Casa de morada da família;
alteração; competência
1. O sumário de RG 12/11/2020 (13/20.6T8MDL.G1) é o seguinte:
I- Quando o autor pretende alteração do acordo relativo à casa de morada de família, na sequência de processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos numa Conservatória do Registo Civil, por força do disposto no Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, o Tribunal de Comarca tem sempre competência material para conhecer de tal questão.
II- O que sucede é que, se houver acordo dos interessados, devem os mesmos ir intentar esse processo junto da Conservatória do Registo Civil, por ser essa a tramitação pretendida pelo legislador, com o objectivo de desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios.
III. Se, tentada a conciliação das partes perante o Conservador, a mesma falhar, o processo será sempre remetido para a fase judicial, perante o Tribunal de Comarca competente.
IV. Assim, se resultar desde logo da petição inicial que esse acordo não existe, seria um acto inútil tentar primeiro o recurso à fase pré-contenciosa junto da Conservatória, pelo que pode e deve ser a questão levada logo perante o Tribunal Judicial competente, através da instauração da respectiva acção.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"No caso em apreço, assiste inteira razão ao Tribunal recorrido quando chama a atenção para que o que o Autor pretende é a alteração do acordo relativo à casa de morada de família, pois o pedido de reivindicação, relativo ao reconhecimento da propriedade, além de desnecessário, não contém em si qualquer controvérsia, já que a ré não contesta esse direito de propriedade, e nem sequer vem alegada na petição uma situação em que esse direito de propriedade do autor tivesse sido posto em causa.
O acordo relativo à casa de morada de família em causa foi celebrado no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento nº …/2018, que correu termos na Conservatória do Registo Civil ....
O art. 1793º,3 CC, com a epígrafe “Casa de morada da família”, dispõe: o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.
Dando cobertura processual a este regime substantivo, o art. 990º CPC consagra um processo de jurisdição voluntária para atribuição da casa de morada de família. Dispõe o seguinte:
“1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.2 - O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.os 1, 5 e 6 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º.3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.4 - Se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso.”
Este nº 4 do art. 990º CPC consagra um típico caso de competência por conexão, em que a competência de um tribunal se fixa, ou é alargada, através de uma ligação estabelecida em função das partes ou do objecto da causa, solução de cunho eminentemente prático e evidente, considerando que para poder conhecer devidamente dos pressupostos da alteração (circunstâncias supervenientes que revelem a necessidade de alterar o anteriormente definido) é fundamental analisar aqueles que estiveram subjacentes à fixação.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro o legislador explica o que pretendeu com tal regime: “importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial. (…) Procede-se ainda à transferência de competências para as conservatórias de registo civil em matérias respeitantes a um conjunto de processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares - a atribuição de alimentos a filhos maiores e da casa de morada da família, a privação e autorização de apelidos de actual ou anterior cônjuge e a conversão da separação em divórcio -, na estrita medida em que se verifique ser a vontade das partes conciliável e sendo efectuada a remessa para efeitos de decisão judicial sempre que se constate existir oposição de qualquer interessado”.
Assim, na prossecução de tal desiderato, o legislador consagra na secção I do Capítulo III de tal diploma um procedimento perante o Conservador do Registo Civil que, nos termos do art. 5º,1,b, se aplica aos pedidos de atribuição da casa de morada da família. E o art. 6º,1 dispõe que “os processos previstos no artigo anterior podem ser instaurados em qualquer Conservatória do registo civil”.
O art. 7º regula o procedimento na Conservatória. Dele se retira, de importante, que tal procedimento, respeitando o que fora afirmado no preâmbulo, se destina apenas aos casos em que exista acordo dos interessados. Assim, havendo oposição, tem lugar uma tentativa de acordo perante o Conservador, a qual, se falhar, dá lugar à remessa dos autos ao tribunal judicial de 1.ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória.
Recordemos agora o art. 5º,2 do DL citado: “o disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial, ou constituam incidente ou dependência de acção pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil”.
