"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/03/2019

Jurisprudência 2018 (199)

 
Uniformização de jurisprudência;
contradição jurisprudencial

 
I. O sumário de STJ 6/12/2018 (2393/09.5TVPRT.L2.S1-A) é o seguinte:
 
1. A admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência depende designadamente da verificação de uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento relativamente a questão de direito essencial para a resolução de ambos os litígios (art. 688º do CPC).

2. É pelo teor da fundamentação que se afere a existência da contradição essencial em matéria de direito; não bastando que a mesma se verifique relativamente a questões ou argumentos laterais, com mera função de
obiter dicta, deve manifestar-se no núcleo essencial ou determinante para cada um dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em confronto.

3. A apreciação rigorosa desse requisito legal constitui a garantia da estabilidade e da segurança inerentes ao caso julgado já formado, fazendo jus à natureza “extraordinária” do recurso.

4. Não se verifica contradição essencial entre o acórdão fundamento proferido numa ação em que se discutia apenas a resolução ou modificação de contrato de
swap com fundamento na alteração anormal das circunstâncias regulada no art. 437º do CC e o acórdão recorrido no qual se discutia a forma a que deveriam obedecer os contratos de swap celebrados entre uma entidade financeira e um investidor, para efeitos da sua demonstração nessa ação.

5. O acórdão fundamento em cujo segmento introdutório se afirmou, como mero
obiter dictum, que o contrato de swap obedece a forma escrita, sem qualquer interferência na resolução do litígio em torno da alteração anormal das circunstâncias, não pode servir para justificar a admissão de um recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência relativamente ao acórdão recorrido no qual se assumiu, para efeitos de fixação da matéria de facto, que não estava afastada a possibilidade de usar, além da prova documental e por confissão, a prova testemunhal e por presunções judiciais.

6. No acórdão fundamento, a alusão à exigência de forma escrita não teve natureza decisiva para a resolução do litígio, ao passo que no acórdão recorrido se revelou decisiva para a intervenção cassatória do Supremo Tribunal de Justiça, em sede da matéria de facto apurada pelas instâncias, a admissibilidade ou não de recurso a outros meios de prova.
 
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"3. Insiste o recorrente na existência de uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

Pode fazê-lo com a liberdade alegatória que a lei legitima, mas que, no entanto, é insuficiente para ultrapassar os argumentos que, desde o CPC de 1961, vêm sendo expostos por diversos processualistas (v.g. Alberto dos Reis, Castro Mendes, Ribeiro Mendes, Teixeira de Sousa, Lebre de Freitas ou Amâncio Ferreira), no sentido da limitação deste recurso extraordinário (ou do anterior recurso para o Pleno) a situações em que se verifique uma contradição direta a respeito das questões de direito que se tenham revelado essenciais para os acórdãos em confronto.

É claro que o objeto do processo pode ser diferente e a normas cuja interpretação está em conflito também não têm que ser formalmente idênticas, bastando a identidade substancial.

Porém, a contradição entre os arestos acerca da interpretação da questão ou questões de direito deve ser direta e não meramente implícita (Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, p. 290, reportando-se ao anterior recurso para o Pleno) e deve verificar-se uma relação de identidade substancial no que concerne à questão ou questões de direito em causa (cf. AUJ nº 4/08 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, p. 118). Ademais, a questão de direito que tenha sido objeto de resposta diversa deve revelar-se essencial para o resultado que foi obtido em cada um dos arestos (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pp. 556 e 557 e Castro Mendes, ob. cit., p. 119).

Os arestos que foram enunciados na decisão singular e outros que se mostram acessíveis através de www.dgsi.pt revelam cada um dos referidos requisitos, sendo de fácil apreensão a necessidade da sua verificação rigorosa, tendo em vista evitar o uso abusivo de instrumentos de natureza extraordinária (Acs. do STJ de 2-2-17, 4902/14, de 26-3-15, 424/2001, de 29-1-15, 20580/11 e de 2-10-14, 268/03). Em Recursos no NCPC, 5ª ed., do ora relator, são indicados diversos acórdãos deste Supremo e diversas obras jurídicas que abordam esta problemática.

Deste mesmo relator e deste coletivo é o A. do STJ de 29-6-17, 366/13, com o seguinte sumário:

I - É pressuposto essencial da admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência a verificação de uma contradição ou diversidade de resposta quanto à mesma questão essencial de direito.

II. Ainda que a situação de facto não tenha de ser coincidente, é de exigir que se estabeleça um confronto jurisprudencial na discussão e resolução de situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo, sejam equiparáveis.

III. As soluções jurídicas em confronto devem assentar na mesma base normativa, não integrando contradição ou oposição de acórdãos soluções diferentes obtidas através da subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados. […]
”.

E é do próprio Pleno do STJ o Ac. de 15-11-17, 56/14, do qual se extrai o seguinte sumário:

“I - O recurso para uniformização de jurisprudência tem na sua base e fundamenta-se numa contradição existente entre dois acórdãos do STJ no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

II - Importa, para isso, atender à contradição que tenha sido relevante, fundamental e decisiva para a decisão em ambos os acórdãos, ou seja, a questão de direito tem de ter constituído o fundamento decisivo para a resolução do litígio em ambos os acórdãos. [...]
”.

