Processo de inventário;
património comum; crédito
I. O sumário de RE 19/11/2020 (336/12.8T2MFR-B.E1) é o seguinte:
1 - É indevida a remessa dos interessados para os meios comuns com fundamento na falta de acordo sobre a matéria em discussão e por não existirem documentos nos autos que permitam resolver tal questão com segurança, havendo que produzir prova sobre a mesma;
2 - Apurando-se que o preço do imóvel adquirido pela Requerida já após ter sido decretado o divórcio, e que constitui bem próprio desta, foi pago, em parte, com dinheiro que constituía património comum do casal, deve a verba em causa ser elencada na relação de bens enquanto crédito do património comum.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Nos termos do disposto no art. 1350.º/2 do CPC na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, normativo inserido na secção relativa ao relacionamento de bens, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 1336.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.
O n.º 2 do art. 1336.º do CPC, por sua vez, estatui que só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes.
No processo de inventário, o princípio que vigora é o de que devem ser decididas definitivamente no seu âmbito todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão se não conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir uma ampla discussão no quadro do processo comum. [Ac. TRE de 28/05/2015 (Conceição Ferreira)]
A regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo excecionalmente, em caso de particular complexidade, e para evitar redução das normais garantias das partes, lançar mão das possibilidades que emergem do estatuído no artigo 1350.º, n.ºs 1 e 3, do CPC. [Cfr. Lopes do Rego, Comentário ao CPC, 2.ª ed., pág. 268]
É que “tudo deve ser examinado e decidido à luz de um são critério, já para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, já para não excluir as que, aí podem e devem obter solução adequada”, sendo que “a lei limitou-se a formular uma regra, um critério de orientação, cabendo ao poder judicial fixar-lhe os limites, definir-lhe os contornos e dar consistência ao seu conteúdo maleável”. [Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, pág. 539]
No caso que temos em mãos, os interessados foram remetidos para os meios comuns com fundamento na falta de acordo sobre a matéria em discussão e por não existirem documentos nos autos que permitam resolver tal questão com segurança, havendo que produzir prova sobre a mesma. Donde, o Tribunal de 1.ª Instância não alicerçou a sua decisão na inconveniência para o processo de inventário da apreciação daquela questão incidental, atenta a complexidade da matéria de facto a ela subjacente.
Atento o disposto no art. 1350.º/1 do CPC, não se adequando o fundamento invocado ao fundamento legal, é manifesto ser indevida a remessa dos interessados para os meios comuns, nos termos determinados.
No entanto, considerando a questão submetida a apreciação, no sentido de saber se, tal como sustenta o Recorrente, os montantes pecuniários utilizados para pagamento das rendas da locação financeira constituíam património comum, afigura-se não estar em causa complexidade tal que torne inconveniente a decisão dessa questão no âmbito do processo de inventário.
Mais avançou a 1.ª Instância que «não está demonstrado nos autos que o montante pago (€ 27.916,41) em cumprimento do leasing para aquisição do imóvel que constituía a verba n.º 25 da relação de bens inicialmente apresentada nos autos, constitui todo ele património comum do ex-casal, sendo certo que a requerida/interessada (…) nega tal facto e a prova já anteriormente produzida e referida na decisão sobre a reclamação da relação de bens, acima mencionada, não permite chegar a uma conclusão segura sobre essa matéria, embora se indicie que aquele valor foi pago, pelo menos em parte, com as quantias que o cabeça de casal e a requerida receberam de indemnização pela rescisão dos respetivos contratos de trabalho com a Companhia de Seguros (…).» Considerou-se, assim, que os elementos disponíveis nos autos eram insuficientes para conhecer da questão colocada.
Será assim?
Está assente a seguinte factualidade:
- a conta n.º (…) Caixa Geral de Depósitos integra a relação de bens comuns;- o contrato de locação financeira relativo ao imóvel excluído da relação de bens (verba n.º 25) foi celebrado em 13/11/1998, na pendência do casamento;- as rendas relativas ao contrato de locação financeira foram pagas, durante 15 anos e na pendência do casamento, através da conta n.º (…) Caixa Geral de Depósitos;- o valor total das prestações pagas, considerando capital e juros até 31/05/2011 foi no montante total de € 27.916,41 (vinte e sete mil e novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos);- o imóvel foi adquirido pela Requerida após ter sido decretado o divórcio, a 11/05/2011.
Decorre do exposto que o preço do imóvel adquirido pela Requerida já após ter sido decretado o divórcio, e que constitui bem próprio desta, foi pago, em parte, com dinheiro que constituía património comum do casal. A verba de € 27.916,41 foi aplicada no pagamento das rendas devidas, provindo de conta bancária que integrava o património comum.
Por conseguinte, o património comum é titular de crédito contra a Requerida no montante de € 27.916,41. Foi este o valor do património comum que foi utilizado para pagamento do preço do imóvel adquirido pela Requerida, pelo que inexiste fundamento para lançar o crédito por montante diverso.
Tal verba deverá, portanto, ser elencada na relação de bens enquanto crédito do património comum – cfr. art. 1345.º/1 do CPC.
Acrescente-se que tal operação decorre do disposto no art. 1345.º/1 do CPC, conjugado com o teor do artigo 1724.º do CC, prescindindo do disposto no artigo 1726.º/2 do CC.[...] Este preceito tem em vista os bens adquiridos na constância do matrimónio, determinando a natureza deles em função da mais valiosa das duas prestações que compuseram o preço pago (bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns) e impondo a compensação devida ao património comum ou próprio, consoante o que tenha sido desfalcado em favor do outro. Na medida que o imóvel foi adquirido pela Requerida após ter sido decretado o divórcio, não tem aplicação o regime inserto no art. 1726.º do CC."
[MTS]