Ou seja, as Conservatórias do Registo Civil não serão competentes para conhecer destes pedidos de atribuição da casa de morada da família quando, entre outros casos, tal pretensão constitua dependência de acção pendente. E bem se compreende que assim seja, pois nesse caso a pretensão de alteração será instaurada por apenso à acção principal.
À primeira vista, no caso de divórcio por mútuo consentimento que correu termos e foi decidido na Conservatória do Registo Civil, a natureza incidental do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família levará a que seja na Conservatória que esse pedido será deduzido.
Porém, como se escreve no Acórdão do TRE de 14 de Fevereiro de 2019 (Cristina Dá Mesquita), “não podemos, no entanto, perder de vista o objectivo do legislador com a atribuição e transferência de competências para o Ministério Público e Conservatórias do Registo Civil operada pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, a saber, desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial (cfr. Preâmbulo do diploma em apreço), desta forma contribuindo para uma tutela judicial eficaz e em tempo útil, emanação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva (art. 20º,1 da Constituição da República). O que (também) implica que nos casos em que haja elementos bastantes para concluir que já existe um verdadeiro litígio, não sendo previsível qualquer solução consensual sobre a fixação dos alimentos peticionados, deva ser admitido o pedido deduzido perante o tribunal judicial que seja competente, porquanto a sua devolução para a fase conciliatória junto da Conservatória do Registo Civil redundaria num procedimento inútil, que a própria lei proíbe (cfr. art. 130.º, do CPC)”.
Mas podemos ir ainda mais longe.
Decorre da análise do DL 272/2001 de 13/10 que fizemos supra, que é incorrecto defender que o Tribunal comum é incompetente em razão da matéria para decidir a acção para alteração da atribuição da casa de morada da família, pois como vimos, havendo litígio a competência é sempre deste tribunal.
O que sucede é que os artigos 5º,1,b e 6º a 8 do DL 272/01 estruturaram essas acções de forma a haver uma fase inicial, ou preliminar, que corre termos na Conservatória do Registo Civil. Assim, a petição, em principio, deve dar entrada em qualquer Conservatória do Registo Civil, nos termos do art. 6º,1 do citado DL, na redacção dada pelo DL n.º 324/2007, de 28.09 e não no Tribunal de Família e Menores ou Tribunal de Comarca. Daí poder-se-ia afirmar que, quando muito, se a acção fosse intentada directamente no Tribunal verificar-se-ia uma excepção dilatória inominada.
E existe um entendimento jurisprudencial, com o qual concordamos integralmente, que tem decidido que quando há elementos que demonstrem existir um verdadeiro litígio entre as partes, não se justifica o recurso prévio ao procedimento tendente à formação de acordo das partes a que alude o citado art. 5º,1, podendo a acção ser instaurada, desde logo, no tribunal judicial (cf. Acórdão do TRL de 10.07.2008, no processo nº 5243/2008.6 e Acórdão do TRG proferido em 01.02.2007, no processo nº 64/07.2, relatado pela Desembargadora Rosa Tching – www.dgsi.pt).
E, diga-se, não se vislumbra que a circunstância do processo correr termos deste o início nos Tribunais Judiciais possa acarretar para qualquer das partes menor protecção dos seus direitos, mesmo quanto à obtenção em tempo razoável de uma decisão definitiva.
Neste sentido veja-se ainda o Acórdão do TRP de 5.5.2011 (Leonel Gentil Marado Serôdio).
Diga-se, para terminar, que esta é a solução mais condizente com a filosofia exposta pelo próprio legislador, de reservar o procedimento perante a Conservatória para os casos em que exista acordo dos interessados.
No caso dos autos é desde logo evidente pela leitura da petição inicial que não existe acordo das partes, pelo que seria um acto inútil, contraproducente, e redundaria em pura perda de tempo, forçar o autor a ir deduzir a sua pretensão perante a Conservatória, pois esta limitar-se-ia a remeter o processo de volta para o Tribunal competente."
[MTS]
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