"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/05/2021

Jurisprudência 2020 (202)


Revisão de sentença estrangeira;
ordem pública


I. O sumário de RL 27/10/2020 (639/20.8YRLSB-1) é o seguinte:

1 – A natureza e função da ação de revisão de sentença estrangeira implicam que, em primeira linha, e independentemente de outros legitimados, terão legitimidade para esta ação as partes que intervieram na ação revidenda e foram afetados na sentença nela proferida.

2 – Um acordo nos termos do qual uma das partes se obriga a não exigir o cumprimento de qualquer obrigação previdenciária, declara integralmente satisfeitos os pedidos por si deduzidos em ações devidamente identificadas e ainda que aceita a junção do acordo como pedido de desistência, em todos os processos e procedimentos em que o outro contraente seja parte, não permite, seja à luz do direito português, seja à luz do direito brasileiro, a conclusão de que a vontade real das partes correspondia à assunção de uma obrigação de desistência genérica em ações ainda não intentadas.

3 – A al. c) do art. 980º do CPC acolhe a tese da unilateralidade atenuada: o tribunal de revisão não controla a competência do tribunal que julgou de mérito, exigindo-se apenas que os tribunais portugueses não sejam exclusivamente competentes e que a competência do tribunal de origem não seja provocada em fraude à lei.

4 – Para os efeitos da alínea d) do art. 980º do CPC, os requisitos da litispendência e do caso julgado são determinados de acordo com o direito processual de reconhecimento (português), embora sem o efeito de exceção dilatória: a procedência gera uma decisão de mérito de indeferimento do pedido de revisão de sentença relativamente à qual se possa invocar litispendência ou caso julgado.

5 – A reserva de ordem pública internacional é um conceito indeterminado, cujo conteúdo não pode ser definido senão em concreto.

6 – A aplicação de direito privado laboral estrangeiro a relações jurídicas às quais é domesticamente aplicável, em regra, o direito público português, não viola a ordem pública internacional.

7 – Não ofende o princípio constitucional da igualdade uma decisão judicial que aplica a determinados trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, num determinado país, condições diversas das de outros trabalhadores da administração pública portuguesa, exclusivamente em função do circunstancialismo do concreto caso em julgamento.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.2.2.3. Al. f) do art. 980º do CPC: que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português

O requerido alega que a aplicação do direito estrangeiro cogente, no caso concreto, resulta uma contradição flagrante e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional, pelo que deve ter aplicação a exceção de ordem pública internacional, dado que a sentença a rever aplicou direito privado laboral a relações jurídicas às quais é aplicável o direito público português.

Mais argumenta que ofende igualmente a conceção de justiça de direito material, na medida em que os pedidos formulados perante os tribunais de trabalho brasileiros resultam da aplicação da lei portuguesa que se aplicou igualmente a todos os restantes trabalhadores da administração pública portuguesa.

O requerente defendeu não ocorrer ofensa aos princípios da Ordem Pública Portuguesa, no direito interno português.

Apreciando:

Esta alínea f) do art. 980º “exige que a sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”[...]

Com vista a aferir se o resultado do reconhecimento viola a ordem pública internacional deve fazer-se “um exame global, o qual poderá ter em conta os fundamentos da decisão e o processo”, sendo o momento relevante o do reconhecimento da decisão, e não se exigindo, para a verificação deste requisito, um controlo de mérito. “Não é necessário averiguar qual o direito que foi aplicado, nem a forma porque o foi.”[Lima Pinheiro,  [Direito Internacional Privado, Volume III, Tomo II, Reconhecimento de sentenças estrangeiras, AAFDL Editora, 2019, 3ª edição refundida] pgs. 227 a 229]

Deve antes de mais distinguir a ordem pública internacional da ordem pública interna, aqui relevando apenas os princípios da primeira.

“A reserva de ordem pública internacional distingue-se da chamada ordem pública interna tanto pela sua função como pelo seu conteúdo. Pela sua função, porque apenas se destina a intervir, como resulta do exposto, em situações de cariz internacional, obstando a que sejam derrogados nelas, pelo menos quando apresentem alguma conexão com o Estado do foro, os princípios jurídicos de que este não abdica ainda que a situação sub judice se encontre sujeita a uma lei estrangeira. Pelo seu conteúdo, porque, dada a abertura a conteúdos jurídicos estrangeiros e ao reconhecimento de situações jurídicas neles fundadas que é postulada pelo método da conexão adotado pelo DIP português, o conceito de ordem pública internacional tem um alcance necessariamente mais restrito do que o de ordem pública interna, pelo menos na medida em que se reconduza a esta a generalidade das normas de Direito interno inderrogável por efeito da vontade dos interessados ou ius cogens: trata-se, como afirmou o STJ, dos «princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações.”[ Dário Moura Vicente, em Código Civil Comentado, Vol. I, Parte Geral, CIDP-Fdul, Almedina, 2020, pg. 155]

Por vezes a ordem pública é invocada expressamente como atributo de certas regras, o que não implica se tratem de matéria de ordem pública internacional[...].

