"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/03/2019

Jurisprudência 2018 (203)


Competência material;
reenvio prejudicial

1. O sumário de RL 20/12/2018 (19155/16.6T8LSB.L2-6) é o seguinte: 

I - A acção destinada a efectivar a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público, é regulada no Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, nos termos da qual «correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (art.º 1º nº 2).

II - A responsabilidade que se imputa ao Banco de Portugal, Fundo de Resolução e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) é fundada em normas de direito administrativo, na sua actividade ou qualidade de sujeito de direito administrativo, não numa eventual actividade ou qualidade de sujeito de direito privado, de direito comercial.

III - O intermediário financeiro é civilmente responsável perante os seus clientes por actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários – cf. artigos 324.º, n.º 1, do CVM e 165.º e 800.º, n.º 1, do Cód. Civil.

IV - Não há denegação de justiça, violadora do disposto nos artigos 20.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa, nem quando o autor litiga com plena liberdade e com respeito pelo consagrado no artigo 20.º do mesmo diploma legal, podendo sempre intentar a respectiva acção no tribunal competente.

V – O reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE] deve ter por objecto a interpretação ou a validade do direito da União Europeia, e não das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal.

VI - O TJUE não é competente para sindicar a decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, proferida em processo pendente, nos termos da qual se declarou incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da causa, por considerar que a competência para o efeito estava legalmente atribuída a outro órgão jurisdicional desse Estado-Membro.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Questão Prévia: Do Pedido de suspensão da instância para efeitos de Reenvio Prejudicial:

Veio o Autor e Recorrente pedir que se questione o Tribunal de Justiça da União Europeia [doravante TJUE] quanto à validade da decisão proferida pelo Tribunal a quo na parte em que julgou extinta a instância relativamente ao Réus BES, em Liquidação, por inutilidade superveniente da lide, e declarou a incompetência total em razão da matéria, em relação aos Réus CMVM, Banco de Portugal e Fundo de Resolução.

Em concreto, pretende que o TJUE se pronuncie sobre a validade daquelas decisões, proferidas sem recurso ao princípio da imediação e sem uso cabal de todos os meios de prova, no sentido de decidir se as mesmas violam ou não o princípio do julgamento de forma justa e equitativa, consagrado no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Salvo o devido respeito, entendemos que o pretendido reenvio prejudicial não só é inadmissível como desnecessário e intempestivo.

Vejamos,

O artigo 267.º [ex-artigo 234.º do TCE] do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [doravante TFUE] dispõe:

«O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
 
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
 
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
 
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.


Sempre que uma decisão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão dessa natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível».

Resulta à saciedade que o referido normativo legal atribui ao TJUE a competência para decidir, a título prejudicial, sobre a correcta interpretação dos Tratados ou sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Essencialmente, um reenvio deve ter por objecto a interpretação ou a validade do direito da União Europeia, e não das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal.

Ora, o que o Recorrente pretende com o reenvio prejudicial não é que o TJUE se pronuncie sobre a interpretação ou a validade do direito da União Europeia, nem está em causa no processo a apreciação de qualquer questão da natureza das que podem ser submetidas à apreciação do TJUE, que se inscreva dentro da esfera de competência deste órgão jurisdicional da União Europeia.

O que o Recorrente pretende com o pedido de reenvio é antes a sindicância da decisão recorrida, questão para a qual o TJUE não é, manifestamente, competente.

Donde, a inadmissibilidade legal do requerimento de reenvio prejudicial apresentado pelo Recorrente.

O TJUE não é competente para sindicar decisão proferida por órgão jurisdicional de um Estado-Membro e, em processos pendentes, esse órgão apenas pode suscitar a intervenção do TJUE, a título prejudicial, se estiver em causa “a interpretação dos Tratados” ou a “a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa.

O reenvio prejudicial só é obrigatório, nos termos do artigo 267.º do TFUE, sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno.

No caso, nenhuma dessas condições se verifica.

Por isso, o pedido de reenvio não só é manifestamente inadmissível, como desnecessário e intempestivo.

