Facto complementar; conhecimento oficioso;
nulidade da decisão*
I. O sumário de RG 6/12/2018 (2154/17.8T8VRL.G1) é o seguinte:
1 - Nos termos do disposto no art. 5º nº 2 do C. P. Civil, o juiz apenas pode considerar factos que não tenham sido alegados pelas partes quendo os mesmos são instrumentais que resultem da instrução da causa; quando tais factos sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; quando sejam notórios ou quando o tribunal deles tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
2 – Tendo o juiz recorrido à utilização de factos essenciais para a decisão da causa e não alegados, incorreu numa violação do princípio do dispositivo.
3 - Deste modo, tal segmento da decisão é nulo, por aplicação do disposto no art. 615º, nº 1 – d) do C. P. Civil, por consubstanciar a apreciação de uma questão não colocada por qualquer das partes, nomeadamente, pelos Réus a título de exceção.
4 - A mudança de uma servidão deve trazer sérias e reais vantagens para o dono do prédio serviente e não deve prejudicar os interesses do prédio dominante: estes devem ser dignos de ponderação e não meros caprichos ou pura comodidade.
5 - A ponderação dos interesses em jogo deverá ser feita casuisticamente, observando um critério de proporcionalidade.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Relatório
Nos presentes autos, F. S. e M. S., residentes em …, Alemanha, instauraram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra J. P. e a esposa MARIA, residentes na Rua do …, Vila Real, peticionando, a final:
“ (…) a. Reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio rústico identificado em 1º;
1 - Nos termos do disposto no art. 5º nº 2 do C. P. Civil, o juiz apenas pode considerar factos que não tenham sido alegados pelas partes quendo os mesmos são instrumentais que resultem da instrução da causa; quando tais factos sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; quando sejam notórios ou quando o tribunal deles tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
2 – Tendo o juiz recorrido à utilização de factos essenciais para a decisão da causa e não alegados, incorreu numa violação do princípio do dispositivo.
3 - Deste modo, tal segmento da decisão é nulo, por aplicação do disposto no art. 615º, nº 1 – d) do C. P. Civil, por consubstanciar a apreciação de uma questão não colocada por qualquer das partes, nomeadamente, pelos Réus a título de exceção.
4 - A mudança de uma servidão deve trazer sérias e reais vantagens para o dono do prédio serviente e não deve prejudicar os interesses do prédio dominante: estes devem ser dignos de ponderação e não meros caprichos ou pura comodidade.
5 - A ponderação dos interesses em jogo deverá ser feita casuisticamente, observando um critério de proporcionalidade.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Relatório
Nos presentes autos, F. S. e M. S., residentes em …, Alemanha, instauraram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra J. P. e a esposa MARIA, residentes na Rua do …, Vila Real, peticionando, a final:
“ (…) a. Reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio rústico identificado em 1º;
b. Declarar a mudança da servidão, reconhecida no âmbito do processo Comum nº 412/14.2TBVRL e referida nos artigos 7º e 8º para a extrema nascente do prédio dos AA. identificado em 1º;
c. Declarar que a referida servidão é constituída por uma largura de 2 (dois) metros e comprimento de cerca de 60 (sessenta) metros;
d. Condenar os RR a reconhecer tal mudança de servidão;
e. Condenar os RR, na passagem pelo terreno dos AA., a utilizar esta servidão de passagem;
f. Condenar os RR. a abster-se de passar pela anterior servidão (…).
Questões a decidir [...]
Da invocada nulidade da sentença recorrida por violação do disposto no art. 615º, nº 1 – d), do C. P. Civil.
No caso, os [Réus] Recorrentes consideram que a decisão recorrida violou a disposição acima mencionada por a mudança da servidão ter ficado condicionada à retirada, por parte dos Autores, das pedras e limpeza da vegetação espontânea existentes na faixa de terreno por onde os Autores pretendem passe a situar-se a servidão.
Verifica-se existir excesso de pronúncia, gerador da nulidade prevista no art. 615º, nº 1 – d), 2ª parte do C. P. Civil quando o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento, ou seja, quando conheça de pedidos ou causas de pedir não invocadas ou exceções na exclusiva disponibilidade das partes [...]
Esta nulidade resulta da violação do disposto no art. 609º, nº 1 do C. P. Civil, que refere que o juiz não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
O referido normativo consagra um dos princípios que enformam o direito processual civil e que é o princípio do dispositivo que impede o juiz de extravasar o que lhe foi pedido pelas partes. O objeto da sentença tem que coincidir com o objeto do processo.
Paula Costa e Silva [in Acto e Processo, pág. 583] refere que o princípio do dispositivo determina que o tribunal se encontra vinculado, no momento do proferimento da decisão, ao decretamento das consequências que o autor no ato postulativo lhe requera, não podendo decidir-se por um maius ou por um aliud.
