"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/03/2019

Jurisprudência 2018 (205)

 
Processo de inventário;
sigilo bancário
 

1. O sumário de RC (decisão singular) 28/11/2018 (1771/18.3T8PBL-B.C1) é o seguinte:

I – Em processo de inventário os interessados não são, na relação jurídica de depósito entre banco e o de cujus, terceiros, sendo, assim, a recusa de informação impetrada ao banco, relativa a contas bancárias formalmente tituladas pelos mesmos, ilegítima.

II – Em todo o caso, o sigilo bancário não é um direito absoluto, devendo, se ao interessado na sua quebra não for possível ou razoavelmente exigível operar a prova dos factos pertinentes por outro meio probatório, ceder perante outros interesses ou direitos axiologicamente mais relevantes como seja a descoberta da verdade e a realização da justiça.

III Ocorre tal situação quando, em processo de inventário para separação de meações, está em causa apurar qual o saldo de contas bancárias tituladas em nome dos interessados,
maxime do interessado que, versus o outro, se recusa a dar o seu consentimento para a informação sobre as mesmas.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. No processo se inventário para separação de meações em que são interessados os ex cônjuges MA (…) e MC (…) foi pedida pelo Sr. Notário informação bancária sobre o saldo e a situação de contas bancárias dos interessados.

Os bancos S (…), N (…) e B (…)negaram prestar tal informação alcandorados na figura do segredo bancário. [...]

4.

Apreciando.

4.1.

O sigilo bancário em Portugal foi estabelecido pelo Regulamento Administrativo aprovado pelo Decreto de 25 de Janeiro de 1847; depois pelos artigos 1º, n.ºs 1 e 2, e 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 47 909, de 7 de Setembro de 1967; depois pelos artigos 63º, n.º 1 e 64º do Decreto-Lei n.º 644/75, de 15 de Novembro; depois pelos artigos 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 729-F/75, de 22 de Dezembro; depois pelo Decreto-Lei n.º 2/78, de 9 de Janeiro; e, atualmente, pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

Presentemente importa, nuclearmente, perspetivar a seguinte a legislação:

Artigo 2º nº 2 do CPC:

«A todo o direito… corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em Juízo …bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.»

Artigo 265º nº3 do CPC:

«Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.»

Artigo 417º nº 1 do CPC:

Dever de cooperação para a descoberta da verdade

1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. […]

3. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: […]

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4.

4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

Artigo 135.º do CPP

Segredo profissional

1 — Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar -se a depor sobre os factos por ele abrangidos. […]

3 — O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 — Nos casos previstos nos números 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

Artigo 78.º do DL 298/92 de 31.12:

Dever de segredo

1 - Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.

Artigo 79.º

Exceções ao dever de segredo

1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.

2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:

a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;

b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;

c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respetivas atribuições;

d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;

e) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;

f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo. [...]

4.2.

In casu.

Em primeiro lugar, e tanto quanto alcançamos sobre o teor da pretendida informação bancária, a qual, parece, apenas se reportava a contas dos interessados do inventário, cumpre dizer que não estamos perante uma recusa legítima dos bancos em prestarem a informação solicitada.
 
Na verdade, o segredo bancário apenas se coloca relativamente a pessoas que possam ser consideradas terceiros relativamente à relação jurídica de depósito que se constitui entre o banco e o depositante.

Obviamente que o segredo não pode pôr-se, entre as partes de um contrato de depósito bancário, ou seja, entre o Banco depositário e o cliente depositante.

Assim se concluindo, versus o decidido na 1ª instância, que o segredo bancário inexistia, pelo que, sendo a recusa dos bancos ilegítima, tal a própria julgadora deveria ter o declarado e, consequentemente, ordenar-lhes a impetrada informação.

4.3.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda…

Como é consabido e constituem doutrina e jurisprudência uniformes, os valores tutelados pelo sigilo bancário são de duas ordens, a saber:

- A primeira, de cariz mais genérico, atinente à proteção das relações de confiança e segurança entre as instituições bancárias e os seus clientes, tidas como indispensáveis ao normal desenvolvimento do modelo económico adotado pois que assim se captam poupanças e se evita a fuga de capitais.

- A segunda, de índole mais específica ou restrita, concernente à proteção do respeito pela reserva da vida privada que muito tem a ver com a própria dignidade do indivíduo, como emanação do art. 26.º, n.º 1, da CRP – cfr. Acs. do STJ de 28.6.2006, dgsi.pt p. n.º 2178/06-3 e de 12.04.2007, p. 07P1232 e Acordão Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 2/2008, de 13.02.2008, processo 07P894.

Todavia, e versus o que sucede com outros direitos de maior jaez, valor ou dignidade, como o direito à vida ou à integridade física, os quais se apresentam como direitos absolutos ou tendencialmente e quasi absolutos ou intangíveis, o direito ao sigilo bancário, não assume, comparativamente com outros, tal natureza.

Podendo e devendo ceder perante a necessária proteção de valores ou interesses que, na terminologia legal, se mostrem «preponderantes» e que, assim, consequentemente, devem ter «prevalência».

Para aferir, ou não, de tal prevalência há, desde logo, que concluir se o direito em conflito se mostra, ou não, axiologicamente mais valioso – cfr. Acs. da RL de 12-05-2009, p. 341/06.3TBPDL-A.L1-7 e de 30.06.2009, p. 1208/09.9YRLSB-6 in dgsi.pt,

4.4.

Mas tal não basta.

Importa ainda dilucidar o concreto circunstancialismo envolvente do direito conflituante, vg. no que ao cumprimento do ónus da prova tange.

