"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/03/2019

Jurisprudência 2018 (198)


Venda executiva;
efeito translativo; momento

 
1. O sumário de RE 6/12/2018 (1866/14.2T8SLV-B.E1) é o seguinte:

I - A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º als. a) a c) do Código Civil.

II - Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão.

III – Na venda por leilão eletrónico, a adjudicação, cuja decisão é da competência do agente de execução, deve ser realizada nos termos previstos para a venda por propostas em carta fechada, por força da parte final do artigo 8º, nº 10, do Despacho n.º 12624/2015 da Ministra da Justiça. Esse regime é o que se acha no artigo 827º e inclui a emissão pelo agente de execução de título de transmissão a favor do proponente adjudicatário.

IV – Tendo a executada pretendido liquidar a sua responsabilidade em data anterior à emissão do título de transmissão, apenas tinha de pagar o crédito exequendo e as custas, nos termos do nº 1 do art. 847º do CPC e não também os créditos reclamados, nos termos do nº 2 do mesmo preceito.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), coloca como única questão à apreciação deste Tribunal, saber se quando a executada/recorrente solicitou à agente de execução o IBAN para proceder ao pagamento da quantia exequenda e juros estava já consumada ou não a venda executiva. [...]

Como se extrai do relatório supra, tendo a executada pretendido efetuar a liquidação da sua responsabilidade (pagamento do crédito exequendo e custas) em 08.06.2018, foi-lhe negada essa pretensão, num primeiro momento pela Sr.ª Agente de Execução e, posteriormente, pela decisão recorrida, onde se considerou que desde de 29.05.2018, data da aceitação da proposta de maior valor, «havia “venda executiva”, sendo, por esse facto, a manifestação de pagamento voluntário da executada, porque posterior ao referido evento processual (ou seja, porque posterior à venda), subsumível, ao nível da extensão ou grandeza dos valores a liquidar, ao n.º2 do art.º 847.º do Cod. de Proc. Civ.», concluindo que «não poderia a Sr.ª AE liquidar a responsabilidade da executada em conformidade com a vontade expressa da mesma, já que essa vontade não tinha cobertura legal.»

Contra esse entendimento se insurge a executada/recorrente, sustentando que a venda só foi efetuada com a emissão do título de transmissão, que ocorreu a 11.06.2018.

Portanto, a solução da questão suscitada radica, como vimos supra, em saber em que momento se deve considerar efetuada a venda judicial em processo de execução, sabido que, nos termos do disposto no art.º 847º, nº 1, do CPC, se o requerimento para liquidação da responsabilidade do executado for feito antes da venda ou adjudicação de bens, liquidam-se unicamente as custas e o que faltar do crédito do exequente.

No caso em apreço está-se perante a venda executiva de um imóvel mediante venda em leilão eletrónico, a qual se acha regulada no art.º 834º do CPC, em que a proposta de maior valor foi aceite e considerada válida.

A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa – art.º 879º als. a) a c) do CC.

Mas, além dos efeitos obrigacionais e do efeito translativo comuns a qualquer venda, a venda executiva produz ainda outros efeitos tais como o extintivo, registral, represtinatório e efeito sub-rogatório [...]. 

No que respeita ao efeito translativo, a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (art.º 824º, nº 1, do Código Civil).

Na venda negocial (ou privada) a transferência dá-se por mero efeito do contrato, ou seja, a transferência não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço (art.º 886º do Código Civil, que dispõe: “Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”).

Porém, a situação é diferente na venda executiva, porquanto nela, de acordo com o art.º 827º, nº 1, do CPC – norma referente à venda por propostas em carta fechada - os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, agente de execução que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito [...], comunica seguidamente a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do art.º 824º do CC.

A venda em leilão eletrónico, como é a situação dos autos, foi eleita pelo legislador como a preferencial no caso de venda de bens imóveis e móveis penhorados, “nos termos a definir por portaria do membro do Governos responsável pela área da justiça” (art.º 837º, nº 1, do CPC).

