Arrolamento;
divórcio; bens comuns*
1. O sumário de RG 12/11/2020 (1555/19.1T8BCL-A.G1) é o seguinte:
I- O art.º 409º do CPC prevê o arrolamento em alguns casos especiais, nomeadamente o requerido por qualquer dos cônjuges como preliminar da acção de divórcio, separação de pessoas e bens ou anulação do casamento (n.º 1) em que dispensa a alegação e prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (nº3).
II- O referido arrolamento tem por objecto (apenas) os bens comuns, ou os bens próprios do requerente que estejam sob a administração do outro cônjuge.
III- O citado normativo não dispensa o requerente da prova sumária de que os bens a arrolar são comuns, sendo que a presunção de comunicabilidade prevista no art.º 1725º do CC apenas se aplica aos bens móveis.
IV- Tendo o requerido, em sede de oposição, provado que os bens imóveis objecto de arrolamento lhe advieram por sucessão, tais bens, nos termos do disposto no art.º 1722.º nº 1 al. c) do CC, são considerados próprios.
V- Embora dos documentos juntos aos autos pelo requerido com a oposição (facto nº 8), resulte que o valor do seu quinhão hereditário era inferior ao valor dos bens que lhe foram adjudicados na partilha e que os demais herdeiros receberam tornas do requerido, a requerente não invocou o pagamento de tornas com dinheiros comuns no requerimento inicial, nem deduziu resposta à oposição. Apenas o mencionou posteriormente, num contexto que extravasa o ritual deste procedimento e sem indicação de qualquer prova, que, ainda que de forma sumária, haveria de produzir.
VI- Acrescendo, que, a doutrina e a jurisprudência, mesmo nos casos em que houve lugar ao pagamento de tornas, considera que o bem não perde a natureza de bem próprio ou, pelo menos, que não passa automaticamente a bem comum.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O art.º 409º do CPC prevê o arrolamento em alguns casos especiais, casos esses em que dispensa a alegação e prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (nº3).
No caso previsto no nº 1 do citado artigo, a providência pode ser requerida como preliminar da acção de divórcio, separação de pessoas e bens ou anulação do casamento, por qualquer dos cônjuges e tem por objecto os bens comuns, ou os bens próprios que estejam sob a administração do outro cônjuge, sem que tal implique uma situação de indisponibilidade absoluta dos bens, continuando a garantir aos cônjuges a sua utilização normal.
Nos presentes autos e seguindo jurisprudência actual, admitiu-se o arrolamento previsto neste normativo, mesmo depois de decretado o divórcio, isto é, como preliminar da partilha.
Para a procedência desta providência e como seus requisitos, basta provar que a requerente é casada com o requerido e alegar que existem bens comuns (ou bens próprios da requerente sob a administração do outro cônjuge) e que pretende intentar acção de divórcio ou já intentou.
Como resulta do normativo invocado, não pode ser requerido o arrolamento de bens próprios do requerido.
O requerido veio opor-se ao arrolamento dos bens imóveis, alegando que são bens próprios dele, por lhe terem advindo por sucessão hereditária, juntando prova documental da partilha e do registo desses bens em seu nome, onde consta como causa de aquisição a dita partilha.
A apelante discorda da sentença que julgou procedente a oposição do requerido, no tocante à exclusão dos bens imóveis arrolados, com o fundamento de que são bens próprios do requerido.
Defende que no arrolamento especial previsto no nº1 do art.º 409º do CPC, a requerente está dispensada da alegação e prova da comunicabilidade dos bens, já que esta se presume, nos termos do disposto no artigo 1724º e 1725º do Código Civil.
Mais alega que, presumindo-se, para efeitos da providência cautelar, como património comum do casal os bens listados na providência, é nos autos principais que se decidirá da titularidade dos bens arrolados.
Ora, em primeiro lugar, o citado art.º 409º do CPC apenas dispensa a requerente da alegação e prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (nº3) e não da prova sumária de que os bens a arrolar são comuns.
Quanto às normas que invoca, as mesmas estabelecem:
Artigo 1724.º (Bens integrados na comunhão)
Fazem parte da comunhão:
a) O produto do trabalho dos cônjuges;
b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei.
Artigo 1725.º (Presunção de comunicabilidade)
Quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns.
Resulta evidente destes artigos que neles não encontra apoio a pretensão da apelante.
Com efeito, por um lado a presunção de comunicabilidade apenas se aplica aos bens móveis.
Por outro, o requerido provou que os bens imóveis objecto de arrolamento lhe advieram por sucessão, juntando aos autos prova documental da partilha, sendo essa a causa de aquisição do direito sobre esses imóveis que consta no registo predial.
Ora, o art.º 1722.º nº 1 al. c) do CC estipula que são considerados próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação.
Assim, estamos perante um caso em que a lei claramente exceptua estes bens da comunhão (art.º 1724º al. b), parte final do CC).
Consequentemente, com base nos citados normativos, nunca a pretensão da requerente poderia proceder.
Refere ainda a apelante no corpo das suas alegações (o que omite nas conclusões) que: “Contudo, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao pronunciar-se pela titularidade dos imóveis arrolados, uma vez que, tendo a Requerida invocado o pagamento de tornas com dinheiros comuns do casal, a apreciação da titularidade dos bens imóveis será objecto a ser decidido na acção declarativa principal”.
