"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/06/2021

Jurisprudência 2020 (225)


Processo de inventário;
legitimidade; massa insolvente


1. O sumário de RL 24/9/2020 (31/20.4T8MTA.L1-2) é o seguinte:

I – O artigo 1085º, do CPCivil trata de duas matérias bastante distintas:

– o nº 1, al. a), regula a legitimidade processual, ou seja, define quem tem legitimidade para ser parte principal no processo de inventário;
 
– o nº 2, als. a) e b), regula a legitimidade para a prática de atos processuais, isto é, define que atos podem ser praticados pelos interessados nele referidos.

II – Subsistirá ilegitimidade, conducente à absolvição da instância, sempre que o inventário venha a ser requerido por quem não seja interessado na respetiva partilha.

III – A massa insolvente não sendo interessada direta na partilha por óbito do pai da insolvente, não pode requerer a abertura do respetivo processo de inventário.

IV – A interessada direta insolvente não tem legitimidade para requerer ou ser requerida no processo de inventário.

V – O administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual da insolvente, não tem legitimidade para requerer processo de inventário da herança.

VI – O administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual da insolvente, tem legitimidade para num processo de inventário ser requerido em substituição do interessado direto insolvente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"1.) SABER SE A MASSA INSOLVENTE DE ZC… TEM LEGITIMIDADE PARA REQUERER A ABERTURA DE PROCESSO DE INVENTÁRIO POR ÓBITO DE AA…, PAI DA INSOLVENTE.

a.) Legitimidade processual para requerer a abertura de processo de inventário. [...]

Isto é, será a massa insolvente de ZC… interessada direta na partilha por óbito de AA…, pai da insolvente?

Vejamos a questão.

A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – art. 46º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Em termos de âmbito, esta abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que este adquira na pendência do processo. Em termos de função, esta destina-se primordialmente à satisfação das dívidas da própria massa insolvente e apenas depois dos créditos sobre a insolvência. Esta destinação da massa insolvente ao pagamento das suas dívidas e dos créditos sobre a insolvência implica a sua qualificação como um património de afetação [...].

Em relação aos bens e direitos que compõem a massa insolvente, estes correspondem em princípio à totalidade do património do devedor à data da declaração de insolvência [...].

Como entendeu na sua decisão o tribunal a quo, que se subscreve, “considerando a data do óbito do autor da herança (21/11/2004), o insolvente foi chamado à sucessão antes da sua insolvência, o que significa que, a partir da declaração de insolvência, o quinhão hereditário do insolvente passou a integrar a massa insolvente, independentemente do momento da sua apreensão no âmbito do processo de insolvência, perdendo qualquer poder de disposição sobre o referido direito”.

Temos, pois, que o quinhão hereditário da insolvente na herança por óbito de AA…, por fazer parte do seu património à data da declaração de insolvência, passou a integrar a massa insolvente.

Assim, o que passou a estar integrado na massa insolvente foi o direito sobre uma quota-parte da insolvente no património da herança do falecido, AA….

Pelo facto de o quinhão hereditário da insolvente no património da herança do falecido, AL…, passar a estar integrado na massa insolvente, não faz desta interessada direta na partilha, de modo a ter legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário.

O que está integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança do falecido, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma.
 
Interessada direta na partilha da herança do falecido seria a insolvente, por ser herdeira, e não a massa insolvente, pois, além de não ser sucessora do de cujus, não é diretamente beneficiada pela partilha (não é um interessado direto).

Ora, como a massa insolvente de ZC… não é interessada direta na partilha por óbito de AA…, pai da insolvente, não pode requerer a abertura do respetivo processo de inventário, pois não tem legitimidade para ser parte principal.

c.) Legitimidade processual da interessada direta insolvente para requerer a abertura de processo de inventário.

E, a interessada direta insolvente terá legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário da herança por óbito de AA…, seu pai?

A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – art. 81º, nº 1, do CIRE.

O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – art. 81º, nº 4, do CIRE.

Pode suceder que um dos interessados diretos tenha sido declarado insolvente. Nesta situação o interessado direto não tem legitimidade para requerer ou ser requerido no inventário, dado que o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer atos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – LOPES DO REGO – ABRANTES GERALDES – PINHEIRO TORRES, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 32].

O devedor fica privado dos poderes de administração e disposição. Os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência [CARVALHO FERNANDES – JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, p. 411].

Disto decorre que o insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – LOPES DO REGO – ABRANTES GERALDES – PINHEIRO TORRES, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 32.].

Temos, pois, que a insolvente ao perder os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e sendo inoponíveis à massa insolvente quaisquer atos praticados pela insolvente sobre esse quinhão, não tem, por tal facto, legitimidade para ser parte no processo de inventário.

d.) legitimidade processual do administrador da insolvência para requerer a abertura de processo de inventário.

A apelante alega que “requereu processo de inventario por óbito do pai da insolvente, tendo em presença apurar quais os bens que especificamente cabem à insolvente. Ou seja, como administrador da massa falida da herdeira do inventariado, falecido antes da declaração de falência, tratando-se de uma questão de representação da falida”.

Vejamos a questão.

Como o insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário, o administrador é o substituto processual do interessado insolvente (art. 81º, nº 4, do CIRE). Este preceito refere-se, de modo equívoco, a uma função de representação do insolvente: a verdade é que o administrador atua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte interessada). Isto significa que o administrador da insolvência vai atuar no processo de inventário como substituto processual do interessado insolvente [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – LOPES DO REGO – ABRANTES GERALDES – PINHEIRO TORRES, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 34.].

Pode perguntar-se se a legitimidade que é reconhecida ao administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual do insolvente, lhe permite requerer o inventário para partilha da universalidade comum [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – LOPES DO REGO – ABRANTES GERALDES – PINHEIRO TORRES, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 33].

A resposta tem que ser negativa, dado que os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – LOPES DO REGO – ABRANTES GERALDES – PINHEIRO TORRES, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 33].

Antes da partilha existe apenas comunhão, pois a herança indivisa constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio, sendo os herdeiros apenas titulares de um direito indivisível, enquanto não se fizer a partilha [ Ac. Tribunal da Relação de Évora de 2019-02-28, Relator: TOMÉ RAMIÃO, http://www.dgsi.pt/jtre].

Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles. Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança [Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2020-05-26, Relatora: PAULA CARDOSO, http://www.dgsi.pt/jtrl].

Disto decorre que o administrador da insolvência não tem legitimidade para requerer o inventário da herança, mas tem legitimidade para neste processo ser requerido em substituição do interessado direto insolvente [MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – LOPES DO REGO – ABRANTES GERALDES – PINHEIRO TORRES, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 33].

Temos, pois, que recaindo os direitos da massa insolvente sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, seja a apelante Massa Insolvente, seja o administrador dessa massa insolvente, não têm legitimidade para requerer o inventário da herança “para apurar quais os bens que especificamente cabem à insolvente”.

[MTS]