"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/05/2021

Jurisprudência 2020 (208)


Recurso; ampliação da matéria de facto;
meios de prova


1. O sumário de RC 20/10/2020 (2106/11.1TBLRA-A.C1) é o seguinte:

Tendo sido anulada a sentença e ordenada a ampliação da matéria de facto, com repetição do julgamento nessa parte – artigo 662.º, n.º 2. al. c), do CPC –, é permitido às partes indicarem novas testemunhas no caso dessa matéria aditada não constar dos articulados, sem prejuízo da norma do artigo 511.º do CPC que estabelece um limite máximo ao rol de testemunhas, sendo também admissível a junção de documentos, nos termos dos n.º 2 e 3 do artigo 423.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Vejamos [...] se, anulada a sentença e ordenada a repetição do julgamento para ampliação da matéria de facto, é permitido às partes indicar novas testemunhas relativamente aos factos dessa ampliação.

1 - A solução será a que se conformar com o direito de a parte indicar prova e esse direito está logicamente dependente da existência de matéria factual sobre a qual não tenha ainda sido exercido esse direito.

Por conseguinte, se há matéria nova a indagar, mas não expressamente alegada, compreendida, claro está, na causa de pedir (factos instrumentais e complementares), sobre a qual as testemunhas inquiridas naturalmente não se pronunciaram, é de admitir a indicação de novas testemunhas, porquanto as partes não estavam a contar com tais factos.

Não há perigo de a parte se servir daquilo que já sabe que foi antes dito pelas testemunhas já inquiridas porque estamos perante factos novos.

Se se trata de ouvir as testemunhas a matéria alegada nos articulados, não será de alterar o rol porque as partes já indicaram as testemunhas contando que seriam ouvidas a essa matéria.

2 - A questão em apreço no âmbito do anterior Código de Processo Civil mereceu soluções opostas nos tribunais superiores.

No sentido de não ser permitida a indicação de novas testemunhas pronunciou-se, p. ex., o acórdão da Relação de Coimbra de 3-4-90 (C.J. XV-II-59), ponderando-se que «Quando as partes são notificadas nos termos do artigo 512.º do CPC para indicarem provas, são-no em relação aos factos que alegaram e careçam de ser provados, quer eles tenham sido incluídos no questionário, quer não tenham sido» (Cfr. também acórdão do Tribunal da relação de Lisboa de 5-5-81 (B.M.J. 312-303) e acórdão da Relação de Coimbra de 4-3-86 (Colectânea de Jurisprudência, Ano XI-2-52).

Argumentou-se neste acórdão que no caso não ocorria lacuna legal, na medida em que a lei quando entendia que devia ser apresentada prova, prova nova, dizia-o expressamente, como ocorria, por exemplo, no caso dos articulados supervenientes (hoje artigo 588.º) ou no incidente de falsidade (cfr. atual artigo 445.º).

Acrescia, argumentava-se então, que a norma do artigo 512.º do CPC, relativa à apresentação do rol de testemunhas, não podia ser cumprida segunda vez, porquanto o rol de testemunhas não podia ser adicionado com mais testemunhas (posteriormente a este acórdão a lei de processo foi alterada e veio a admitir a alteração e adição de testemunhas, tal como dispõe hoje o artigo 598.º, n.º 2 do CPC).

No sentido de poderem ser ouvidas testemunhas novas, a novos quesitos, pronunciou-se o acórdão do S.T.J. de 19-1-82 (BMJ 313-301) tendo-se argumentado que podiam ser apresentadas testemunhas novas porquanto a norma que proibia o adicionamento do rol (artigo 619.º, n.º 2 do CPC de 1961) apenas respeitava aos factos que então se encontravam fixados no questionário, organizado consoante o disposto no artigo 511, n.º 1, do mesmo código, e não a outros factos que aí não constavam.

Este entendimento foi seguido no acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 20-6-91 (Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI-III-157), argumentando-se que as partes apresentaram o rol de testemunhas tendo em consideração os factos que constavam do questionário, pelo que vindo a ser aditados outros factos, o princípio do contraditório, que também vigora em relação à prova dos factos, determina que as partes possam indicar novas testemunhas a esses novos factos.

A este entendimento contrapunha-se (cfr. o referido acórdão Relação de Coimbra de 4-3-86) que os factos novos só podiam ser factos já alegados pelas partes nos articulados (como resultava dos artigos 650.º, n.º 2. al. f) e 664.º do CPC então em vigor), pelo que as partes quando eram notificadas para juntar o rol de testemunhas eram notificadas para apresentarem testemunhas em relação a todos os factos, quer os incluídos no questionário, quer os não incluídos, pois as partes sabem que há sempre a hipótese de factos excluídos do questionário poderem vir a ser aditados em audiência, pelo que não se justifica que se abra de novo a possibilidade de apresentarem novas provas.

