"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/03/2019

Jurisprudência 2018 (192)


Hipoteca; indivisibilidade;
propriedade horizontal

1. O sumário de RP 23/10/2018 (3746/16.8T8LOU-A.P1) é o seguinte:

O credor que beneficia de hipoteca sobre um imóvel no qual é construído um edifício em propriedade horizontal e que à medida que a construção deste avança vai distratando a hipoteca sobre as respectivas fracções, prescinde da indivisibilidade da hipoteca e, por isso, apenas pode exigir a satisfação do seu crédito ao adquirente de uma das fracções na proporção da permilagem desta.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Para garantia das obrigações da sociedade “D…, Lda.” para com o Banco ora exequente/embargado, foi constituída hipoteca sobre uma parcela de terreno. Sobre essa parcela foi construído um imóvel sujeito ao regime de propriedade horizontal, que deu origem a 25 fracções autónomas. O ora executado/embargante adquiriu, por escritura pública de 03.02.2011, as fracções designadas pelas letras “C” e “M”. Estas fracções foram adquiridas sem que tivessem sido expurgada a hipoteca a favor do Banco exequente.

O artigo 696º do C. Civil proclama a indivisibilidade da hipoteca, nos seguintes termos: “Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.” No caso dos autos e por força deste princípio, a hipoteca que incidia sobre o terreno estendeu-se ao edifício nele posteriormente implantado e às fracções autónomas que se vieram a constituir por sujeição ao regime de propriedade horizontal.

Das vinte e cinco fracções, foram distratadas 20. A indivisibilidade da hipoteca pode ser afastada por convenção das partes, como ressalta do teor do segmento inicial do artigo 696º - “salvo convenção em contrário”. Essa convenção, integrando uma declaração negocial, pode ser tácita (art. 217º, nº 1, do C. Civil).

Desse distrate concluiu a sentença recorrida, que “a exequente anuiu de modo tácito à divisibilidade da hipoteca, pois ao ver satisfeito o seu crédito, distratando as hipotecas, mesmo que seja a apenas a um ou alguns dos seus titulares, acabou por renunciar ao direito de ser ressarcido pela totalidade do remanescente do crédito apenas contra um dos restantes devedores, mormente o ora executado.” 

A sentença estribou-se no acórdão do STJ, de 12-02-2004 (Proc. 03B2831), onde a questão apreciada apresentava similitude com a dos presentes autos, no qual se decidiu:

“O que importa é que o banco, que por força do mencionado princípio da indivisibilidade tinha o direito de garantir a totalidade do seu crédito também através da fracção ou fracções que distratou, abriu mão da garantia nessa parte, através de um acordo entre ele e o titular ou titulares da fracção ou fracções distratadas (ou/e o seu devedor), acordo que, obviamente, só a eles mesmos e na medida dos seus direitos, pode vincular.
 
Não é concebível que o banco pudesse, depois, fazer recair sobre o titular ou titulares das restantes fracções um tal acordo, cobrando deste ou destes, ou de cada um destes, a totalidade do seu crédito. Também porque, a ser possível uma tal solução, o titular ou titulares das fracções distratadas veriam posto em causa o acordo celebrado pelo banco, porque qualquer dos não distratados, pagando a totalidade da dívida, poderia exercer o seu direito de regresso contra aqueles outros, pedindo-lhes a parte proporcional do que tivessem pago.”

Concluía que esse distrate, integrando uma convenção ou acordo, expressamente permitida pelo artº 696º, afecta apenas e só o banco e, no que aqui importa, os titulares das fracções distratadas; que extingue a hipoteca na medida exacta da permilagem destas, qualquer que tenha sido o montante pago pelos respectivos titulares ou pelo devedor para obter o distrate por parte do banco; que a hipoteca permanece para garantia do montante correspondente à permilagem das fracções não distratadas, e apenas deste, não podendo o banco pedir de todos ou de cada um dos restantes titulares mais do que esse quantitativo restante.

Igual entendimento foi seguido no acórdão da Relação de Coimbra, de 22-01-2013, proc. 2210/09.6TBLRA.C.C1, também num caso com semelhanças com o dos presentes autos. 

Os distrates operados quanto a cada uma daquelas 20 fracções do edifício construído sobre o terreno hipotecado a favor do ora exequente constituem factos concludentes que revelam, com toda a probabilidade, a manifestação de uma declaração negocial no sentido de concordar com a divisibilidade da hipoteca.

Tendo distratado a hipoteca relativamente a vinte fracções autónomas, deve entender-se que cada uma das cinco restantes fracções não garante a totalidade da dívida que a hipoteca garantia; mas apenas a dívida na proporção da permilagem da fracção. 
 
Sustenta o apelante que a considerar-se a responsabilidade do executado na proporção da permilagem das fracções autónomas de que é titular (60/1000) essas fracções respondem não pela totalidade do crédito exequendo mas pelo montante máximo assegurado pela hipoteca – € 907.970,00 (conclusões 24ª a 31ª). Segundo consta do registo (fls. 185, vº), era de facto aquele o montante máximo assegurado pela hipoteca. 

No requerimento executivo, após aludir às importâncias em dívida em 01 de Julho de 2016, emergentes dos diversos contratos celebrados entre o exequente e a sociedade “D…, Lda.” – antecessora da sociedade “E…, Lda.” – o exequente escreveu que naquela data se encontrava em dívida o montante global de € 157.737,64, sendo € 85.359,95 de capital e € 72.377,70 de juros e respectivo imposto de selo. Sendo este o montante em dívida (a que acrescem juros contados desde 01-07-2016 até efectivo pagamento), é este o montante garantido pela hipoteca; não o “montante máximo assegurado”. Sendo o crédito da exequente o indicado no requerimento executivo, a responsabilidade do executado calcula-se em função deste crédito e da permilagem das fracções de que é titular."
[MTS]