Responsabilidades parentais; direito de guarda;
deslocação ilícita; competência internacional
I. Os factores de atribuição de competência internacional previstos nos artigos 62º e 63º do CPC só se aplicam se não houver regulamento europeu ou outro instrumento internacional que não previna essa competência; havendo, é este que prevalece, nos termos do art.º 59º do mesmo código.
II. A Convenção de Haia sobre os ‘Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças’ concluída em 25 de Outubro de 1980 (doravante CH80) tem um âmbito muito específico: combater a subtracção do menor do seu ambiente habitual por recurso a vias de facto retirando qualquer consequência prática e jurídica à actuação do subtractor mediante o pronto restabelecimento do status quo – através da restituição imediata do menor -, assegurando o respeito pelo direito de custódia atingido e, também e entrementes, o direito de visita.
III. A CH80 não pretende, porém, regular a questão de fundo, a atribuição ou regulação do exercício das responsabilidades parentais, que é deixada para as instâncias ordinariamente competentes.
IV. Compete ao progenitor à guarda de quem está a criança estabelecer a residência desta, mas apenas enquanto tal não for susceptível de alterar o ambiente habitual da criança.
V. A mudança de residência para outra região do país ou para o estrangeiro é ‘questão de particular importância’ a ser decidida por ambos os titulares das responsabilidades parentais.
VI. A deslocação da criança para o estrangeiro levada a cabo pelo progenitor a quem está confiada a sua guarda sem o consentimento do outro cônjuge é ilícita, na acepção da CH80.
VII. A ‘residência habitual’ para efeitos da Convenção de Haia relativa à ‘Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças’ concluída em 19 de Outubro de 1996 (doravante CH96) é um conceito autónomo, de natureza fáctica a preencher casuisticamente em função das circunstâncias de educação, interacção social e relações familiares, apreciadas quer pelo prisma da ‘intenção parental’ quer pelo prisma do ‘ambiente da criança’, não tendo necessariamente de verificar-se uma determinada extensão temporal para se verificar a mudança de residência habitual; e como exemplos de situações que importam mudança de residência para outro Estado apontam-se a ‘intenção de começar uma nova vida em outro Estado’ ou a ‘mudança definitiva, ou potencialmente definitiva, para outro Estado’.
VIII. Tendo o progenitor a quem está confiada a guarda da criança ido viver para a Suíça levando consigo a mesma, que aí passou a viver e a frequentar a escola, é de considerar que a criança adquiriu residência habitual na Suíça.
IX. A CH96 afasta a regra geral de atribuição de competência à jurisdição da residência habitual do menor, em favor da jurisdição da residência habitual imediatamente anterior, em caso de afastamento ilícito, enquanto se verificarem certas condições.
X. Uma dessas condições é a não aceitação do afastamento pelo progenitor que não consentiu na deslocação.
XI. O progenitor que confrontado com a deslocação da criança para outro país sem o seu consentimento declara que não pretende o regresso da criança mas apenas assegurar o seu direito de visita e contacto regular está a aceitar o afastamento.
XII. Nas descritas circunstâncias a competência para a regulação do exercício das responsabilidades parentais, ainda que na modalidade da sua alteração, pertence à jurisdição suíça.
XIII. Tal não significa, porém, que a regulação efectuada pela jurisdição portuguesa não deva ser reconhecida e executada pelas autoridades suíças enquanto se mantiver em vigor, designadamente pela activação dos mecanismos de auxílio e cooperação previstos no art.º 21º da CH80 e no art.º 35º, nº 1, da CH96 com vista a assegurar o exercício efectivo do direito de visita e do direito a manter contactos directos regulares.
XIV. Tal resultado não ofende a ordem pública internacional do Estado Português, não é impeditivo da efectivação do direito em causa, nem cria para o autor dificuldade apreciável.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A decisão recorrida é dúbia quanto ao tipo de (in)competência em causa uma vez que se por um lado invoca o art.º 9º do RGPTC, que se reporta à competência territorial, por outro lado apela ao art.º 8º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho de 27NOV2003, que regula sobre a competência internacional e termina declarando o tribunal incompetente em razão da matéria.
Ora o que está em causa é a competência internacional; ou seja, qual a jurisdição nacional a quem deve ser atribuída a competência para decidir sobre a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais de menores de nacionalidade portuguesa, filhos de pais portugueses, que se encontram confiados à guarda e cuidados do pai, mas sendo conjunto o exercício das responsabilidades parentais relativamente às questões de particular importância, que mudou de residência de Portugal, onde todos residiam, para a Suíça, onde os menores permanecem e frequentam a escola, mantendo-se a mãe a residir em Portugal.
A competência internacional dos tribunais portugueses encontra-se, no caso, regulada no art.º 59º do CPC (por remissão do art.º 33º, nº 1, do RGPTC), segundo o qual “sem prejuízo do que se encontre estipulado em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94º”.
Na averiguação da competência internacional, e face à citada disposição legal, importa desde logo averiguar se o caso concreto em análise se encontra abrangido por qualquer regulamento europeu ou outro instrumento internacional, pois que em caso afirmativo serão as disposições desses instrumentos que prevalecerão.