Com efeito, o legislador comunitário embora tenha optado por não definir um momento processualmente identificado para a apresentação de um pedido de reenvio prejudicial, a verdade é que estabeleceu que o pedido deve ser feito quando o Tribunal do Estado-membro considere que a decisão de determinada questão “é necessária ao julgamento da causa”.

In casu, o Autor e Recorrente, em bom rigor, também não pode alegar que os factos não são susceptíveis de serem apreciados noutra sede, desde logo face ao entendimento vertido na decisão recorrida de que para julgamento dos presentes autos são competentes os tribunais administrativos, onde a causa poderá ser julgada. 

De outra banda, estando em causa apenas a aplicação de normas de atribuição de competência jurisdicional dos tribunais, também não procede o argumento aduzido pelo Autor e Recorrente de que a declaração de incompetência absoluta dos tribunais judiciais para julgar uma acção para a qual são competentes os tribunais administrativos viola o princípio do julgamento de forma justa e equitativa.

Nem se percebe, salvo o devido respeito, como pode o Autor e Recorrente sustentar, com razoabilidade, que a decisão recorrida viola o princípio do julgamento de forma justa e equitativa, plasmado no artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, pois como da própria decisão recorrida resulta que não está em causa a “apreciação de factos que não são suscetíveis de serem apreciados noutra sede”, mas antes que esta compete a outro Tribunal.

Nada impede o Autor e Recorrente de submeter a sua pretensão ao julgamento dos tribunais administrativos, com todas as garantias de independência e de obtenção de uma decisão justa e equitativa.

Como se refere, a propósito, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7 de Junho de 2018 (Proc.º n.º 18316/16.2T8LSB.L1), citado pela Recorrida CMVM, proferido em processo em tudo semelhante ao presente e em termos que aqui têm também plena aplicação mutatis mutandis, quando o tribunal se declara incompetente em razão da matéria, “[n]ão se encontra inviabilizado ou efectivamente obstaculizado o acesso do apelante aos tribunais para defesa dos seus alegados direitos e interesses - tratasse, tão só, de uma questão de competência em razão da matéria do tribunal, pressuposto processual sobre o qual o tribunal se terá de debruçar anteriormente a apreciar de fundo o litígio (e previamente, aliás, à apreciação de outros pressupostos processuais). O que não impedia o A. de reclamar os seus direitos no tribunal materialmente competente através do processo adequado a esse fim, não sendo negado ao A. o direito a obter uma decisão de fundo e não se vislumbrando aqui qualquer “ilegalidade e constitucionalidade”, não sendo violados nem o art.º 2 do CPC nem os preceitos constitucionais invocados, nem mesmo a citada Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”.

Diga-se, ainda, que a decisão de extinção da instância relativamente ao Réu BES, em Liquidação, baseou-se na definitividade da decisão que produz efeitos equivalentes à sentença que declara a insolvência.

E que o processo de liquidação do BES foi iniciado como consequência da decisão do Banco Central Europeu que revogou a autorização para o exercício da actividade desta instituição de crédito, com efeitos a partir das 19:00 horas do dia 13 de Julho de 2016, decisão que se tornou definitiva, por não ter sido objecto de impugnação por quem quer que seja.

A tudo acresce que, como como melhor explicita a Síntese de Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais [https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=LEGISSUM%3Al14552] “Deve proceder-se ao reenvio a partir do momento em que se torna claro que uma decisão o TJUE é necessária para que um órgão jurisdicional profira a sua decisão e quando esteja em condições de definir, com precisão suficiente, o quadro jurídico e factual do processo, bem como as questões jurídicas que este suscita”.

Ora, não se encontrando ainda estabilizada a questão da competência dos tribunais, por os tribunais judiciais se considerarem incompetentes e os tribunais administrativos ainda não se terem pronunciado, sendo estes ao que tudo indica os tribunais competentes, é desde logo impertinente e inútil colocar a questão pedida pelo Recorrente ao TJUE no actual estado dos autos.

Nesta perspectiva, qualquer decisão sobre o pedido de reenvio prejudicial, pelo menos antes de também os tribunais administrativos terem a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão da (in)competência, assim como sobre as restantes exceções invocadas pelos Réus, seria totalmente contrária aos princípios da pertinência e utilidade, que enformam o mecanismo do reenvio prejudicial."

[MTS]