Isto porque a reserva de ordem pública internacional é um clássico conceito indeterminado, cujo conteúdo não pode ser definido senão no concreto do caso.

Ainda assim, a jurisprudência e a doutrina têm vindo a apontar-lhe algumas caraterísticas fundamentais:

- são leis rigorosamente imperativas, que consagram interesses superiores da comunidade local e estão em divergência profunda comas leis estrangeiras e a cuja aplicação servem de limite[Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II - reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 177];

- “a) a imprecisão; b) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles ); e) a excecionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); d) a flutuação e a atualidade (intervém em função das conceções dominantes no tempo do julgamento país onde a questão se põe); e e) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado Português)” – Ac. STJ de 26/09/17 (Alexandre Reis), citado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa[...] - no qual se indicam como consensuais as normas e princípios constitucionais, em especial as que tutelam direitos liberdades e garantias, bem como os princípios fundamentais da União Europeia, e ainda certos princípios tidos como fundamentais como a boa-fé, os bons costumes, a proibição do abuso de direito, a proporcionalidade, a proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, a proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e as regras basilares do direito da concorrência;

- a sua excecionalidade, cuja intervenção deve reduzir-se ao mínimo, a atualidade ou relatividade temporal, cujo preenchimento se faz em função do sentimento ético-jurídico prevalecente no momento do julgamento e o carater nacional ou relatividade espacial por ser “a expressão da ideia de direito que informa o ordenamento jurídico do foro”[Dário Moura Vicente, local citado, pgs. 155 e 156];

- a sua integração pelos princípios fundamentais da Constituição, especialmente os relativos a direitos fundamentais; normas e princípios de direito internacional e europeu; sendo uma cláusula com intervenção limitada aos casos de violação manifesta ou ostensiva[Luís Barreto Xavier, em Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pgs. 87 e 88].

O primeiro argumento invocado pelo requerido é de que as decisões a rever ofendem a ordem pública internacional do Estado Português por terem aplicado direito privado laboral a relações jurídicas às quais é aplicável o direito público português.

A violação é imputada ao processo e não ao respetivo resultado – e, efetivamente, a condenação de um Estado no pagamento de determinadas quantias a particulares não é um resultado que ofenda a ordem pública internacional.

As relações jurídicas sobre as quais as decisões se debruçaram, ou seja, a relação entre os funcionários dos serviços periféricos externos do Estado Português e este, nesta veste de empregador, são materialmente direito laboral, seja em Portugal, seja no Brasil.

Como já referimos, a estes trabalhadores aplica-se, por via do disposto no art. 2º nº1 do Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.

Este diploma regula o vínculo de trabalho em funções públicas (art. 1º nº1), remetendo parte desse regime para o Código do Trabalho (que, em Portugal, regula o “direito privado laboral”), nos termos do respetivo art. 4º.

Mas, especificamente quanto à aplicação desta lei aos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estabelece o nº5 do art. 1º do diploma que: «A aplicação da presente lei aos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, relativamente aos trabalhadores recrutados para neles exercerem funções, incluindo os trabalhadores das residências oficiais do Estado, não prejudica a vigência:

a) Das normas e princípios de direito internacional que disponham em contrário;
b) Das normas imperativas de ordem pública local;
c) Dos instrumentos e normativos especiais previstos em diploma próprio.

Ou seja, mesmo em termos de direito interno, o direito público aplicável ao caso concreto admite, quanto a certos aspetos, a aplicação de direito “privado” (no sentido de não público) às relações de emprego publico e, concretamente, quanto às concretas relações de emprego público do caso concreto admite a aplicação de normas imperativas de ordem pública local, sem distinguir, obviamente, se tais normas serão de natureza privada ou pública.

O único princípio que conseguimos retirar das normas internas é de que, por regra, às relações de emprego público se aplica direito público, mas que a essas relações também se pode, em determinadas circunstâncias, aplicar direito privado.

Assim sendo, não conseguimos concluir pela existência de um princípio estruturante do sentido ético-normativo da ordem jurídica interna com o conteúdo alegado que obrigue, por via da cláusula de reserva da ordem pública internacional, ao afastamento da aplicação de direito privado laboral estrangeiro a relações jurídicas às quais é domesticamente aplicável o direito público português.