Sobre a matéria encontramos no direito europeu em vigor o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho de 27NOV2003 ‘relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) nº 1347/2000’; o qual, porém, não releva para o caso porquanto o mesmo é, em conformidade com o art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, ‘obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados-Membros’, não sendo a Suíça Estado-Membro da União Europeia.
Vinculando Portugal e a Suíça encontramos dois instrumentos internacionais: a Convenção de Haia sobre os ‘Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças’ concluída em 25 de Outubro de 1980 (doravante CH80) [...] e a Convenção de Haia relativa à ‘Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças’ concluída em 19 de Outubro de 1996 (doravante CH96) [...].
A CH80 tem um âmbito muito específico: combater a subtracção do menor do seu ambiente habitual por recurso a vias de facto retirando qualquer consequência prática e jurídica à actuação do subtractor mediante o pronto restabelecimento do status quo – através da restituição imediata do menor -, assegurando o respeito pelo direito de custódia atingido e, também e entrementes, o direito de visita. A CH80 não pretende, porém, regular a questão de fundo, a atribuição ou regulação do exercício das responsabilidades parentais, que é deixada para as instâncias ordinariamente competentes [...].
Para que a CH80 seja aplicável é desde logo necessário que se esteja perante uma deslocação/retenção da criança ilícita ou seja, e nos termos do estabelecido no art.º 3º da mesma Convenção, quando “tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa […], individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção e esse direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção”.
Dos elementos factuais alegados no requerimento inicial (e que não foram minimamente postos em causa pelo Mmº juiz a quo, que ao contrário desta Relação, tinha acesso ao processo de regulação das responsabilidades parentais e seus incidentes) não se levantam dúvidas que ambos os progenitores exerciam, efectivamente e em conjunto, as responsabilidades parentais relativamente às questões de particular importância, estando atribuída ao pai a guarda e cuidados das crianças, que com ele residiam.
Importa, no entanto, indagar a quem incumbia em particular decisão quanto à residência dos menores.
Competindo aos pais velar pela segurança e saúde dos filhos menores e prover ao seu sustento, compete a estes escolher a sua residência, que em termos de normalidade é com os pais (artigos 1878º e 1887º do CCiv).
Isso na constância da coabitação (artigos 1901º e 1911º do CCiv).
No caso, porém, de divórcio ou separação e em que o menor fica (de facto) ou é confiado à guarda de um dos progenitores, intui-se que esse poder-dever de guarda implica que o menor resida com esse progenitor, e consequentemente, que a esse progenitor compete em exclusivo decidir sobre a residência do menor; designadamente que pode livremente mudar de residência levando com ele o menor, sem ter de obter o acordo ou autorização do tribunal ou do outro progenitor.
Entendemos que assim é apenas quando essa alteração de residência não é susceptível de alterar o ambiente habitual da criança (designadamente que não implique alterações relevantes na comunidade educativa, nas relações de amizade, no contacto com os familiares); o que normalmente acontecerá nos casos de mudanças de residência dentro da mesma localidade ou para localidade limítrofe. Já assim não será no caso contrário (em particular, mudança de residência para outra região do país ou para o estrangeiro), caso em que estaremos no domínio das ‘questões de particular relevância’ em que o exercício das respectivas responsabilidades parentais é exercido em conjunto por ambos os progenitores ou pelo tribunal (em bom rigor até se pode dizer que a fixação da residência do menor cabe em exclusivo ao tribunal face ao disposto no art,º 1906º, nº 5, do CCiv).
Em face do exposto concluímos que o pai dos menores, apesar de lhe estar confiada a guarda dos mesmos, não tinha legitimidade para decidir unilateralmente pela mudança de residência dos mesmos para a Suíça, sendo tal questão uma questão a decidir conjuntamente pelos progenitores (ou pelo tribunal). Ao fazê-lo violou o direito da Requerente ao exercício conjunto das responsabilidades parentais.
Mostram-se, pois, preenchidos os requisitos para que a deslocação dos menores para a Suíça seja considerada ilícita, na acepção da CH80.
Contudo, e como já acima se referiu, a intervenção dessa Convenção não tem qualquer implicação na atribuição de competência para apreciar a questão de fundo. Ela apenas se limita aos específicos modos nela contemplados de atalhar à produção de efeitos pela ilícita deslocação/retenção do menor.
Sendo que no caso concreto a Requerente declara expressamente que não pretende accionar o meio principal previsto na CH80 que é a imediata restituição do menor; visando apenas assegurar o seu direito de visita.
O meio processual previsto na CH80 com vista a, nos entrementes da deslocação/retenção ilícita, é apenas o previsto no artº 21º da mesma: o pedir às Autoridades Centrais o apoio e auxílio com vista à organização e protecção do direito de visita. O que a Requerente sempre poderá solicitar [...].
Mas a utilização desse instrumento convencional não tem qualquer implicação na atribuição de competência para proceder à alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos menores em causa.