Essa Portaria é a 282/2013 [...], de 29.08, que tem como objeto regulamentar, entre outros aspetos das ações executivas cíveis, os termos da venda em leilão eletrónico de bens penhorados – al. j), do nº 1, do art.º 1º -, o que ocorre nos arts. 20º a 23º, prevendo o primeiro destes normativos que o leilão eletrónico se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça.

O Despacho nº 12.624/2015, de 09.11, da Ministra da Justiça, veio precisamente definir como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores e homologar as regras do sistema aprovadas por essa entidade.

Quanto ao regime por que se rege a venda em leilão eletrónico, decorre dos nºs 2 e 3 do art. 837º do CPC que:

- a publicitação segue as regras gerais do art.º 817, nºs 2 a 4;

- no mais aplicam-se as regras privativas dos artigos 20º a 26ª da Portaria 282/2013, sem prejuízo do Despacho 12.624/2015;

- e, em tudo o que não estiver especialmente regulado nelas, as regras da venda em estabelecimento de leilão, em rigor, as constantes nos artigos 834º nºs 3 e 4 e 835º.

Dir-se-ia pois, que a contrario não se remete para as regras comuns, salvas as do artigo 817º, nºs 2 a 4, do CPC. 

Mas não é assim, pois como explica Rui Pinto [A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa-2018, p. 871 e seguintes.], «a venda em leilão eletrónico é uma das “restantes modalidades de venda” a que se refere o nº 2 do artigo 811º, pelo que, no que não estiver regulado nos níveis normativos referidos nos nºs 2 e 3 do artigo 837º, são de aplicar residualmente, tanto as normas do regime da venda mediante propostas em carta fechada a que o dito artigo 811º nº 2 atribui uma aplicabilidade geral – os artigos 818º, 819º, 823º e 828º -, como, ainda, as disposições gerais dos artigos 811º a 815º e 842º a 845º que iniciam a Subsecção V em que se acha o artigo 837º.»

E, mais adiante, no que ao caso importa:

«A adjudicação, cuja decisão é da competência do agente de execução, deve ser realizada nos termos previstos para a venda por propostas em carta fechada, por força da parte final do artigo 8º nº 10 do Despacho n.º 12624/2015 da Ministra da Justiça. Esse regime é o que se acha no artigo 827º e inclui a emissão pelo agente de execução de título de transmissão a favor do proponente adjudicatário.

Deve, a este propósito, ser notado que o mesmo nº 10 estabelece um prazo de dez dias, contados da notificação da conclusão do leilão, para o agente de execução titular do processo dar cumprimento a toda a tramitação necessária para que a proposta se considere aceite e o bem seja adjudicado ao proponente». 

Face ao disposto nos citados preceitos legais, conclui-se que na venda executiva por leilão eletrónico a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento integral do preço e a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão e a emissão do respetivo título de transmissão - o instrumento de venda.

No caso dos autos, o que se verifica é que, na data em que a executada pretendeu liquidar a sua responsabilidade na execução (08.06.2018) [...], a agente de execução ainda não havia emitido o título de transmissão, que apenas o foi em 11.06.2018, pelo que a venda ainda não se mostrava concretizada.

É que, segundo o citado art.º 827º, nº 1, do CPC, a propriedade da coisa ou do direito não se transfere por mero efeito da venda, como sucede no direito substantivo, dada a sua natureza real e não obrigacional [arts. 408º, nº 1, 874º, e 879º, al. a), e 578º nº 1 todos do CC], mas só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução no caso de venda por propostas em carta fechada/venda em leilão eletrónico (no caso da venda por negociação particular com a outorga do instrumento da venda), para o que se torna necessário que se verifique mostrar-se paga a totalidade do preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão [...].

Ora, tendo a executada pretendido liquidar a sua responsabilidade em data anterior à emissão do título de transmissão, apenas tinha de pagar o crédito exequendo e as custas, nos termos do nº 1 do art. 847º do CPC e não também os créditos reclamados, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, como entenderam a agente de execução e a Sr.ª Juíza a quo.

Deve, assim, possibilitar-se à executada liquidar a sua responsabilidade e dar-se sem efeito o ato da venda (art. 839º, al. c), do CPC)."


[MTS]