"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/03/2019

Jurisprudência 2018 (190)


Revisão de sentença estrangeira;
divórcio consensual; escritura pública



1. O sumário de RE 26/11/2018 (decisão singular) (149/18.8YREVR) é o seguinte:

O facto de a lei processual brasileira consagrar (art.º 733.º do CPC da República Federativa do Brasil) a possibilidade da dissolução do casamento, por divórcio consensual, ser efectivada por via administrativa, através de escritura pública, não obsta à aplicação dos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A única questão que importa apreciar é a de saber se estão ou não verificados os requisitos legais para a revisão e confirmação da “decisão” proferida no dia 08.03.2018, que dissolveu o casamento celebrado entre requerente e requerido, já que o tribunal conhece oficiosamente das condições de revisão e confirmação, em conformidade com o previsto no art.º 984.º do CPC.

Estando em causa uma sentença estrangeira incidindo sobre direitos privados, a sua eficácia em Portugal, i.e., o reconhecimento no Estado do foro dos efeitos que lhe cabem no Estado de origem depende da sua revisão e confirmação por um tribunal português (n.º 1 do art.º 978.º do CPC). [...]

Na espécie, considerando que não estamos em presença de uma sentença proferida por um tribunal estrangeiro, mas antes perante uma escritura pública, celebrada por um Tabelião de Notas da cidade de Coroaba, Estado de São Paulo, e outorgada por Requerente e Requerido, nos termos da qual foi dissolvido o casamento entre ambos celebrado, importa, desde logo, averiguar se o acto, com natureza administrativa, que consubstancia o divórcio entre Requerente e Requerido, pode ser equiparado a uma sentença para efeitos da sua revisão e confirmação.

Dispõe o Código Processo de Processo Civil da República Federativa do Brasil, aprovado pela Lei n.º 13.105/2015, de 16 de Março de 2015:

“(…) Art.º 731.º - A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisitos legais, poderá ser requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão:

I - as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns;

II - as disposições relativas à pensão alimentícia entre os cônjuges;

III - o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e

IV - o valor da contribuição para criar e educar os filhos.

Parágrafo único. Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos art.º 647 e 658.

Art.º 732.º - As disposições relativas ao processo de homologação judicial de divórcio ou de separação consensuais aplicam-se, no que couber, ao processo de homologação da extinção consensual de união estável.

Art.º 733. - O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art.º 731.º.

§ 1º - A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

§ 2º - O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. (…)”. [...]

Tendo em conta o teor da escritura pública, lavrada em 08.03.2018, onde se lê, nomeadamente, “(…) assim, em cumprimento ao pedido e vontade dos outorgantes e reciprocamente outorgados, atendidos os requisitos legais, pela presente escritura, nos termos do artigo 733.º do Novo Código de Processo Civil Brasileiro e à luz da interpretação que lhe possa ser dada em razão do advento da Emenda Constitucional n.º 66 fica dissolvido o vínculo conjugal entre eles que passam a ter o estado civil de divorciados”, e do que deixámos exposto, resulta que a escritura pública mencionada tem força igual à das sentenças que decretam o divórcio por mútuo consentimento.

Por essa razão, cumpridos os requisitos legais e nos termos do artigo 733.º do Código de Processo Civil da República Federativa do Brasil e da Emenda Constitucional 66/10, foi decretado o divórcio consensual entre Requerente e Requerido e extinto o vínculo matrimonial que mantinham, passando ao estado civil de divorciados, por escritura pública de divórcio, outorgada em 8 de Março de 2018."

Esta decisão foi proferida pela entidade brasileira legalmente competente para o efeito.

“Para estas situações em que a autoridade administrativa estrangeira decreta o divórcio, desde há muito que se sedimentou a interpretação jurisprudencial no sentido de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 1094º (actualmente art.º 978.º), n.º 1 do Código de Processo Civil, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal” [Ac. do STJ de 25.06.2013, proferido no proc. n.º 623/12.5YRLSB.S1 [...]].

Tal como se considerou no Ac. do STJ de 22.05.2013 [Proferido no proc. n.º 687/12.1YRLSB.S1 [...]], “a interpretação do acórdão sob recurso do que seja uma decisão da autoridade administrativa estrangeira peca por demasiado restritiva.

O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do acto administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados.

Do ponto de vista formal apenas releva que o acto administrativo provenha efectivamente duma autoridade administrativa.

Se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo.

Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 1/06/1970).

Acresce que se, assim não fosse, “estava-se a denegar a força do dito acto, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade”, além de que, continua o citado acórdão, “esta natureza meramente contratual da escritura não resulta dos seus termos.

Os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o Tabelião – notário – não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais.

Estamos, pois, perante uma decisão homologatória, logo constitutiva do divórcio”.

A decisão revidenda não consta de uma sentença, mas sim de uma escritura pública notarial. Todavia, não se pode ignorar que, em muitos Estados, a dissolução do casamento por mútuo consentimento é feita em sede administrativa, donde, como se entendeu no Ac. do STJ, de 12-07-2005, Proc. 05B1880 (rel: Moitinho de Almeida), publicado «in» www.dgsi.pt, deve considerar-se aplicável o processo regulado nos arts. 1094° (actualmente art.º 978.º) e seguintes do Código de Processo Civil, de modo a que tal decisão, sendo válida segundo o ordenamento do país onde foi proferida, possa produzir os seus efeitos em Portugal, porquanto vincula um cidadão português” [Ac. da RG de 11.05.2010, proferido no proc. n.º 45/10.2 YRGMR [...]].

A referida escritura pública pode, por isso, servir de base à presente revisão.

Aliás, no ordenamento jurídico interno, o divórcio por mútuo consentimento é requerido na Conservatória do Registo Civil, onde corre termos e é decretado o divórcio e declarada a dissolução do casamento pelo Conservador do Registo Civil, verificados determinados circunstancialismos (cfr. art.º 14.º do Dec.-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro)."

[MTS]