Passando ao segundo segmento da alegação dirigida à invocação da reserva de ordem pública internacional, verifica-se que o princípio alegado como violado é uma regra constitucional que tutela direitos fundamentais, o princípio da igualdade, pelo que sempre termos que verificar se, com esta decisão, resulta uma desigualdade material.

O requerido argumenta a existência de desigualdade no afastamento da lei portuguesa pelos tribunais de trabalho brasileiros dado que a lei afastada por aqueles tribunais foi aplicada igualmente a todos os restantes trabalhadores da administração pública portuguesa.

O princípio da igualdade, encontra-se consagrado na CRP nos seguintes termos: Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (art. 13º, nº 1, concretizando o nº 2 do preceito este princípio geral).

A proteção conferida por este direito abrange a proibição do arbítrio (proíbe diferenciações de tratamento sem justificação objetiva razoável ou identidade de tratamento em situações objetivamente desiguais) e da discriminação (não permite diferenciações baseadas em categorias subjetivas ou em razão dessas categorias).

Na sua vertente de proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como tal[Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, pg. 339].

Valendo como princípio objetivo de controlo esta regra “não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjetivo público a igual tratamento, a não ser que se violem direitos fundamentais de igualdade concretamente positivados (por exemplo, igualdade dos cônjuges) ou que a lei arbitrária tenha servido de fundamento legal para atos da administração ou da jurisdição lesivos de direitos e interesses constitucionalmente protegidos.”[Autores e loc. cit.]

Na vertente de proibição de discriminações a regra não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento. “O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.”[Autores e loc. cit., pg. 340]

Gomes Canotilho e Vital Moreira sublinham ainda que as decisões mais recentes do Tribunal Constitucional continuam a assinalar corretamente que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante, sendo o ponto central da discussão em torno do princípio da igualdade “saber se existe fundamente material bastante para diferenciações de tratamento jurídico, o que nem sempre é fácil de averiguar…”[Autores e loc. cit., pg. 341]

No caso concreto temos trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros que, prestando o seu trabalho no Brasil, se entenderam prejudicados por um ato regulamentar (Decreto Regulamentar nº 3/2013) que procedeu à indexação dos salários dos reclamantes a cotação fixa do euro a partir de setembro de 2013.

Este ato, aplicado a todos os trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros em todos os locais e países onde estes se encontram, regulamenta o disposto no nº1 do art. 12º do Decreto-Lei n.º 47/2013 de 27 de abril - «As tabelas remuneratórias dos trabalhadores dos SPE do MNE, fixadas por país e por categoria, em euros, salvo nos casos em que seja obrigatório o pagamento na moeda local, são aprovadas por decreto regulamentar, o qual deve estabelecer os respetivos critérios.»

Os trabalhadores a prestar serviço no Brasil estão numa situação objetivamente diversa dos demais trabalhadores da administração pública portuguesa e mesmos dos demais trabalhadores dos serviços periféricos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A própria lei reconhece a diversidade destes trabalhadores em relação aos demais trabalhadores da administração pública (com a regra do art. 12º do Decreto-Lei n.º 47/2013) e reconhece mesmo a diferenciação destes trabalhadores entre si, de local para local, de país para país, ao prever, no nº4 do já referido art. 12º que: «Em caso de acentuada perda de poder de compra em qualquer país pelo efeito isolado ou conjugado da inflação e da variação cambial, designadamente quando se verifique que a remuneração base mensal é inferior ao salário mínimo local, pode haver lugar à revisão intercalar das respetivas tabelas remuneratórias.»

Não pode, assim, argumentar-se com a violação do princípio da igualdade entre estes específicos trabalhadores representados da requerente e todos os demais trabalhadores da administração pública portuguesa.

E a ausência de similitude que permitisse a conclusão pela violação do princípio da igualdade resulta, quanto a nós, tanto mais evidente quanto o resultado que se entende violador é uma sentença judicial.

A sentença revidenda não formou caso julgado em relação a todos os outros trabalhadores da administração pública portuguesa, nem o formou sequer em relação aos demais trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Nem nunca o poderia fazer, pois enquanto que, por via do comando constitucional, a lei não pode operar discriminações, um processo judicial não obedece à mesma lógica, porque o tribunal julga um caso em concreto e não todos os outros casos equiparáveis existentes.

O princípio constitucional da igualdade não exige a qualquer tribunal, nacional ou estrangeiro, que julgue como se legislasse, não sendo esse o alcance do preceito constitucional em causa."

[MTS]