"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/05/2021

Jurisprudência 2020 (218)


Penhora;
arrendamento; caducidade*


1. O sumário de RL 19/11/2020 (11/09.0TBMTJ-B.L1-6) é o seguinte:

I - Um contrato de arrendamento celebrado após a penhora é inoponível à execução, caducando automaticamente após a venda executiva.

II - A não impugnação do depósito das rendas feito pelo inquilino, por parte do adquirente em venda executiva, não importa o reconhecimento da existência do arrendamento e, por conseguinte, não obsta à caducidade prevista no art.º 824.º n.º 2 do CC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal da Relação, as questões que importa decidir são as seguintes:

1--Saber se o disposto no art.º 824.º n.º 2 do Código Civil abrange os contrato de arrendamento
 
2--saber se a não impugnação do depósito das rendas, por parte do adquirente em venda executiva, importou o reconhecimento da existência do arrendamento, obstando à caducidade prevista nos termos do art.º 824.º n.º 2 do CC.

Quanto à primeira questão vejamos o que dispõe o art.º 824.º do Código Civil:

“1- A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
 
2-Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.
 
3-(…)”

Tem vindo a ser discutido se um contrato de arrendamento se deve considerar integrado pela previsão do art.º 824.º n.º 2 do Código Civil.

Contudo, o entendimento de que o arrendamento deve ser considerado abrangido pelo n.º 2 do artigo 824.º é claramente maioritário [Vide Acórdão do STJ de 05/02/2009, disponível em www.dgsi.pt e doutrina e jurisprudência ali citadas: Oliveira Ascensão (ROA, Ano 45, 345 e seguintes), Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, 140) José Alberto Vieira (em Estudos em Homenagem ao Professor Galvão Teles, IV, 437) e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e Caldeira Jorge (Arrendamento Urbano, 2.ª edição, 189). Na jurisprudência, os Acórdãos do STJ 3.12.1998 (BMJ 482, 219), 6.7.2000 (CJ STJ, VIII, II, 2000), 6.4.2006, 31.10.2006 e 15.11.2007, estes em www.dgsi.pt.], quer na doutrina, quer na jurisprudência.

Aderimos a este entendimento, por via de uma interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações de facto e consequências práticas, designadamente de natureza sócio-económica, considerando que “a referida norma do art. 824º se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros. É que o arrendamento, dada a sua eficácia em relação a terceiros, deve ser para este efeito, equiparado a um direito real. De outra forma, pôr-se-ia em causa o escopo da lei, de que a venda em execução se faça pelo melhor preço possível”.[Vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/09/2014, Processo 351/09.9TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt] Trata-se pois, de considerar aplicável o efeito extintivo previsto no art.º 824.º n.º 2 do Código Civil a direitos não reais, relativamente aos quais, pela sua especificidade, possam proceder as mesmas razões justificativas da extinção”.[ANA CAROLINA S. SEQUEIRA, “A Extinção De Direitos Por Venda Executiva”, in “Garantias das Obrigações”, 23 e 43]

Este é igualmente o entendimento do Tribunal a quo, aderindo ao “entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência que o arrendamento deve ser considerado abrangido pelo n.º 2 do art.º 824.º do Código Civil”.

2 - Resolvida a primeira questão, importa agora averiguar se a não impugnação do depósito das rendas, por parte do adquirente em venda executiva, importou o reconhecimento da existência do arrendamento, obstando à caducidade prevista nos termos do art.º 824.º n.º 2 do CC.

Foi essa a posição defendida pela decisão recorrida. No entender do Tribunal a quo, entendimento também seguido pelo ora Apelado, não tendo o adquirente impugnado o depósito das rendas, nos termos do art.º 21.º do NRAU, reconheceu a existência do arrendamento. Assim, pretendendo a entrega do imóvel, age em abuso de direito, segundo o estatuído no art.º 334.º do C.Civil.

Discordamos desta tese.

Desde logo, o disposto no art.º 21.º do NRAU segundo o qual “ A impugnação do depósito deve ocorrer no prazo de 20 dias contados da comunicação, seguindo-se, depois, o disposto na lei de processo sobre a impugnação da consignação em depósito. “, não se aplica ao presente caso. Na verdade, por força do disposto no art.º 824.º n.º 2 do Código Civil, face à venda executiva, sempre teria de considerar-se caducado o arrendamento.

Sucede, porém, que o contrato de arrendamento foi celebrado em data muito posterior à penhora.

Nos termos do disposto no art.º 819.º do Código Civil, “são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.

Por conseguinte, também por força deste normativo legal, nunca poderia manter-se o arrendamento a que se referem os autos.

Por conseguinte, o adquirente recebeu, por força de lei o imóvel, livre de qualquer ónus, pelo que não tinha, obviamente, que tomar qualquer posição relativamente a um arrendamento que não lhe era oponível e que, de todo o modo, estava caducado. Não estava, pois, obrigado, a impugnar o depósito de rendas efectuado pelo inquilino do executado. Muito menos a não impugnação do depósito das rendas pode ser considerada um reconhecimento do arrendamento que legalmente não lhe era oponível. Para que eventualmente pudéssemos concluir por um reconhecimento do arrendamento seria necessário um acto que inequivocamente demonstrasse isso mesmo, por exemplo, o levantamento das rendas. Ora tal não sucedeu.

É pois negativa a resposta a esta segunda questão, ou seja, a não impugnação do depósito das rendas nos termos constantes do do art.º 21.º do NRAU não envolve qualquer reconhecimento da vigência do contrato de arrendamento que obste à caducidade determinada pelo art.º 824.º n.º 2 do Código Civil."


*3. [Comentário] O acórdão tem a seguinte declaração de voto (Des. Anabela Cesariny Calafate):

"Acompanho a decisão, porque o arrendamento em causa, posterior à penhora, é, nos termos do artigo 819º do CC, inoponível em relação à execução (e, consequentemente, inoponível ao adquirente), não comportando o seu reconhecimento o facto de as rendas não terem sido impugnadas.

Mas não acompanho a fundamentação quando convoca a discussão sobre se o arrendamento está ou não abrangido pela previsão do artigo 824º nº2 do CC, pois tal discussão não tem cabimento quando, como é o caso, o arrendamento é posterior à penhora e, como tal, inoponível à execução por força do artigo 819º.

A discussão sobre se o artigo 824º abrange ou não o arrendamento só se justificaria se o arrendamento fosse anterior à penhora, não abrangido pela previsão do artigo 819º e sujeito à norma do artigo 1057º do CC, pois, a ser equiparado aos direitos reais nos termos do artigo 824º, caducaria se houvesse registo anterior à sua constituição, como sucederia se houvesse registo de hipoteca anterior, como era o caso dos processos onde foi proferida a jurisprudência citada no presente acórdão."

Esta é, realmente, a justificação correcta. 

Salvo o devido respeito perante a posição que fez vencimento no acórdão, o que é maioritário é o entendimento de que o arrendamento caduca quando, ainda que seja anterior à penhora, seja posterior a uma garantia real exercida no processo executivo.


MTS