscritas com as obrigações DD era absolutamente garantido, indistintamente pelo CC e pela DD», não deixa de nos criar dúvidas sobre o real significado a dar à expressão “absolutamente garantido”, dada a natureza polissémica da palavra “garantia” e que impossibilita, no caso dos autos, que se determine o seu verdadeiro alcance objetivo, tanto mais que a alusão a tal garantia surge a par dos factos considerados e supra descritos sob o nº 30º - ou seja, que «Era dito aos clientes tratar-se de produto seguro, com boa rentabilidade e risco igual ao do banco, por a DD ser a dona/mãe do banco» - e que tornam ainda mais dúbio o sentido a dar àquela afirmação para efeitos de posterior integração jurídica e determinação dos termos da responsabilidade da responsabilidade civil da ré perante o autor.

Daí vermo-nos confrontados com a questão de saber se tal garantia deve ser entendida como uma mera decorrência da situação de integração do CC na DD, sociedade dominante ou se estamos, antes, perante uma atuação do CC traduzida na assunção de uma real garantia do reembolso das quantias subscritas com as obrigações da DD.

Acresce a tudo isto não se vislumbrar que o autor tenha alegado, na sua petição inicial, que «o retorno das quantias subscritas com as obrigações DD era absolutamente garantido, indistintamente pelo CC e pela DD», sendo que, como é consabido, por norma, não cabe nas funções habituais dos intermediários financeiros assumir o compromisso de reembolsar os clientes pelos investimentos efetuados em produtos emitidos por outras entidades.

Por tudo isto e porque tal como afirma o recente Acórdão deste Supremo Tribunal proferido em 08.11.2018, no processo nº (2147/16.2T(LRA.C1.S1) [...], a decisão da matéria de facto deve retratar, de forma clara, a realidade que se considera provada, impendendo sobre as instâncias, face ao disposto no art. 607º, nºs 3 a 5 do CPC, o dever de discriminar e, se necessário, de concretizar os factos que, dentro dos “temas de prova” melhor retratem a realidade, não podemos deixar de perfilhar a orientação seguida neste mesmo acórdão e determinar, por isso e ao abrigo do art. 682º, nº 3 do CPC, a ampliação da decisão de facto «em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito».
 
[MTS]