Prova por declarações de parte;
direitos indisponíveis
1. O sumário de RG 12/11/2020 (1139/19.4T8FAF-A.G1) é o seguinte:
I- Ainda que estejam em causa direitos indisponíveis insusceptíveis de confissão, não se nos afigura justificável a proibição de um depoimento de parte que, sem prejuízo da evidente parcialidade, tem necessariamente um conhecimento directo dos factos essenciais em litígio.
II- A mera circunstância de um dado meio de prova não poder vir a ter o valor probatório da confissão não implica que não deva ser livremente avaliado. Neste pressuposto, tal avaliação deve poder ser requerida por uma parte em relação à outra, independentemente de o tribunal igualmente também a poder determinar.
III- Deste modo, numa acção de divórcio, desde que requerida em momento temporalmente adequado, é admissível o depoimento de parte requerido pela contraparte.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Está aqui em causa a reapreciação do despacho de 13 de Julho de 2020, na parte em que indeferiu o depoimento de parte do A. requerido pela R. O tema em análise neste recurso, reporta-se, pois, à questão de apurar se os litigantes, em acção de divórcio, poderão, ou não, requerer tal meio probatório (depoimento de parte).
Quanto a esta questão, é sabido que a jurisprudência se divide entre aqueles que entendem que não são admissíveis tais depoimentos pois os mesmos pressuporiam a possibilidade de confissão sobre factos relativos a direitos indisponíveis o que resulta impossível por força do disposto no art. 354º, b) do CC (vide, por todos e apenas para atender ao mais recente, o Ac. da RL de 10-01-2019, proferido no Proc. nº 41/18.1T8CSC-B.L1-6 e disponível in dgsi.pt; na doutrina Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pgs. 118-119) e os que entendem em sentido oposto, fazendo-o, essencialmente, à luz de dois motivos: porque se o próprio tribunal não está inibido de ouvir as partes não se justifica impedir uma delas de requerer o depoimento de parte em relação à outra e ainda porque, embora o depoimento de parte seja o meio comum para obter a confissão, o mesmo não se esgota nessa vertente confessória, podendo e devendo, em qualquer caso, sempre ser livremente valorado pelo tribunal em sede de apreciação de prova (neste sentido, vide Ac. da RP de 26-11-2019, proferido no Proc. nº 1502/18.8T8VCD-A.P1, igualmente acessível in dgsi.pt, e, na doutrina, Américo Campos Costa, “O depoimento de parte sobre factos relativos a direitos indisponíveis”, in Revista dos Tribunais, Ano 76.º, pgs. 322 a 327).
Assumimos, desde já, acompanhar esta segunda tese, passando a transcrever e aqui dando por integrados os argumentos plasmados no último acórdão supra referido da RP, porque com eles nos revemos:
«Desde logo, numa perspectiva que se pretende proactiva, materializada numa indagação concreta e substantiva que privilegie sempre uma opção maximalista de recolha de todas as provas que possam conduzir a um apuramento da realidade fáctica sob escrutínio, não se nos afigura justificável a proibição de um depoimento que, sem prejuízo da evidente parcialidade, tem sempre a seu crédito um conhecimento directo dos factos que delimitam a causa de pedir.O depoimento de parte, à luz do Código revisto, tem uma dimensão que extravasa, em muito, a simples compilação dos factos que se confessam e não será essa sequer a sua finalidade, pelo menos exclusiva.Assim diremos que se, por um lado, a afirmação de factos com conteúdo confessório não pode ser valorada no que concerne a direitos indisponíveis na medida em que a lei rejeita “a subordinação da livre averiguação da verdade à declaração unilateral ou isolada de uma pessoa” (Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 550), isto não implica que o depoimento, liminarmente, não possa ou deva ser admitido.Note-se que a audição das partes será sempre relevante, senão essencial, nos casos em que apenas elas vivenciaram o litígio; ora, muitas vezes, tais situações são justamente as respeitantes ao estado das pessoas (em particular, as acções de divórcio).Donde, teríamos de considerar esta admissibilidade da prestação de declarações de parte neste tipo de processos, desde logo, em observância do direito à prova e do princípio de inclusão, cuja dimensão constitucional não pode ser olvidada.Por outro lado, aceitando que a prestação de depoimento de parte já é possível numa outra circunstância processual – a opção do tribunal nesse sentido – e considerando que um depoimento como este se desdobra numa multiplicidade complexa de descrições factuais, obtidas directamente, que vão muito para além da espartana dicotomia confissão/não confissão, entendemos que, na difícil valoração dos interesses envolvidos, uma apriorística restrição absoluta relativamente a tais depoimentos não fará sentido no âmbito de um processo civil moderno.Tal conclusão não prejudica, naturalmente, uma gestão atenta do depoimento a prestar em audiência final onde terá, necessariamente, de desconsiderar-se a mera reiteração de argumentos já vertidos nas peças