"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/05/2021

Jurisprudência 2020 (203)


Divisão de coisa comum;
reconvenção*


1. O sumário de RC 3/11/2020 (1761/19.9T8PBL.C1) é o seguinte:

I – Estando em causa a finalidade de divisão de certa coisa comum, seguem-se os termos adequados a esse desiderato, previstos nos art.ºs 925º e ss. do CPC.

II - Termos que sinteticamente se caracterizam pela adjudicação ou venda, se a coisa for indivisível, ou pela formação de lotes e sua adjudicação se a coisa for materialmente divisível, admitindo-se apenas a intervenção de prova pericial.

III - Os requisitos que condicionam o avanço do processo de divisão podem ser atacados por diversas razões – não haver indivisão, haver obstáculo à sua extinção, não existir acordo sobre as quotas de cada, ou por outro fundamento. Passa então a ser necessária a existência de uma fase declarativa (sob a forma comum) enxertada na acção especial, fase essa que obviamente prejudica o início da fase “executiva” (assim dita por se destinar especificamente a acabar com a contitularidade do domínio).

IV - Em todo o caso, antes de introduzir a tramitação da acção comum para conhecer dessa questão prévia, o juiz pode tentar conhecê-la sumariamente como uma mera questão incidental, e só se entender que não há adequação do incidente regulado nos termos dos artigos 292º e ss. do CPC é que mandará seguir os termos da acção comum (art.º 926º, nºs 2 e 3, do CPC).

V - Não se ajustando a reconvenção ao disposto na al.ª c) do nº 2 do art.º 266º do CPC – nem a nenhuma outra – a reconvenção não pode ser admitida.

VI - Também não se verifica o condicionalismo da 2ª parte do nº 3 do art.º 266º do nCPC, ou seja, que o juiz pode/deve autorizar a reconvenção ao abrigo do nº 2 do art.º 37º.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação o R. e apelante levanta a questão de saber se, não sendo manifestamente incompatível com a forma especial da acção de divisão de coisa comum, o enxerto de uma fase declarativa sob a forma comum destinada à apreciação da matéria da reconvenção deveria ter sido admitido ao abrigo do nº 3 do art.º 266º e do nº 2 do art.º 37º do CPC.

Não houve contra-alegações.

Apreciando.

Quer o recorrente que lhe seja admitida a reconvenção, à luz do disposto no nº 3 do art.º 266º e no nº 2 do art.º 37º do CPC, por esta não seguir uma tramitação manifestamente incompatível com a forma de processo dos art.º s 925º e ss do CPC.

Mas não tem razão.

Em primeiro lugar importa saber se a reconvenção deduzida se insere em alguma das hipóteses taxativamente enunciadas nas várias alíneas do nº 2 do art.º 266º do CPC.

E aqui julgamos que tal não ocorre.

Com efeito, a decisão recorrida entendeu que a reconvenção cabia na alínea c) daquele nº 2 : “Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor”.

Salvo o devido respeito, é evidente que esta norma se destina ao confronto de dois créditos, situando-se, por esse facto, num plano de confronto de duas relações meramente obrigacionais: aquela de que emerge o crédito do reconvinte e a que determina o crédito do reconvindo exercido por via da acção.

Ora, no caso vertente não é objecto da acção o reconhecimento de um qualquer direito de crédito por parte da A.-reconvinda: o que esta pede é o fim da indivisão ou da contitularidade do domínio sobre certo imóvel, por via do qual poderá resultar ou não para ela um eventual crédito sobre o R..

Nesta configuração – que se nos afigura como sendo a correcta – o R. nada tem a compensar, nem o seu invocado crédito “excede o do autor”.

Daí que, não se ajustando a reconvenção à mencionada al.ª c) do nº 2 do art.º 266º do CPC – nem a  nenhuma outra – a reconvenção nunca pudesse ser admitida.

Não obstante, pensamos que não se verifica o condicionalismo da 2ª parte do nº 3 do art.º 266º, ou seja, que o juiz também não poderia/deveria autorizar a reconvenção ao abrigo do nº 2 do art.º 37º.

Na verdade, neste preceito prevê-se que, apesar da diversidade de formas de processo que, todavia, não implique uma manifesta incompatibilidade entre elas, o juiz autorize a cumulação quando haja interesse relevante ou a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável à justa composição do litígio.

É óbvio – e, como tal inegável – que haverá por banda do R. um interesse em aproveitar o ensejo da divisão do imóvel para “arrumar as contas” com a A., por forma a que, ao pagar-lhe as tornas que sejam por aquele facto devidas, seja nesse momento igualmente levado em conta o seu eventual crédito sobre ela.

Mas daqui não se pode concluir por um interesse objectivamente relevante ou numa justa composição do litígio unicamente alcançados com a apreciação conjunta do pedido reconvencional.

Há que não perder de vista a circunstância de o acerto entre o crédito da A. e o crédito do R. só surgir na hipótese de o imóvel em causa a este vir ser adjudicado e só então ele ser devedor àquela das respectivas tornas.

Hipótese que naturalmente pode nunca chegar a verificar-se.

Independentemente deste obstáculo, haveria ainda uma manifesta incompatibilidade de formas de processo a impedir a apreciação da reconvenção.

Se não vejamos.

Estando em causa a finalidade de divisão de certa coisa comum, seguem-se os termos adequados a esse desiderato, previstos nos art.ºs 925º e ss. do CPC.

Termos que sinteticamente se caracterizam pela adjudicação ou venda, se a coisa for indivisível, ou pela formação de lotes e sua adjudicação se a coisa for materialmente divisível, admitindo-se apenas a intervenção de prova pericial. Os requisitos que condicionam o avanço do processo de divisão podem ser atacados por diversas razões – não haver indivisão, haver obstáculo à sua extinção, não existir acordo sobre as quotas de cada, ou por outro fundamento. Passa então a ser necessária a existência de uma fase declarativa (sob a forma comum) enxertada na acção especial, fase essa que obviamente prejudica o início da fase “executiva” (assim dita por se destinar específicamente a acabar com a contitularidade do domínio). Em todo o caso, antes de introduzir a tramitação da acção comum para conhecer dessa questão prévia, o juiz pode tentar conhecê-la sumariamente como uma mera questão incidental, e só se entender que não há adequação do incidente regulado nos termos dos artigos 292º e ss. do CPC é que mandará seguir os termos da acção comum (art.º 926º, nºs 2 e 3, do CPC). [Ac. da Rel de Lx.ª de 04.03.2010 proferido na Apelação nº 1392/08.9TCSNT.L1-6 [...]]

Ora nos presentes autos não está questionado/contestado nenhum requisito ou pressuposto da divisão do imóvel. Isto é, não há necessidade de qualquer fase declarativa, nem mesmo por via incidental. Donde que, com toda a propriedade e pertinência, se possa dizer que a abertura de uma fase declarativa para apuramento do invocado crédito do R. sempre significaria/implicaria a introdução de uma forma processual manifestamente incompatível."


*3 [Comentário]. Apenas com intuito de esclarecimento transcreve-se o sumário de RL 4/3/2010 citado no acórdão:

1. Afirmando-se na escritura de aquisição que a mesma é feita em comum e partes iguais é irrelevante a eventual desigualdade de contribuição de cada um dos consortes para a liquidação do respectivo preço.

2. Em princípio é possível deduzir reconvenção no processo de divisão de coisa comum sempre que haja contestação.

3. Se, no entanto, as questões deduzidas na contestação forem decididas sumariamente sem que haja de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção só é admissível se também dessa forma poder ser decidida.

MTS