Sucede que a requerente não invocou o pagamento de tornas com dinheiros comuns no requerimento inicial, nem deduziu resposta à oposição. Apenas o mencionou posteriormente – num contexto que extravasa o ritual deste procedimento, embora da iniciativa da Mmª juiz “a quo”, que o permitiu – sem indicação de qualquer prova, que, ainda que de forma sumária, haveria de produzir.
É certo que decorre dos documentos juntos aos autos pelo requerido (facto nº 8), que o valor do seu quinhão hereditário era inferior ao valor dos bens que lhe foram adjudicados na partilha e que os demais herdeiros receberam tornas do requerido.
Contudo a doutrina e a jurisprudência, mesmo nestes casos, ou considera que o bem não perde a natureza de bem próprio ou, pelo menos, que não passa automaticamente a bem comum.
Neste sentido no acórdão do TRC de 9.1.2017 (2698/14.3TBVNG.C1) diz-se:
– “A considerarmos que as designadas “tornas” consubstanciam um negócio de alienação/aquisição onerosa do direito real sobre o imóvel, na parte em que exceda o respetivo quinhão na herança, poder-se-á levantar a questão de saber se tal pagamento de tornas altera a natureza do bem, nomeadamente no caso de as mesmas terem sido pagas com dinheiro comum do casal.(…)Na situação em apreço, a causa da aquisição é a sucessão hereditária, nos termos dos artigos 2031º, 2932º, e 2050º, do CC. Sendo a partilha o modo de por termo à indivisão hereditária, com ela se concretizando em bens determinados os quinhões ideais de cada herdeiro, feita a partilha cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, de acordo com a regra da retroatividade consagrada no artigo 2119º CC.A regra é a de que só os bens adquiridos depois do casamento a título oneroso são comunicáveis.A partilha não constituiu em si um modo de aquisição da propriedade, visando tão só a concretização em bens certos e determinados o direito à sua quota ideal sobre a herança.Como salientam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em anotação à alínea a) do nº2 do artigo 1722º, “o que releva é o direito adquirido sobre o património ilíquido e é no momento da aquisição desse direito que se fixa o seu conteúdo; a partilha não passa de uma concretização do direito anterior que não acrescenta nem diminui a posição jurídica que o titular já detinha. Assim, o bem em concreto que aparece de novo, depois do casamento, não é mais do que uma representação do valor que já estava no património do cônjuge adquirente antes do casamento e que, portanto, deve continuar no seu património exclusivo”.Assim sendo, entende-se que o bem adquirido na sequência de partilha ocorrida após o casamento, mas por virtude de direito próprio anterior, mantém a natureza de próprio mesmo que haja lugar ao pagamento de tornas aos demais herdeiros e ainda que este seja de valor superior ao quinhão hereditário e feito à custa de dinheiro comum do casal, sendo devida, tão só, a compensação ao património comum no momento da dissolução e partilha da comunhão.”
Também no Parecer do Instituto de Registos e Notariado, nº R.P. 220/2010 [...], onde se analisa esta questão, se conclui da seguinte forma:
I – A partilha de herança reveste natureza declarativa, limitando-se a concretizar os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança indivisa, cuja sucessão se abriu com a morte do de cuius – cfr. o disposto nos artigos 2031.º, 2050.º, n.º 2, e 2119.º, todos do Código Civil.II – No regime da comunhão de adquiridos, são considerados bens próprios do cônjuge, inter alia, os que lhe advierem depois do casamento por sucessão, bem como os adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior, como decorre do prescrito nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 1722.º do Código Civil.III – Por força do prescrito na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 1722.º, consideram-se adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum, os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele.IV – Consequentemente, o bem partilhado mantém a natureza de próprio mesmo que haja lugar ao pagamento de tornas aos demais herdeiros, e ainda que este seja de valor superior ao do quinhão hereditário e feito à custa de dinheiro comum do casal, sendo devida, in casu, a compensação do património comum no momento da dissolução e partilha da comunhão”.
No mesmo sentido, ver ainda o acórdão desta Relação de 22-2-2018, relatado pela Veneranda Desembargadora, Ana Cristina Duarte, aqui 2ª adjunta (processo nº 68/17.0T8MNC-A.G1), publicado em www.dgsi.pt, em cujo sumário, na parte que nos interessa, consta:
“I - No regime de comunhão de adquiridos constitui bem próprio do cônjuge o prédio urbano que lhe adveio depois do casamento por sucessão.II. Essa qualificação não é alterada pelo facto de ambos os cônjuges terem licitado no inventário e as tornas terem sido pagas com dinheiro de ambos.”
Pelo exposto e considerando a prova produzida no âmbito deste procedimento cautelar, bem andou a Mmª juiz “a quo” em julgar procedente a oposição, excluindo os bens imóveis, porque bens próprios do requerido, do arrolamento."
*3. [Comentário] O acórdão não suscita nenhuma objecção.
Cabe salientar a aplicação do arrolamento especial regulado no art. 409.º, n.º 1, CPC em relação a acções que não são as que se encontram enumeradas no preceito. A interpretação extensiva deste preceito não levanta dificuldades enquanto, mesmo depois da acção de separação de pessoas e bens, de divorcio ou de declaração de nulidade ou de anulação do casamento, não tiver sido realizada a partilha dos bens comuns ou enquanto bens próprios do requerente sejam administrados pelo outro ex-cônjuge.
MTS