"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/03/2019

Jurisprudência 2018 (188)


Decisão-surpresa; 
omissão do dever de cooperação*


1. O sumário de RG 31/10/2018 (1101/15.6T8PVZ-C.G1) é o seguinte:

I - O princípio do contraditório, que se reporta aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes, é hoje entendido como um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.

II - O exercício e a concretização deste princípio, numa concreta situação, não está dependente ou sujeita a um qualquer e prévio julgamento incidente sobre a solidez ou consistência substancial do eventual direito que, com a sua consagração e em decorrência do seu cumprimento, se pretendeu salvaguardar ou exercer.

III - O princípio do contraditório, envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

IV - Estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como fundamento da nulidade que invoca alega o Recorrente que o tribunal proferiu decisão sem que previamente tenha dado adequado cumprimento ao princípio do contraditório, como devia, razão pela qual terá havido uma omissão, por parte do tribunal, do exercício efectivo deste princípio, a qual é geradora de nulidade da decisão recorrida.

Como fundamento e, em síntese, por Decisão proferida a 10 de Novembro de 2016, confirmada pelo Douto Tribunal da Relação e já transitada em julgado foi a Recorrida condenada a liquidar à Recorrente, a quantia de €279.159,2, acrescida de juros, sendo que, na mesma Decisão, foi a Recorrente e em sede de Reconvenção condenada a liquidar à Recorrida a quantia de €62.582,77, acrescida de juros.

Ora, sucede que após a decisão, confirmada por Acórdão de Relação, a Recorrida deu início à alienação de todo o seu património imobiliário, causa da providencia cautelar de arresto interposta, tendo a Recorrente interposto execução em conformidade com o seu direito e ainda, interposto procedimento cautelar de arresto sobre os bens que a Recorrida pretendia alienar.

Tal procedimento cautelar de arresto foi liminarmente indeferido, não com o fundamento na não verificação daquele por falta de pressupostos processuais que levam ao seu decretamento, mas na suposta inexistência global do direito e do crédito da Recorrente sobre a Recorrida e, assente numa eventualidade futura de que a Recorrida pudesse demonstrar em juízo a existência de um direito sobre a Recorrente e, na eventual hipótese de aquele direito pudesse vir a ser superior ao crédito da Recorrente, o qual já confirmado por Decisão transitada. [...]

Ora, o princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3 C.P.C.) visa facultar à parte a oportunidade de se pronunciar sobre os pedidos, ou sobre os argumentos, de direito ou de facto, eventualmente formulados pela outra parte, previamente ao do Tribunal, e que tem uma incidência concreta, relativamente a toda e qualquer questão suscitada no processo, procurando evitar as proibidas decisões-surpresa.

É esta a ratio que subjaz ao pensamento que presidiu o legislador aquando da criação da norma jurídica invocada e que justifica que o juiz deva facultar às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre qualquer questão que as possa afectar e que ainda não tenham tido possibilidade de contraditar, mesmo tratando-se de questões meramente de direito e que sejam de conhecimento oficioso.

O certo é que o Despacho-Sentença sub judice acaba por assumir a natureza, pelo menos para o Recorrente, de decisão surpresa, pois que não foi precedido de um acto, que o mesmo considera legalmente exigível, direccionado ao exercício do contraditório relativamente ao elemento – “do saldo positivo a favor do Recorrente na liquidação” – do qual o Julgador se socorreu para proferir decisão sumária. [...]

Assim, o Tribunal “a quo” ao proferir uma decisão e, ao violar o dever de ficar adstrito ao pedido formulado pelas partes, para impedir que se configurem os conhecidos vícios de decisões, sucumbe na presente Decisão, designadamente ao ter um “entendimento” muito para além do pedido formulado, designadamente o pedido realizado pelo Recorrente.

Pedido a que não corresponde qualquer contrapartida formulada pela Recorrida no âmbito de qualquer compensação, não consubstanciado por falta de concretização dos factos pela sociedade Y, Lda. [...]

Atento o exposto, entende também o recorrente que o despacho liminar sentença recorrido padece do vício de excesso de pronúncia, o que configura fundamento de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al.ª d) C.P.C., e que ora se invoca, com as devidas e legais consequências. [...]
 
