"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/05/2021

Jurisprudência 2020 (206)


Liberdade de qualificação;
nulidade da sentença*


I. O sumário de RG 29/10/2020 (413/19.4T8CHV.G1) é o seguinte:

1 - A condenação em objeto diverso do pedido resulta da violação do disposto no artigo 609.º, n.º 1 do CPC que estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

2 –Contudo, é admissível que o tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribua ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter.

II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. Relatório

M. M., R. C., S. C., L. C. e P. C. deduziram ação declarativa contra J. S., formulando os seguintes pedidos:

a) Ser declarado que os autores são proprietários do prédio urbano n.º ... da freguesia de ..., ... e ..., localizado em ..., ..., com proveniência do artigo urbano n.º ... da freguesia extinta de ... e omisso na CRP de ...;

b) Ser o réu condenado a reconhecer tal direito, abstendo-se de praticar qualquer ato que o ofenda;

c) Ser o réu condenado a reconhecer que o acesso que se inicia na extrema a norte, com início na rua ..., onde se situa o portão de cor vermelho, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com cerca de 40 metros de cumprimento e 3,80 metros de largura é um acesso comum à habitação dos autores e à do réu e aos dois logradouros das habitações; [...]

Teve lugar a audiência de julgamento, com inspeção ao local, após o que foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência: [...]

c) Declaro que o prédio do R. descrito no artigo 5º dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em a), tratando-se de um caminho que se inicia na extrema a norte, com início na actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa o portão em ferro de cor vermelha, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 3,80 metros, tratando-se de um caminho comum às habitações e logradouros dos AA. e do R. [...]


II. Fundamentação

[...] o pedido dos autores é o seguinte:

“c) Ser o réu condenado a reconhecer que o acesso que se inicia na extrema a norte, com início na rua ..., onde se situa o portão de cor vermelho, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com cerca de 40 metros de cumprimento e 3,80 metros de largura é um acesso comum à habitação dos autores e à do réu e aos dois logradouros das habitações”

A sentença condenou no seguinte:

“c) Declaro que o prédio do R. descrito no artigo 5º dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em a), tratando-se de um caminho que se inicia na extrema a norte, com início na actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa o portão em ferro de cor vermelha, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 3,80 metros, tratando-se de um caminho comum às habitações e logradouros dos AA. e do R”.

A condenação em objeto diverso do pedido resulta da violação do disposto no artigo 609.º, n.º 1 do CPC que estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

Trata-se do tão proclamado princípio do dispositivo, prevalecendo “a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz” – cfr. Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. I, Almedina, pág. 728.

Contudo, como bem observam os autores citados, a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez de tal regra, admitindo-se, designadamente, a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor (Acórdão do STJ de 07/04/2016, aí citado: “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter”).

É, aliás, por vezes, a única forma de resolver o litígio de forma definitiva.

No nosso caso, embora os autores não peçam expressamente o reconhecimento de tal direito de servidão de passagem, ele é compatível com os factos alegados, está neles implícito, como se depreende das seguintes expressões: “O acesso ao prédio sempre foi feito, desde tempos imemoriais, pela Rua da ..., atual Rua ...…”, “J. D. e J. S. acordaram dividir a casa em duas partes e o terreno também em duas partes, tendo o J. D. ficado com a parte mais a norte e o J. S. com a parte mais a sul (evidenciando que o caminho, que passa pelos dois prédios, só pode configurar-se como uma servidão de acesso ao prédio dos autores, na parte em que passa pelo prédio do réu)”, “O réu sabe que com as suas atuações colocou o logradouro do prédio dos autores numa situação de encravado, pois neste momento não existe nenhum acesso possível ao logradouro com máquinas” (porque parte do acesso está situado no prédio do réu).

Não podendo reconhecer-se um direito comum (compropriedade??) sobre uma faixa de terreno incorporada em dois prédios distintos e de proprietários diferentes (seria uma espécie de área comum em condomínio, sendo certo que a propriedade horizontal – artigo 1414.º e seguintes do Código Civil – está prevista, apenas para “propriedade por andares”, ou seja, construção em altura em que cada condómino é proprietário exclusivo de uma das frações autónomas do prédio e é, além disso, comproprietário das partes comuns), terá que ser considerada a figura da servidão de passagem.

O direito de propriedade incide sobre os prédios onde se situa o leito do caminho (acesso), sendo que o reconhecimento do direito ao caminho (acesso) é, no fundo, o reconhecimento do direito de passagem a favor de cada um dos prédios.

Consequentemente o reconhecimento desta servidão predial de passagem não extravasa os limites do pedido, devidamente interpretado, não ocorrendo a nulidade da sentença invocada."

*III. [Comentário] Os autores formularam, entre outros, o seguinte pedido:

"c) Ser o réu condenado a reconhecer que o acesso que se inicia na extrema a norte, com início na rua ..., onde se situa o portão de cor vermelho, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com cerca de 40 metros de cumprimento e 3,80 metros de largura é um acesso comum à habitação dos autores e à do réu e aos dois logradouros das habitações [...].

O tribunal de 1.ª instância decidiu o seguinte:

“c) Declaro [sic] que o prédio do R. descrito no artigo 5º dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em a), tratando-se de um caminho que se inicia na extrema a norte, com início na actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa o portão em ferro de cor vermelha, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 3,80 metros, tratando-se de um caminho comum às habitações e logradouros dos AA. e do R”.

A RG entendeu que o tribunal a quo apenas atribuiu a qualificação jurídica correcta a um pedido deficientemente formulado. Aceita-se a solução da RG, dado que "reconhecer [...] um acesso comum" implica, no caso concreto, reconhecer uma servidão de passagem.

Se, na 1.ª instância, houve o cuidado de prevenir uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC), isso é coisa que, em função dos elementos constantes do acórdão, não é possível apurar.


MTS