Despedimento ilícito; indemnização;
penhorabilidade
I. O critério para a aplicação da impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil de 2013 não é o da periodicidade, mas sim o da função da prestação a que o executado tem direito: destinar-se a assegurar a subsistência do executado.
II. A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, tem também essa função, sendo parcialmente impenhorável, os termos do citado n.º 1 do artigo 738.º.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"5. Está apenas em causa neste recurso saber se a indemnização atribuída à executada por despedimento ilícito e em substituição da reintegração é totalmente penhorável ou se, por estar abrangida pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, é parcialmente impenhorável.
Com efeito, afastando a regra de que pelos créditos respondem “todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” (artigo 601.º do Código Civil), o n.º 1 do artigo 738.º consagra uma impenhorabilidade parcial de certos bens do executado: de “dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestação de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, com os limites máximo e mínimo previstos no n.º 3 do mesmo artigo 738.º, definidos por referência ao salário mínimo nacional – assim, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/02, de 23 de Junho de 2020, que, generalizando os julgamentos de inconstitucionalidade proferidos pelo acórdão n.º 318/99 e pelas decisões sumárias n.ºs 120/01 e 165/01, declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição) ou o acórdão n.º 96/04, de 11 de Fevereiro de 2004, que estendeu o juízo de inconstitucionalidade à normas que permitiam “a penhora de uma parcela do salário do executado, que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional”.
Conjugando o n.º 1 com os demais n.ºs do artigo 738.º, e dando especial atenção ao poder conferido ao juiz de reduzir ou isentar de penhora durante um certo período de tempo “a parte penhorável dos rendimentos”, ponderando “o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar”, conclui-se facilmente que o objectivo da redução prevista no n.º 1 é a protecção da subsistência do executado (cfr. a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, correspondente ao Código de Processo Civil de 2013), em aplicação do princípio fundamental da dignidade humana (artigo 2.º da Constituição). Na medida da impenhorabilidade, o legislador faz prevalecer este princípio sobre os interesses do credor, cuja consistência é prosseguida pela possibilidade de cobrança coerciva dos seus créditos, através do processo executivo, protegendo o executado.
Estão em causa direitos do executado que, na sua maioria, se materializam em prestações periódicas, característica exigida pelas duas alíneas do n.º 1 do artigo 824.º do Código de Processo Civil anterior, como observam Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, em Código de Processo Civil Anotado, vol 3,º, Coimbra, 2003, anotação ao artigo 824.º: “Trata-se, pois, em ambos os casos, de prestações periódicas, em princípio destinadas a proporcionar a satisfação das necessidades do executado. Não estão, designadamente, abrangidas as indemnizações por acidente pagas por uma só vez ou fraccionadas, mas só as que dão lugar, como é regra nos acidentes de trabalho, a prestações periódicas ou de trato sucessivo (…). Por isso, o preceito não abrange as regalias sociais, subsídio, prestações de indemnização por acidentes de trabalho e produto da sua aplicação, cuja concessão seja independente de qualquer periodicidade” (pág. 357).
No entanto, tal exigência da periodicidade foi afastada pelo artigo 738.º do Código de Processo Civil de 2013, que tomou como critério a função da prestação a que o executado tem direito: destinarem-se a assegurar a subsistência do executado. “O que é decisivo é, portanto, a função da prestação e não a sua periodicidade”, escreve Rui Pinto, A Acção Executiva, Lisboa, 2018, pág. 491; “o critério que releva é o da natureza dessas prestações e não o facto de as mesmas serem disponibilizadas ao trabalhador de forma integral ou faseada” (Marco Carvalho Gonçalves, “Lições de Processo Executivo”, 4.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 330.
No caso presente, portanto, saber se a indemnização paga ao trabalhador em substituição da sua reintegração, em caso de despedimento ilícito (artigo 439.º do Código do Trabalho de 2003, aqui aplicável, correspondente ao artigo 391.º do Código de 2009), está ou não abrangida pela impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil implica determinar se essa indemnização tem (também) por função assegurar a subsistência do trabalhador/executado.
6. É habitual reconhecer à indemnização atribuída em substituição de reintegração, em caso de despedimento ilícito, uma dupla função, ressarcitória e punitiva; essa dupla função reflecte-se desde logo nos critérios de cálculo – o valor da retribuição e o grau de ilicitude do despedimento (assim, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, www.dgsi.pt, proc. n.º 06S291). “A indemnização substitutiva da reintegração decorre da realização de um acto extintivo ilícito, ou seja, do despedimento ilícito efectuado pelo empregador”, “que está na base da cessação do contrato, ainda que esta venha a ser decidida pelo trabalhador ou pelo tribunal ” (Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª ed., Lisboa, 2017, pág. 540); no mesmo sentido, por exemplo, Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I, Coimbra 2007, pág. 1033-1034, que observa que a indemnização “parece ter um sentido parcialmente punitivo: a indemnização será devida em substituição da reintegração, mesmo que o trabalhador tenha no dia seguinte conseguido um emprego melhor”.
Essa dupla função, todavia, não exclui a finalidade de prover à subsistência do trabalhador. Na verdade, a indemnização em substituição da reintegração é uma “indemnização sucedânea” da restauração natural (a reintegração), como recorda Pedro Romano Martínez na anotação ao (actual) artigo 391.º do Código do Trabalho (Código do Trabalho Anotado, 13.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 912) e se observa, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 2006, www.dgsi.pt, proc. n.º 05S3639, o que demonstra, em nosso entender, a função de “prestação alimentícia”, ou seja, de prestação que assegura “a manutenção da vida financeira básica do executado”, embora não assuma a natureza de rendimento periódico (Rui Pinto, A Acção Executiva cit, pág. 490-491); essa mesma função resulta ainda de o seu cálculo ter em conta o montante das retribuições auferidas, dispondo o juiz de uma margem de decisão que lhe permite adequar o valor da indemnização à situação concreta do trabalhador, adaptando-o ao dano que a perda da retribuição, decorrente da extinção do contrato de trabalho, lhe pode trazer: “os nossos tribunais dispõem hoje” (desde o Código do Trabalho de 2003) “de uma margem de manobra bastante dilatada no que toca à fixação, em concreto, do quantum indemnizatório”, escreve João Leal Amado, que por exemplo lhes permite fixar uma indemnização mais elevada quando as retribuições eram mais baixas e vice-versa –“Contrato de Trabalho”, 4.ª ed., Coimbra, 2014, págs. 429-430.
A relevância do montante das retribuições no cômputo da indemnização mostra a função substitutiva da remuneração que desempenha.
Já Marco Carvalho Gonçalves, Lições cit., págs. 330-331, por exemplo, entende que a indemnização em substituição da reintegração “não revest(…)[e] a natureza de crédito(…) salaria(…)[l] ou remuneratório(…) – e, consequentemente, não se destina(…) a garantir a subsistência do executado”.
À conclusão a que se chega não obsta a consagração do direito à percepção das retribuições intercalares, que “é independente, quer do direito à indemnização (…), quer do direito do trabalhador à reintegração, se for esta a sua opção” (Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 6.ª ed., Coimbra, 2016, pág. 867). Na realidade, “os salários intercalares não [são] tanto uma indemnização, mas sim a consequência da mora do credor”(Júlio Gomes, Direito do Trabalho cit., pág. 1025).
Reconhecendo tratar-se de uma questão controvertida, quer na jurisprudência, quer na doutrina, entende-se que a indemnização atribuída em substituição da reintegração do trabalhador se deve considerar abrangida pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, sendo parcialmente impenhorável, atenta a função que desempenha."
[MTS]