processuais respectivas oralizados, naturalmente, com o ênfase de acrescida subjectividade de um ex-cônjuge em processo de divórcio.Neste sentido, partilhamos o entendimento expresso por Estrela Chaby (“O Depoimento de Parte em Processo Civil”, 2014) no sentido de que “[a]s particularidades de funcionamento da prova por declarações de parte, depõem, por um lado, no sentido da manutenção de um princípio de desconfiança em relação às declarações da parte, no que respeita aos factos que lhe seriam favoráveis; por outro, na convicção de alguma desnecessidade/inutilidade de audição da parte, considerando-se, sob esta perspectiva, que aquilo que a parte tem a dizer no processo tem oportunidade de o dizer em sede de alegações de factos.”Porém, também a partir da mesma autora, entendemos que qualquer posição liminar de rejeição de um meio probatório sempre enfrentará “dificuldades de conformação com as normas constitucionais e princípios essenciais do processo civil”, estando em causa o próprio direito à palavra.Dir-se-á que, no limite, uma percentagem, ainda que reduzida, de esclarecimento dos factos a partir da versão interessada de quem é parte, por exemplo, graças ao detalhe, precisão e clareza dos factos por esta descritos, justificará que se abra esta possibilidade aos litigantes.Assim, apesar de não se poder operar, repita-se, a confissão sobre factos atinentes a direitos indisponíveis, inexiste, a nosso ver, óbice bastante para que os factos desfavoráveis (ou favoráveis) declarados pela parte não possam ser auditados e apreciados de forma livre pelo Tribunal para a formação da sua convicção; sucede que essa possibilidade com interesse manifesto para a elucidação de factos muitas vezes privados e apenas conhecidos pelas partes pressupõe necessariamente que a parte possa ser inquirida – sem isso, nada.Por isso, como escreve Miguel Teixeira de Sousa a propósito do depoimento de parte em acções relativas a direitos indisponíveis “da circunstância de o meio de prova não poder vir a ter o valor probatório da confissão não se segue que ele não possa ser avaliado livremente. Isto é, se não é possível atribuir ao meio de prova qualquer dos valores probatórios que a lei, em abstracto, lhe fixa, é possível atribuir-lhe, pelo menos, um desses valores.” (vide blog do IPPC em https://blogip,pc.blogspot.com/2014/04/prova-por-declaracoes-da-parte-relacoes.html secundando a orientação propugnada no acórdão citado no blog e que provém da Relação de Lisboa de 14 de Abril de 2014).Aliás, o sentido que ora propugnamos neste acórdão será o que mais se coaduna com a recente evolução, pelo menos, doutrinal nesta matéria; concretizando, a Conselheira Maria dos Prazeres Beleza admite a prestação de declarações de parte sobre direitos indisponíveis em “A Prova por Declarações de Parte: Uma Desnecessária Duplicação das Alegações das Partes ou Uma Prova Inútil?”, p. 12. e o mesmo claramente ocorre com Luís Filipe Pires de Sousa em “As declarações de parte. Uma Síntese” (disponível online no sítio trl.mj.pt).No novo Código de Processo Civil surgiu, como é consabido, a consagração das declarações de parte como um novo meio de prova. Na Exposição de Motivos, justifica-se o novo meio de prova desta forma: “Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.” E é isto que está em causa no caso em apreço não fazendo mais sentido, a nosso ver, vedar à parte contrária àquela que depõe este valoroso instrumento processual.É certo que, como bem se explica na decisão recorrida, caso a parte declarante confesse algum facto, essa confissão seria sempre ineficaz; todavia, em situações fácticas, como as atinentes às acções de divórcio, muitas vezes vivenciadas apenas pelos próprios litigantes, tal constrangimento não arreda a conveniência manifesta da produção deste meio de prova, devendo o tribunal atribuir, a montante, as devidas condições de admissibilidade formal.Como se diz na Exposição dos Motivos do novo Código esta valoração apenas não é livre na parte em que não represente confissão – nos depoimentos em que não estejam em causa direitos indisponíveis a confissão será operativa, reduzindo-se a escrito, por assentada, o teor da mesma; caso estejam em causa os tais direitos indisponíveis será ineficaz mas ficando sempre tudo o demais para ser livremente valorado pelo tribunal após escrutínio das partes.Se, em geral, hoje o depoimento de parte é um meio probatório aceite como qualquer outro, pese a parcialidade manifesta do mesmo, não se vislumbram motivos para o arredar nestes processos relativos a direitos indisponíveis; tal apenas faria sentido caso estivesse subentendida uma realidade processual legal que nos parece hoje inexistir –a de que as declarações de parte apenas servem para encontrar factos que a mesma confesse.E, sendo assim como julgamos dever ser, terá que se conceder aos litigantes – legitimamente aqueles a quem cabe o impulso processual numa dinâmica de processo liberal que dá primazia ao princípio do dispositivo – a faculdade de demandarem directamente por tal meio probatório.»
[MTS]