3. Esta divergência veio a ser ultrapassada legislativamente através de nova redação introduzida pelo D.L. n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, no artigo 650.º do CPC, que passou a conter, no seu n.º 3, a seguinte norma:

«Se for ampliada a base instrutória, nos termos da alínea f) do número anterior, podem as partes indicar as respectivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, não sendo possível a indicação imediata, no prazo de dez dias».

4. O «questionário» fixava, embora de modo não definitivo, a matéria factual controvertida que iria ser submetida a prova, pelo que as partes de seguida indicavam as testemunhas a inquirir tendo em conta os factos do «questionário», pelo que se justificava que pudessem indicar novas testemunhas quando em fase de audiência de julgamento se aditassem factos ao «questionário».

Hoje as normas de processo não são idênticas às atrás mencionadas devido ao facto de ter desaparecido a peça processual «questionário», mas os princípios aplicáveis continuam a ser os mesmos.

O novo modo de organizar a sequência de atos processuais ao eliminar o «questionário» implicou que as partes ao apresentarem o rol de testemunhas, nos termos previstos no artigo 552.º, n.º 2 (com a petição inicial) e 572.º, al. d) (com a contestação), com possibilidades de alteração do rol até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (n.º 2 do artigo 598.º do CPC), as indiquem a todos os factos articulados.

Neste modo de organização dos atos processuais podem ocorrer duas situações em consequência da anulação da sentença e repetição do julgamento ordenado pelo tribunal da Relação:

(I) Num caso, a Relação anula a sentença e determina que e proceda ao julgamento dos factos que já constavam dos articulados, os quais, porém, não foram objeto de julgamento, ou seja, tais factos foram alegados, mas não constam dos factos «provados» nem dos factos «não provados» fixados na sentença.

Neste caso, não há justificação para a parte gozar do direito de indicar novas testemunhas porque a parte quando indicou as testemunhas, indicou-as tendo em consideração que esses factos iriam ser objeto de prova.

(I) Noutro caso, a Relação anula a sentença e ordena o pronunciamento do tribunal sobre factos que não constam dos articulados, mas são considerados necessários para a boa decisão da causa.

Este caso pode ocorrer porquanto se encontra expressamente previsto no n.º 2 do artigo 5.º do CPC, que «Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; …».
 
Neste caso, já se justifica que a parte possa indicar novas testemunhas porque a parte quando indicou as testemunhas que indicou não lhe era exigível que tivesse tido em consideração factos que não estavam alegados.

Nesta hipótese, a justificação para a indicação de novas testemunhas deriva do princípio do contraditório.

O n.º 3 do artigo 3.º do CPC dispõe que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

Como referiu Manuel de Andrade, «O processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), muito embora se admita que as deficiências e transvios ou abusos de actividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultado de umas e outras» - Noções Elementares de Processo Civil (Nova edição revista e actualizada). Coimbra Editora, 1979, pág. 379.

O princípio do contraditório atravessa, pois, todos os atos, desde a alegação dos factos, à prova dos factos e à subsunção dos factos ao direito.

Uma última nota tem a ver com as normas do artigo 511.º do CPC, onde se estabelece um limite ao número de testemunhas que é possível inquirir, ou seja, 10 testemunhas para a ação, outras tantas para a reconvenção e igual número para a contestação, sem prejuízo, diz o n.º 4, do juiz, por decisão irrecorrível, admitir a inquirição de testemunhas para além deste limite, atendendo à natureza e extensão dos temas da prova.

Por conseguinte, a eventual admissibilidade de indicação de novas testemunhas tem de respeitar este limite, ou seja, se já foram indicadas 10 testemunhas, já não é possível indicar mais.

5. Passando agora para a análise do caso concreto.

Verifica-se que o tribunal da Relação anulou a decisão da 1.ª Instância e determinar a repetição do julgamento, mas confinada naturalmente à factualidade que se entendeu estra em falta ou seja, como se refere no acórdão.

Os novos factos a apurar são estes:

«…descrição sobre os pontos concretos do traçado do caminho da serventia no percurso do prédio do Réu, incluindo, pois, os precisos locais, onde nesse prédio, se inicia e finda, e, por outro lado, o local onde, no prédio da Autora, se acede a esse caminho» [...].

Esta matéria não consta dos articulados.

Como se sustentou acima em termos abstratos, neste caso pode a parte indicar testemunhas para serem ouvidas a estes factos, sem prejuízo do limite estabelecido no mencionado artigo 511.º do CPC.

O mesmo vale para os documentos. Acrescendo que os mesmos podem ser apresentados até 20 dias da data em que se realize a audiência final, acrescendo, neste caso, o pagamento de multa, sanção inaplicável neste caso, que se afigura já resultar da parte final do n.º 2 do artigo 423.º do C.P.C., onde se dispõe que a parte não está sujeita a multa de mostrar que não pôde juntar até então o documento."

[MTS]