"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/05/2021

Jurisprudência 2020 (216)


Causa de pedir;
factos essenciais; ineptidão da petição inicial*


1. O sumário de RP 10/11/2020 (358/19.8T8VNG.P1) é o seguinte:

I - Estruturante do processo civil, o princípio do contraditório confere às partes o direito a poder actuar ao longo do processo numa tríplice dimensão: factos, prova e direito.

II - Decretar a absolvição da instância do(s) réu(s) por força de uma excepção oficiosamente decretada, não arguida, nem debatida nos autos, após dispensa da realização de uma audiência prévia, deve, em regra, conduzir à nulidade da decisão (art. 195º nº 1 do C.P.C.)

III - Valem como regra de interpretação para os articulados os princípios legais de interpretação das declarações negociais no sentido de apurar se aqueles permitem a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário, ou a um diligente bom pai (ou mãe) de família, compreender o que está em causa na relação material em litígio (art° 236° do Código Civil “ex vi” art. 295º do C.C).

IV - Neste esforço interpretativo, deve ser privilegiada pelo tribunal, aquando daquele esforço interpretativo, a opção de decidir materialmente, evitando soluções de natureza formal que apenas adiam a resolução do conflito. Trata-se de prosseguir a velha máxima romana “Odiosa restringenda, favorabilia amplianda” (“restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável”) em consonância com o disposto no nº 4 do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.

V - Numa acção de responsabilidade extracontratual em que estão em causa agressões físicas e o ressarcimento dos danos delas decorrentes, uma vez descritos os factos atinentes – desferir de muros, pontapés, puxões de cabelos –, as lesões decorrentes relativas aos órgãos corporais atingidos a par do medo causado, identificadas as datas desses factos e os autores de cada um das agressões, não se configura como inepta a petição inicial assim articulada.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"B) A sentença apelada entendeu que, estando em causa factos relativos a uma situação de responsabilidade extracontratual, conforme definida pelo artigo 483º do Código Civil, não teriam sido alegados, no petitório, quaisquer factos que “permitam a caracterização da ilicitude do facto e, muito menos o nexo de imputação do facto ao agente, a sua culpa e, no limite o nexo de causalidade.”

Cumpre apreciar e decidir. Como enquadramento genérico, cabe referir que a apreciação de uma peça processual deve partir do pressuposto que a mesma terá que ser interpretada no sentido de apurar se a mesma permite a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art° 236° do Código Civil “ex vi” art. 295º do C.C) ou de um diligente bom pai (ou mãe) de família, compreender o que está em causa na relação material em litígio.

Em termos constitucionais, sendo missão do poder judicial administrar a Justiça em nome do Povo (nº l do art° 202° da Constituição da República Portuguesa), aquele esforço interpretativo deve ser feito no sentido de procurar, na maximização do possível, dirimir materialmente os conflitos que lhe são colocados, evitando decisões de natureza formal. Trata-se, no fundo, de prosseguir a velha máxima romana “Odiosa restringenda, favorabilia amplianda” (“Restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável”) em consonância com o disposto no nº 4 do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.

Segundo jurisprudência pacífica tal interpretação deve ter presente uma preocupação de prevalência do fundo sobre a forma de molde a procurar ir ao encontro do que é efectivamente pretendido pelas partes no processo, independentemente das incorrecções formais.

Isto posto, dispõe o art. 186º nº 2 do C.P.C.:

“Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir incompatíveis ou pedidos substancialmente incompatíveis.”

A causa de pedir, segundo a adoptada teoria da substanciação, traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (art. 581º nº 4 do CPC). A falta de causa de pedir consiste na omissão de factos essenciais, somente estes, que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.

Pois bem.

Analisando o caso em apreço a partir do que consta do próprio relatório da decisão recorrida, já acima transcrito nas partes relevantes, temos que o tribunal claramente entendeu que foram alegados factualmente um conjunto de situações ocorridas entre autora e os diferentes réus em duas datas distintas.