A CH96 tem como objectivo, entre outros, definir a competência em matéria de regulação do exercício das responsabilidades e respectiva execução (artigos 1º, nº 1, als. a) e d), e 3º, als. a) e b)), estabelecendo que, regra geral, a competência reside nas autoridades do Estado onde a criança tem a sua residência habitual (Art.º 5º).
A convenção não define o conceito de residência habitual, mas verifica-se um consenso de que se trata de um conceito comum a todas as Convenções de Haia sobre crianças, que é um conceito autónomo, de natureza fáctica a preencher casuisticamente em função das circunstâncias de educação, interacção social e relações familiares, apreciadas quer pelo prisma da ‘intenção parental’ quer pelo prisma do ‘ambiente da criança’, não tendo necessariamente de verificar-se uma determinada extensão temporal para se verificar a mudança de residência habitual; e como exemplos de situações que importam mudança de residência para outro Estado apontam-se a ‘intenção de começar uma nova vida em outro Estado’ ou a ‘mudança definitiva, ou potencialmente definitiva, para outro Estado’ [...].
Em face do alegado pela Requerente inferimos que o pai dos menores angariou interesses permanentes (que a Requerente afirma expressamente não querer prejudicar) na Suíça, para onde levou consigo os filhos, que aí agora vivem e frequentam a escola; situação essa que corresponde àquelas apontadas situações de ‘começo de nova vida’ ou ‘mudança definitiva’, pelo que é de concluir que os menores têm agora residência habitual na Suíça.
A CH96, no entanto, afasta a conexão da residência habitual no caso de afastamento/retenção ilícita da criança, adoptando como critério de aferição da ilicitude o mesmo critério constante da CH80 (art.º 7º, nº 2). E já vimos acima que, á luz desse critério, a deslocação dos menores para a Suíça é de qualificar como ilícita.
Nessa circunstância determina a CH96que o Estado no qual a criança tinha residência habitual imediatamente antes do seu afastamento mantém as suas competências até que a criança adquira residência habitual num outro Estado e: a) a pessoa com direito de custódia concordar no afastamento ou b): i) a criança tiver residido nesse outro Estado pelo período mínimo de um ano após a pessoa com direito de custódia ter tido conhecimento do seu paradeiro, ii) não se encontre pendente qualquer pedido de regresso apresentado nesse período, iii) a criança esteja integrada no seu novo ambiente (Art.º 7º, nº 1) [...].
Resulta da posição da Requerente que esta, não obstante não ter sido consultada nem ter dado o seu consentimento, aceita a deslocação das crianças para a Suíça, pelo que a ‘perpetuatio fori’ consentida pelo artigo 7º, nº 1, da CH96, deixou de ser aplicável.
Assim se concluindo que a competência para proceder à alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos menores se encontra atribuída pela CH96 à jurisdição da Suíça.
Isso não significa, porém, que a regulação efectuada pela jurisdição portuguesa não deva ser reconhecida e executada pelas autoridades suíças enquanto se mantiver em vigor (Art.º 14º) e que, consequentemente, se desencadeie o mecanismo de cooperação previsto no art.º 35º, nº 1, da CH96 com vista a assegurar o exercício efectivo do direito de visita e do direito a manter contactos directos regulares.
No sentido de ser atribuída competência internacional à jurisdição nacional a Requerente invoca, ainda, a impossibilidade para a Requerente de instaurar a acção na Suíça e de nessa jurisdição haver sério risco de não ser suficientemente acautelado o interesse dos menores.
De acordo com o disposto no art.º 59º do CPC os factores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses constantes os artigos 62º e 63º do mesmo código (em particular a dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro – al. c) do art.º 62º) só são aplicáveis se não houver instrumento europeu ou convencional que regule a matéria; o que, como se acaba de concluir, ocorre.
Por outro lado, a dificuldade decorrente da necessidade de propor a acção no estrangeiro tem de ser apreciável; o que ocorrerá em caso de guerra ou calamidade [...] mas não no caso da Requerente na medida em que tem à sua disposição instrumentos de auxílio e cooperação internacionais tendentes a assegurar a efectividade do seu direito.
Também não se vislumbra que a intervenção da jurisdição suíça, inserida no mesmo espaço civilizacional e vinculada aos mesmos instrumentos internacional que a jurisdição nacional ponha em sério risco a efectivação do direito da Requerente ou do interesse dos menores, nem esse risco é consubstanciado pela Requerente.
Como igualmente não se afigura que no caso seja invocável qualquer cláusula geral de excepção de ordem pública [...], quer porque não existe tal cláusula relativamente aos instrumentos convencionais [...], quer porque as cláusulas de excepção de ordem pública previstas nos instrumentos convencionais referidos (art.º 20º da CH80 e art.º 22º da CH96) não têm aplicação ao caso, quer porque se não vislumbra que a atribuição de competência à jurisdição suíça para decidir sobre o exercício das responsabilidades parentais, em particular do direito de visita e de contactos regulares, relativamente a crianças portuguesas, filhas de pais portugueses, que foram levadas para a Suíça por um dos progenitores sem o consentimento do outro, onde vivem e se encontram a estudar possa ser considerado como um resultado intolerável, quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico (‘bons costumes’), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português, como algo inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema [...]."
[MTS]