Só assim se protege o caso julgado entretanto formado, evitando que seja posto em causa com base em divergência periféricas ou meramente aparentes. Só deste modo se protege o valor da segurança jurídica que não pode ser afetado ou sequer perturbado pelo uso de instrumentos processuais que são de natureza “extraordinária”.

4. Como se referiu na precedente decisão singular, só aparentemente se verifica uma contradição entre os arestos em confronto. Analisados com o necessário pormenor que tenha em atenção o que se revelou essencial para cada um deles, facilmente se verifica que ambos podem persistir sem que daí resulte uma contradição jurisprudencial relevante que urja solucionar mediante a sujeição ao Pleno das Secções Cíveis deste Supremo.

Ultrapassada a “primeira impressão” que possa resultar da leitura isolada do sumário do acórdão fundamento (segmento que, aliás, é da exclusiva responsabilidade do relator, e não do coletivo), uma análise mais “fina” ajustada à natureza extraordinária deste recurso e aos valores que subjazem ao caso julgado, permite constatar que, afinal, a posição assumida na respetiva motivação relativamente à forma do contrato de swap não foi de modo algum decisiva de para a resolução do concreto litígio. Tratou-se, em boa verdade, de um obiter dictum que, sendo perfeitamente dispensável, poderia ter sido dispensado, sem que com isso ficasse prejudicada a solução que foi dada a uma questão (que até ao momento não fora debatida em qualquer acórdãos do Supremo) em torno da modificação ou resolução do contrato de swap com fundamento na alteração anormal das circunstâncias.

Ou seja, para a apreciação do litígio que estava envolvido no acórdão fundamento era totalmente dispensável apurar qual a forma a que deveria ter obedecido o concreto contrato de swap, já que estava unicamente em causa a figura problemática da alteração anormal das circunstâncias, sem que tivesse sido objeto de discussão ou de apreciação relevante a forma a que deveriam obedecer contratos de swap.

A resposta à questão que as partes colocaram em tal processo não dependia, pois, da forma legal do referido contrato, matéria que, aliás, foi abordada no segmento introdutório do acórdão unicamente com a função de enquadrar juridicamente um contrato que, até ao momento, ainda não tinha sido objeto de apreciação em qualquer outro acórdão do Supremo e que apenas surgiu no radar jurisprudencial com a crise financeira de 2007.

Ora o Pleno das Secções Cíveis apenas deve ser chamado a intervir para solucionar conflitos jurisprudenciais reaise não para resolver questões de natureza doutrinária ou de questões marginais ou periféricas que, embora possam ter obtido uma resposta diversa nos arestos em causa, se revelem anódinas para a resolução do litígio.

O que, em concreto, se mostrou decisivo para o resultado declarado no acórdão sob recurso, foi ter-se considerado que a este Supremo Tribunal de Justiça estava vedado sindicar a decisão da matéria de facto provada e não provada ante a inverificação do condicionalismo apertado que consta do art. 674º, nº 3, do CPC. Em face da ausência de uma situação que se traduzisse na violação, por parte das instâncias, de disposição expressa de lei que exigisse uma certa espécie de prova (prova tarifada), concluiu-se que não havia motivos para anular a decisão das instâncias relacionada com a decisão sobre os factos provados e não provados.

Para resolução deste litígio foi considerado que não estava afastada a possibilidade de ponderar, para efeitos de fixação da matéria de facto, para além da documentação junta e da confissão feita pelo recorrente, outros meios de prova, sem exclusão da prova testemunhal e por presunções judiciais.

Ora, não foi esta a matéria apreciada no acórdão fundamento em torno de uma questão que não dizia respeito ao direito probatório material ou formal, antes ao regime substantivo da alteração anormal das circunstâncias, com especial incidência nas circunstâncias que rodeiam contratos de swap.

Para além da diversidade do objeto de cada um dos recursos de revista subjacentes ao acórdão fundamento e ao acórdão recorrido, verifica-se a falta de identidade entre as questões que num e noutro se revelaram essenciais para a resolução de cada um dos litígios que lhes estavam subjacentes, estando, por isso, ausente a verificação de alguma contradição essencial entre o que foi afirmado em cada um dos arestos.

Não existindo as condições mínimas que permitam submeter ao Pleno das Secções Cíveis a resolução de qualquer conflito jurisprudencial, confirma-se a decisão singular que rejeitou o recurso extraordinário.

5. Igualmente se confirma a decisão singular que rejeitou o reenvio prejudicial para o TJUE, pretensão que, aliás, se mostra prejudicada pela resposta anterior.

Com efeito, a intervenção de tal instituição europeia apenas se justifica para dar uma resposta uniformizadora a questões que envolvam normas de direito europeu e que se mostrem necessárias para a resolução de litígios no âmbito interno de cada Estado da União Europeia. Não apresenta autonomia e apenas se justifica como precedente da correspondente decisão por parte de tribunal nacional, o que, como se observa, não se verifica no caso concreto: o acórdão recorrido já transitou em julgado; o recurso extraordinário que sobre o mesmo incidiu é rejeitado.

6. Face ao exposto, acorda-se em confirmar a decisão singular que rejeitou o recurso extraordinário e o reenvio."
 
[MTS]