Ora, no caso, tal como referem os Réus, a realização de trabalhos futuros no troço indicado pelos Autores para a mudança da servidão, não foi alegada, nem resulta dos temas de prova.
É certo que a existência de pedras e vegetação no dito troço resulta da perícia realizada no âmbito destes autos, o que levou o Sr. Juiz a consignar tal matéria nos factos provados (v. ponto 10), contudo, tal matéria não poderá servir de fundamento factual à solução decretada, de condicionar a alteração da servidão à remoção de tais obstáculos, uma vez que essa factualidade não foi alegada e constitui matéria de exceção ao direito que foi reconhecido e, enquanto matéria de exceção, os factos respetivos são nucleares. Na verdade, os factos que fazem concluir pela existência de obstáculos ao trânsito de veículos pelo caminho por onde se pretende instalar a servidão, não são factos meramente instrumentais, nem complemento ou concretização dos que as partes tenham alegado, em ambos os casos quando tais factos resultem da instrução da causa.
Ora, nos termos do disposto no art. 5º nº 2 do C. P. Civil, o juiz apenas pode considerar factos que não tenham sido alegados pelas partes quando os mesmos são instrumentais que resultem da instrução da causa; quando tais factos sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; quando sejam notórios ou quando o tribunal deles tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções. [...]
Os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da ação/reconvenção/defesa por exceção. (v. Ac. R. C. de 23/2/2016 in www.dgsi.pt) [...]
Ora, como acima foi dito, a intervenção oficiosa do tribunal subsequente à instrução da causa só poderá ter por objeto factos instrumentais ou factos essenciais mas que sejam complementares ou concretizadores de outros alegados pelas partes, pois que quanto aos factos essenciais “nucleares” que constituem a causa de pedir ou nos quais que se baseiam as exceções, continua a manter-se sem restrição o princípio do dispositivo.
No caso, tal como acima se disse, os factos em análise não são factos instrumentais, nem complementares ou concretizadores, pelo que, em observando o disposto no art. 5º do C. P. Civil, não podia o tribunal, oficiosamente, recorrer à sua utilização para a decisão da causa e ao fazê-lo incorreu numa violação do princípio do dispositivo.
Deste modo, tal segmento da decisão é nulo, por aplicação do disposto no art. 615º, nº 1 – d) do C. P. Civil, por consubstanciar a apreciação de uma questão não colocada por qualquer das partes, nomeadamente, pelos Réus a título de exceção.
Declara-se pois, a nulidade da sentença na parte em que condicionou a modificação da servidão à retirada, por parte dos Autores, das pedras e limpeza da vegetação espontânea existentes na faixa de terreno por onde os Autores pretendem passe a situar-se a servidão.
Tal nulidade é apenas e tão só de tal segmento da decisão (v- art. 195º, nº 2 do C. P. Civil)."
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a decisão da RG na parte relativa à nulidade da decisão recorrida.
Importa começar por ter presente que a mudança da servidão foi requerida pelos proprietários do prédio serviente. Deste modo, a aceitação da mudança da servidão requerida por esses proprietários, desde que estes ofereçam as condições necessárias para permitir a passagem, não atribui "mais" do eles pediram, mas antes "menos".
Acresce que a obtenção da informação, através da prova pericial, de que o troço pelo qual os autores pretendiam que a servidão se realizasse estava coberta de pedras e vegetação corresponde, tipicamente, a obtenção de um facto complementar, não da causa de pedir do autor, mas da defesa do réu. Portanto, o que haveria a analisar era simplesmente se esse facto pode ser considerado um facto complementar da defesa dos réus.
Aliás, não deixa de ser curioso que a RG, depois de ter censurado o conhecimento pela 1.ª instância desse facto complementar, tenha, ela própria, concluído que se "provou[...] ainda que o novo troço tem pedras e vegetação (bem visíveis nas fotos juntas ao relatório pericial), que dificultam o trânsito de veículos e que por isso impediria os Réus de o utilizar na sua plenitude" e, nessa base, tenha julgado (com razão) a acção improcedente. Isto é: a própria RG acabou por aceitar que se tratava de um facto complementar e de um facto complementar da defesa dos réus, dado que reconheceu que o mesmo impediria os réus de se servirem da servidão.
b) Este raciocínio da RG mostra que, para que a RG não atribua a ela própria a nulidade que assaca à decisão da 1.ª instância (decorrente do conhecimento indevido de um facto complementar), a nulidade que se poderia discutir a propósito da decisão da 1.ª instância não era a do excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), mas a do conhecimento de um aliud (art. 615.º, n.º 1, al. e), CPC).