O exercício e a necessidade de concretização deste princípio do contraditório, numa concreta situação, não está dependente ou sujeita a um qualquer e prévio julgamento incidente ou tendente a indagar e esclarecer da solidez ou consistência substancial do eventual direito que, através da sua consagração e cumprimento, se pretenda salvaguardar ou exercer.

Ora, conforme se dispõe no artigo 3, nº 3, do C.P.C., “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenha tido a possibilidade de, agindo com a diligência devida, sobre elas se pronunciarem”. [...]

Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, numa “razoável interpretação concatenada destes preceitos, importa concluir que a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.

A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as decisões que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas.

O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstractamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspectivado como sendo possível.
 
Ou seja, estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito”. [Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, proferido no processo nº 572/11.4TBCND.C1, in www.dgsi.pt.].

E assim sendo, deferida deve ser pretensão de nulidade, por omissão dessa notificação, pois não foi observada ou cumprida a lei, com prejuízo do dos direitos de defesa da Recorrente.

Acresce que, compulsado o Despacho Liminar-Sentença proferido constata-se que o Julgador, por força de um raciocínio que expende acerca da “alegada falta de demonstração de saldo positivo a favor do Recorrente, na liquidação da sentença”, considerou que, no caso que nos ocupa, “caberia à Requerente, nesta sede alegar factos que demonstrasse que a liquidação da obrigação ilíquida resultaria num saldo positivo a seu favor”

Sucede que do requerimento junto aos autos de processo de execução comum, com a referência citius n.º 29169122, bem como, se encontra patente e donde se retira do documento n.º 4, junto à P.I., resulta um saldo bastante positivo a seu favor do Recorrente.

Contudo, se dúvidas houvesse quanto à alegada titulação do direito de crédito do Recorrente nos termos apresentados pelo Recorrente, sempre deveria o Tribunal a quo convidar o Recorrente a esclarecer o que se julgasse conveniente, pelo que, entende o Recorrente entendimento, só se pode primar por uma decisão sem produção de prova quando dos autos resultem todos os elementos e hipóteses que permitem figurar a acção como um todo.

E assim sendo, o Tribunal deveria ter proferido despacho a providenciar ou pelo suprimento dessas excepções, ou pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos estatuídos no n.º 2 do art. 590.º CPC ou, finalmente, convidar ao suprimento das insuficiências ou imprecisões ou concretização da matéria de facto alegada, conforme n.º 4 da mesma norma.

Não tendo assim procedido, foi omitida a prática de um acto prescrito por lei, estando-se, assim, perante o cometimento de uma nulidade processual prevista no n.º 1 do art. 195.º C.P.C., por violação do estatuído nos arts. 3.º, n.º 3, 552.º, e 590.º do mesmo Código, o que aqui se invoca, com as devidas e legais consequências.

Isto considerado e à luz de tudo o exposto parece-nos de todo evidente, sem necessidade de muito aprofundadas considerações, que ao Recorrente assiste inteira razão, havendo um encadeamento ou conexão entre os dois fundamentos invocados como alicerçantes das nulidades que invoca." 
 
3. [Comentário] É com agrado que se vê o Recorrente alegar a nulidade da decisão-supresa por excesso de pronúncia por violação do dever de cooperação do tribunal (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC). Efectivamente, não pode ser outra a solução por estas razões:
 
-- Todo e qualquer recurso tem por objecto uma decisão;
 
-- Sendo assim, o objecto do recurso nunca pode ser uma nulidade processual cometida na instância recorrida, mas apenas o reflexo dessa nulidade na decisão impugnada; aliás, cabe recordar que a nulidade processual pressupõe que a mesma influa no exame ou decisão da causa (art. 195.º, n.º 1, CPC), pelo que não há nulidade processual sem haver reflexo nesse exame ou nessa decisão;
 
-- Logo, a decisão-surpresa impugnada é nula por excesso de pronúncia, porque, tendo omitido a audição prévia das partes, conhece de matéria que, nessas circunstâncias, não podia ter conhecido.
 
MTS