Suspensão da instância;
poder discricionário
1. O sumário de RP 5/11/2020 (19228/19.3T8PRT.P1) é o seguinte:
I - É correta a suspensão da instância ao abrigo do art.º 272º, nº 1, do Código de Processo Civil, se noutro processo, interposto em primeiro lugar, não havendo uma situação de litispendência, se debatem entre as mesmas partes, ainda que numa posição processual qualitativamente diferente, essencialmente os mesmos factos, podendo a decisão de uma influenciar a decisão a proferir na outra, de tal modo que o alheamento à suspensão da instância poderia conduzir a contradições nas respetivas decisões em matéria de facto e incompatibilidade de fundo nas respetivas decisões finais.
II - Não obsta ao despacho determinativo da suspensão da instância ao abrigo do art.º 272º, nº 1, do Código de Processo Civil, o facto de a instância já se encontrar suspensa com fundamento nas medidas legislativas excecionais de proteção do inquilino no âmbito da pandemia Covid 19, pois que a suspensão da instância pode ter mais do que um fundamento no processo, mantendo-se pela subsistência de um quando cessar o outro ou os outros.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O art.º 272º, nº 1 do Código de Processo Civil prevê que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
No despacho recorrido, o tribunal admite que não é de uma questão prejudicial que se trata, fazendo assentar a sua decisão de suspender o processo no que considera ser “outro motivo justificado”. [...]
Ainda que se verifiquem os requisitos da prejudicialidade, o juiz deve negar a suspensão quando o estado da causa tornar gravemente inconveniente a suspensão ou nos termos do nº 2 do art.º 272º.
Mas o juiz pode ainda ordenar a suspensão da instância “quando ocorrer outro motivo justificado” (parte final do nº 1 daquele art.º 272º).
Alberto dos Reis explicava assim o conteúdo do conceito indeterminado de “outro motivo justificado”: “Nesta parte dá-se ao juiz grande liberdade de acção. O juiz pode ordenar a suspensão quando entenda que há utilidade ou conveniência processual em que a instância se suspenda.”
Este pensamento é acompanhado por A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa [Citado código anotado, pág. 315] quando afirmam que o juiz, “neste campo, goza de uma larga margem de discricionariedade, devendo aquilatar se efetivamente se justifica tal medida”.
Pois bem.
A nosso ver, ao menos numa visão mais restritiva do que seja a causa prejudicial, não há verdadeira dependência de uma ação relativamente à outra, no sentido de que uma não possa ser julgada e decidida antes da outra. Qualquer uma delas pode ser decidida em primeiro lugar, sem necessidade da decisão que houvesse de ser proferida na outra. O objeto de qualquer uma delas pode ser apreciado e definitivamente decidido sem que o seja o objeto processual da outra.
No entanto, parece-nos inegável que existe um nexo de influência entre ambos os processos, por existir também um núcleo essencial de factos que lhes é transversal, mas com diferentes versões ou justificações, consoante o interesse prosseguido em cada uma delas, pela respetiva autora ou contestante.
Por exemplo, se na ação instaurada em 23.9.2019 (proc. 18817/19.0T8PRT) a aqui R. (ali autora) alega uma situação de insalubridade e falta de higiene da habitação locada, fá-lo imputando essa situação à aqui A. para justificar o pedido da realização de obras, o seu realojamento e a atribuição de uma indemnização a seu favor por ter sido prejudicada pela ali ré na utilização da habitação. Já a aqui A. alega a falta de higiene e salubridade do locado como efeito de comportamento imputável à aqui R. para justificar a resolução do contrato e o despejo peticionado, matéria que constitui simultaneamente defesa por exceção naquela primeira ação.
Embora não se configure propriamente uma situação de litispendência --- desde logo porque são diferentes os pedidos deduzidos numa e noutra ações ---, os fundamentos das pretensões deduzidas pela A. na presente ação estão incluídos no objeto da ação 18817/19.0T8PRT, sendo que os factos em discussão são, essencialmente, os mesmos em ambos os processos.
Não há dúvida que a decisão de uma das ações em primeiro lugar, seja ela qual for, pode influenciar a decisão da segunda ação, maxime se transitar em julgado, porque em ambas se alegam, no essencial, os mesmos factos, com justificações diferentes e com resultados incompatíveis face ao pedido de cada ação. Pois, se na primeira ação se reconhecer que a falta de higiene e salubridade da habitação da R. é imputável à aqui A. (ali ré) por não ter efetuado obras a que se comprometeu, é manifesto que o fundamento de resolução por aquele facto, invocado nesta ação, não procederá, a não ser que nesta se demonstre uma versão diferente relativamente à falta de higiene e salubridade, agora no sentido diverso, de que a mesma é devida a conduta culposa da aqui R., o que sempre significaria uma evidente contradição sobre uma mesma situação da vida que os tribunais devem evitar, tanto no interesse legítimo das partes como da imagem dos próprios Tribunais, em qualquer caso pela realização de uma justiça unívoca, coerente e que assegure a certeza das situações jurídicas apreciadas.
Não esqueçamos que, muito embora, em regra, os fundamentos de facto não adquiram, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de modo a poderem impor-se para além dessa mesma decisão, os mesmos já relevam quando acoplados a uma decisão implícita de uma exceção invocada na defesa da ação condicionante e pressuposto lógico da concreta decisão final, transitada em julgado.
O ideal seria mesmo que os fundamentos de uma e outra ações fossem discutidos no mesmos processo e no mesmo julgamento. Não nos competindo verificar eventual fundamento e decidir pela apensação de ações (art.º 267º do Código de Processo Civil), a evidente influência que o resultado da primeira ação pode ter sobre a decisão da segunda, justifica bem a utilização que o tribunal a quo efetuou do mecanismo da suspensão da instância previsto no art.º 272º, nº 1, do Código de Processo Civil, suspendendo a instância nesta ação enquanto não estiver decidida a que foi instaurada em primeiro lugar, “por motivo justificado”.
Não sendo assim, é real o risco da existência de uma incompatibilidade de fundo nas decisões que podem vir a ser proferidas nas duas ações, como aconteceria se na ação nº 18817/19.0T8PRT se demonstrasse a culpa da ali ré na situação de falta de higiene e salubridade da habitação arrendada (3º e 4º andares), conducente à condenação da ré (aqui A.) na realização as obras, e nesta ação fosse a de imputar aquela responsabilidade à R. (ali autora), conducente à resolução do contrato e ao despejo.[...]
Também o não uso do locado pode estar associado a uma causa imputável à R., alegada nesta ação, ou imputável à A. nos termos da ação nº 18817/19.0T8PRT, com efeitos diversos e antagónicos, conforme os casos.
Por conseguinte, justifica-se, de pleno, a suspensão da instância nos presentes autos, nos termos do art.º 272º, nº 1, in fine, do Código de Processo Civil, e não naquela primeira ação, não apenas por se tratar de que foi interposta em primeiro lugar, mas por o seu fundamento não justificar a suspensão da instância ao abrigo da legislação relativa às medidas excecionais relacionadas com a Covid 19, dando, assim, garantias de um regular andamento do processo."
[MTS]