A própria RG tem consciência de que assim tem de ser, porque, apesar de ter concluído que a decisão da 1.ª instância é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), refere que essa "nulidade resulta da violação do disposto no art. 609º, nº 1 do C. P. Civil, que refere que o juiz não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir". Ora, a nulidade que decorre da violação do disposto no art. 609.º, n.º 1, CPC é a da al. e) (não a da al. d)) do n.º 1 do art. 615.º CPC,
A verdade é a que, como acima se referiu, a decisão da 1.ª instância não conheceu de um aliud, mas de um minus, pelo que essa decisão não podia ser considerada nula. Poder-se-ia dizer que, se isto é assim, quanto ao pedido dos autores, não é assim quanto ao pedido dos réus, dado que estes pediram (ou teriam pedido) a improcedência total do pedido (e não uma sua condenação sujeita à condição de os autores retirarem as pedras e limparem a vegetação).
Este argumento é fácil de desmontar, porque, se o mesmo fosse procedente, então qualquer decisão que não atribuísse a absolvição do pedido solicitada pelo réu seria uma decisão nula por ter necessariamente conhecido de mais do que podia conhecer. O assunto merece certamente outras reflexões, mas esta verificação é suficiente para se poder concluir que não pode ser nula a decisão que contraria, no todo ou em parte, o pedido de absolvição do pedido formulado pelo réu.
c) Em conclusão: não há nenhum motivo para considerar nula a decisão da 1.ª instância. O que acórdão da RG espelha é a dificuldade da nossa jurisprudência em lidar com decisões com conteúdo condicional (que, como é evidente, não devem ser confundidas com decisões condicionais, isto é, com decisões que ficam sujeitas, enquanto actos processuais, a uma condição).
MTS
Acresce que a obtenção da informação, através da prova pericial, de que o troço pelo qual os autores pretendiam que a servidão se realizasse estava coberta de pedras e vegetação corresponde, tipicamente, a obtenção de um facto complementar, não da causa de pedir do autor, mas da defesa do réu. Portanto, o que haveria a analisar era simplesmente se esse facto pode ser considerado um facto complementar da defesa dos réus.
Aliás, não deixa de ser curioso que a RG, depois de ter censurado o conhecimento pela 1.ª instância desse facto complementar, tenha, ela própria, concluído que se "provou[...] ainda que o novo troço tem pedras e vegetação (bem visíveis nas fotos juntas ao relatório pericial), que dificultam o trânsito de veículos e que por isso impediria os Réus de o utilizar na sua plenitude" e, nessa base, tenha julgado (com razão) a acção improcedente. Isto é: a própria RG acabou por aceitar que se tratava de um facto complementar e de um facto complementar da defesa dos réus, dado que reconheceu que o mesmo impediria os réus de se servirem da servidão.
b) Este raciocínio da RG mostra que, para que a RG não atribua a ela própria a nulidade que assaca à decisão da 1.ª instância (decorrente do conhecimento indevido de um facto complementar), a nulidade que se poderia discutir a propósito da decisão da 1.ª instância não era a do excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), mas a do conhecimento de um aliud (art. 615.º, n.º 1, al. e), CPC).
A própria RG tem consciência de que assim tem de ser, porque, apesar de ter concluído que a decisão da 1.ª instância é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), refere que essa "nulidade resulta da violação do disposto no art. 609º, nº 1 do C. P. Civil, que refere que o juiz não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir". Ora, a nulidade que decorre da violação do disposto no art. 609.º, n.º 1, CPC é a da al. e) (não a da al. d)) do n.º 1 do art. 615.º CPC,
A verdade é a que, como acima se referiu, a decisão da 1.ª instância não conheceu de um aliud, mas de um minus, pelo que essa decisão não podia ser considerada nula. Poder-se-ia dizer que, se isto é assim, quanto ao pedido dos autores, não é assim quanto ao pedido dos réus, dado que estes pediram (ou teriam pedido) a improcedência total do pedido (e não uma sua condenação sujeita à condição de os autores retirarem as pedras e limparem a vegetação).
Este argumento é fácil de desmontar, porque, se o mesmo fosse procedente, então qualquer decisão que não atribuísse a absolvição do pedido solicitada pelo réu seria uma decisão nula por ter necessariamente conhecido de mais do que podia conhecer. O assunto merece certamente outras reflexões, mas esta verificação é suficiente para se poder concluir que não pode ser nula a decisão que contraria, no todo ou em parte, o pedido de absolvição do pedido formulado pelo réu.
c) Em conclusão: não há nenhum motivo para considerar nula a decisão da 1.ª instância. O que acórdão da RG espelha é a dificuldade da nossa jurisprudência em lidar com decisões com conteúdo condicional (que, como é evidente, não devem ser confundidas com decisões condicionais, isto é, com decisões que ficam sujeitas, enquanto actos processuais, a uma condição).
MTS