Destarte, o tribunal “a quo” entende que na petição foi alegado que:

No dia 18 de Janeiro de 2016:

- a segunda ré, munida de um objecto que não foi possível identificar, desferiu um golpe na autora, atingindo-a nas costas e no braço esquerdo;

- os primeiro e terceiro réu agarraram e empurram a autora contra o portão;

- como consequência direta da actuação dos primeiro, segunda e terceiro réus, a autora sofreu diversas lesões que são descritas além de ficar aterrorizada, sempre que permanece na casa de seu pai.

No dia 26 de Janeiro de 2016:

- os primeiro e terceiro réus desferiram vários empurrões e murros na autora;

- a segunda ré puxou-lhe os cabelos;

- a quarta ré, munida de uma embalagem em spray, borrifou o respectivo conteúdo — que não se logrou identificar — para os olhos da autora, que sofreu irritação e vermelhidão na zona atingida, deixando de ver;

- a segunda e quarta rés desferiram vários murros na cabeça e puxões dos cabelos na autora;

- a segunda ré segurava a autora para que a quarta ré lhe desferisse, como desferiu, vários murros que a atingiram na cabeça;

- estas agressões igualmente causaram dores e lesões a par de um medo acrescido de que as agressões se pudessem repetir, medo esse que se mantém.

Todos estes factos não só constam da petição inicial como, repita-se, são relatados no despacho recorrido como tendo sido concretamente alegados pela autora segundo o entendimento do tribunal “a quo”.

Salvo o devido respeito, face a esta enumeração factual, julgamos estarem descritos actos que consubstanciam uma violação do direito à integridade física da autora e que os mesmos foram causalmente responsáveis por um conjunto de danos - lesões físicas, dores, medo - susceptíveis de reparação.

Mesmo que, numa interpretação restritiva se possa defender que não foi expressamente alegado que os réus agiram com dolo directo, julgamos poder aferir-se tal pressuposto a partir da factologia descrita à luz da interpretação de um normal declaratário posto perante o que resulta acima narrado.

Mas ainda que o tribunal apelado assim o não entendesse, não se vislumbra como tal omissão possa desencadear a pretendida ineptidão da petição inicial. Salvo melhor opinião, teria sempre o tribunal recorrido o poder/dever de, ao abrigo do disposto no art. 590º nº 2 a) e nº 3 do CPC, convidar o autor a esclarecer esta situação.

Na verdade, uma vez identificada a causa de pedir, como o foi designadamente pelos contestantes que sobre a mesma discorreram sem dificuldades, a petição inicial será apta para o desempenho da sua função, pelo que, prosseguindo o processo, se faltar a alegação de alguns factos principais, o juiz deve convidar a parte a complementar a petição (arts. 590.º-4 e 591.º-1-c do CPC), podendo ainda, mais tarde, aquando da instrução do processo, ela vir a ser completada, se necessário (art. 5.º-2-b CPC).

Apenas se nenhum facto concreto, dos que integram a causa de pedir, haja sido alegado, hipótese descartada pela própria decisão apelada, é que a petição inicial poderia ser declarada inepta (art. 186.º CPC, n.ºs 1 e 2-a), por faltar o próprio objecto do processo (neste sentido, leia-se, por todos, Lebre de Freitas, Revista da Ordem dos Advogados, III-IV, pg. 748)."


*3. [Comentário] Apenas uma nota sobre o sumariado em II.

Afirma-se no acórdão o seguinte:

"A violação do contraditório, omissão de acto que a lei prescreve, conduz à nulidade uma vez que tal irregularidade pode influir no exame ou na decisão da causa; esta encontra-se, “in casu”, coberta por decisão judicial, pelo que cabe a este tribunal de recurso dela tomar conhecimento uma vez invocada, como foi, nas alegações de recurso."

Salvo o devido respeito, não há nenhuma nulidade processual que esteja coberta por uma decisão judicial, dado que o tribunal não foi chamado a pronunciar-se nem se pronunciou sobre a prática ou a não prática de um acto. O que há é uma decisão que comete uma nulidade processual ao omitir a audição prévia das partes e que, por isso, é ela mesma nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).


MTS