Na verdade, urge que a parte, por sua iniciativa, não possa, razoavelmente, obter meio probatório mais adequado e idóneo à prova do respetivo facto.

Efetivamente, e no que ao caso interessa, há que dizer que a tutela atribuída ao segredo bancário impede que se obtenham informações sobre contas e seus titulares antes de se descartarem outras formas de obter o mesmo resultado.

Mas se tal meio de prova for de muito difícil - diabólica probatio –, ou de impossível consecução, e só puder ser obtido com o concurso de terceiro, então, este, em princípio, terá o dever de colaborar no sentido de tal prova – artº 519º do CPC.

Exceto se o terceiro estiver vinculado ao segredo profissional. E então e só então, como no caso acontece, competirá apreciar da valoração dos interesses conflituantes em presença para aferir se o sigilo deve, ou não, ceder.

Na verdade, o direito à prova constitui um verdadeiro direito subjetivo.

E ainda que este direito não conceda a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, a parte só deve soçobrar na pretensão deduzida em juízo por dificuldades inultrapassáveis de obtenção dos meios de prova que, por sua iniciativa pessoal, razoavelmente, sem o concurso de outrem ou de terceiro, não esteja em condições de conseguir – cfr. Ac. do STJ de 17.12.2009, dgsi.pt. p. 159/07.6TVPRT-D.P1.S1.

4.5.

Destarte, e no caso que nos ocupa, o direito em oposição com o sigilo bancário é o direito à descoberta da verdade material e, assim, à realização da justiça.

Certo é que este direito, em tese, se assume com uma magnitude ou valor superior ao direito ao sigilo.

Efetivamente, o interesse público na administração da justiça e o princípio constitucional da tutela judicial efetiva assumem maior peso jurídico e podem justificar o sacrifício do segredo bancário em prol do direito a produzir prova dos factos invocados, desde logo pela aplicação do disposto no artº 335º do CC. – cfr. Acs. da RL de 19.11.2009 e de 06.04.2010, ps. 901/07.5TYLSB-D.L1-6 e 120-C/2000.C1; Acs. do STJ de 10.12.1997, p. 97A921, de 24.04.2002, p. 01S4428, de 02.12.2004, p. 04S1284 e de 07.10.2010, p. 26/08.6TBVCD.P1.S1, todos in dgsi.pt.

Mas importa ainda apurar, na tese restritiva supra exposta e que temos por mais defensável, se in casu, perante os contornos do mesmo e as possibilidades e ónus probatórios presentes, se justifica a quebra do sigilo.

Para tanto cumpre atentar nos factos probandos na ação e na natureza e relevância dos interesses da parte que os afirmou para tema de prova na economia do pedido e objeto do processo.

4.6.

No caso sub iudice o cerne da ação passa pelo apuramento, ou não, de quantias depositadas em contas bancárias dos interessados na partilha.

Já se sabe que o objeto do inventário é a partilha dos bens comuns do ex casal.
Tal partilha tem de ser efetivada o mais justa e equilibradamente possível.

Tal justiça e equilíbrio alcançam-se, lógica e necessariamente, pela identificação, em juízo, de todos os bens a partilhar.

Este desiderato constitui um verdadeiro direito subjetivo dos interessados no inventário, o qual tem na sua génese o primordial direito de propriedade, constitucionalmente atribuído.

Está, assim, em dilucidação e sub sursis, a justa decisão e a boa composição do objeto do pleito.

Por outro lado, não se vislumbra modo ou meio, diverso ou alternativo, adequado e apropriado, através do qual os interessados, rectius a interessada – pois que ela, versus o interessado, deu o consentimento para a informação bancária - possa tomar conhecimento das verbas eventualmente depositadas.

Ou seja, se não for por esta via, à autora pura e simplesmente falece o seu direito à prova e, consequentemente, à possibilidade da tutela efetiva da pretensão por ela invocada.

Não pode ser! O simples senso comum, a sensatez e a razoabilidade impõem, inelutável e axiomaticamente, esta conclusão.

E não podendo as regras de direito, como, sobretudo, a interpretação das mesmas operada, contender e postergar estas naturais emanações ínsitas no devir do quotidiano e na natureza das coisas.

Nesta conformidade, há apenas que concluir que, no caso vertente, o sigilo bancário deve ceder pois que os elementos bancários peticionados pelo Sr. Notário são essenciais para o apuramento da verdade e a possível realização da justiça material.

Entendimento este que, aliás, tem vindo a ser sufragado pela generalidade da jurisprudência em casos similares - cfr Acs. da RC de 05.12.2006, p. 2294/06.9YRCBR, de 10.03.2015, p. 561/08.6TBTND-A.C1, de 28.04.2015, p. 46/14.1TBMBR-A.C1, e decisão sumária de 17.10.2017, p. 5911/17.1T8CBR-A.C1, in dgsi.pt.

Veja-se, para caso muito similar ao presente, o seguinte aresto: Ac. da RL de 04.12.2012, p. 1555/09.0TBALM-A.L1-7:

«Estando demonstrado em processo de inventário que as contas bancárias de que o inventariado era titular foram movimentadas e liquidadas por terceiro depois da sua morte e o respetivo saldo levantado através da emissão de um cheque, deve ser ordenado o levantamento do segredo bancário, em ordem a que o banco possa informar o tribunal em que conta foi depositado o cheque, quem é titular dessa conta e juntar aos autos o talão de depósito do cheque assinado pelo depositante ou o talão de levantamento, caso não tenha sido depositado, uma vez que só na posse dessa informação os herdeiros poderão exercer o seu direito de acesso à herança».

[MTS]