Direito de remição;
união de facto*
- O exercício do direito de remição (na venda em processo executivo) pelo unido de facto não está previsto expressamente na lei ordinária em geral, nem nas leis que preveem medidas concretas de proteção dos unidos de facto, nomeadamente a Lei 7/2001.
- Apesar de esta Lei nº 7/2001 ter resolvido alguns problemas, com a previsão de medidas concretas de proteção dos unidos de facto, na verdade a união de facto, na lei portuguesa, não foi equiparada ao casamento e as normas respeitantes ao casamento não devem, em princípio, ser aplicadas à união de facto por via da analogia.
- Assim, a decisão sobre a questão da admissibilidade do direito de remição pelo unido de facto numa venda executiva há de situar-se, não já no plano da diferente natureza do casamento e da união de facto, mas numa pura perspetiva constitucional, no plano do interesse da família enquanto casal nascido da união de facto sem distinções quanto às relações de filiação daí decorrentes.
- Daí concluir-se que seria inconstitucional a norma constante do art. 842.º do CPC se interpretada de forma a não admitir o exercício do direito de remição ao unido de facto, assim se reconhecendo a este o direito de remição aí previsto, sob pena de, não se fazendo essa interpretação, se violar o princípio constitucional da proteção da família ínsito no art. 36.º, n.º 1 da CRP, conjugado com os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
2. Na fundamentação do acórdão afiram-se o seguinte:
"O prazo e condições de exercício do direito [de remição] variam consoante a modalidade de venda dos bens e o tipo de formalização para ela exigida (cfr. art. 843 e mais adiante analisado).
É pois sobre este pano de fundo que se impõe pensar a hipótese de alargar o âmbito de aplicação do art.º 842.º à pessoa que com o executado viva em união de facto, aliás como se fez no Ac. do STA de 08-09-2010 e aludido pelo executado aquando da notificação para se pronunciar sobre o pedido de remição.
Ou seja, o citado aresto decidiu, em concreto, a questão de saber se é legalmente admissível a possibilidade de aplicação do art 842.º(no quadro legal em vigor à data do acórdão, o pretérito art. 912.º) aos casos de venda judicial em sede executiva da casa de morada de família de um agregado familiar que vive em união de facto.
Concordamos na íntegra com tal explanação, cuja fundamentação, por uma questão de economia, se dá por reproduzida, e se irá seguir de perto atenta a sua irrepreensível argumentação, a qual se adapta perfeitamente aos casos de venda judicial em sede executiva dos bens em geral do executado que vive em união de facto e cujo companheiro, unido de facto pretende remir.
Aliás, o discurso argumentativo daquele acórdão é muito próximo de alguns acórdãos do Tribunal Constitucional a respeito de matérias que contendem com direitos dos membros da união de facto, v.g, como o acórdão TC nº 359/91, mostrando-se elucidativa a seguinte passagem deste último acórdão que se transcreve e cuja linha de racicocínio é seguida naquele outro AC do STA:
'Aliás, em última análise, a decisão …há de situar-se, não já no plano da diferente natureza do casamento e da união de facto, mas sim no plano do interesse dos filhos, que, por força daquele preceito constitucional [refere-se ao nº 4 do artigo 36º], não podem conhecer tratamento discricionário derivado do facto de os respectivos progenitores serem ou não casados, mostrando-se assim irrelevante a argumentação que, pelo facto de a lei civil proibir a aplicação analógica de normas excepcionais, acaba por não rejeitar àquela discriminação”.
Com efeito, tal como referido no citado aresto do STA, se a Lei nº 7/2001, enquanto diploma que prevê as medidas de proteção das uniões de facto, permite estender alguns direitos às pessoas que vivem em união de facto, já quanto aos efeitos jurídicos reconhecidos a uma união de facto no art. 3º, resulta, claramente, que o diploma nada prevê quanto ao direito de remição.
Porém, apesar de a Lei n.º 7/2001 não prever o direito de remição, o mencionado diploma não consagra uma lista taxativa de todos os direitos que o legislador pretendeu reconhecer aos unidos de facto, pelo que pode aquele direito estar previsto em outro dispositivo legal, mormente no Código de Processo Civil, com a vantagem da sua aplicação analógica.
Sem embargo, constituindo a Lei n.º 7/2001 um diploma que consagra um regime especial e que, por isso, contém normas de carácter excecional, a analogia está excluída como processo de integração de lacunas em cumprimento do art. 11.º do CCiv.
Mutatis mutandis, chegar-se-á a tal conclusão por outra via de resolução: por via de uma interpretação extensiva da norma, nesta mesma questão de se poder alargar a titularidade do direito de remição à pessoa que com o executado viva em união de facto.
Partindo da distinção entre interpretação extensiva e analogia, seguida de uma análise da ratio legis subjacente à norma contida no art. 842.º, em busca de uma possível interpretação extensiva e atualista, tal como no citado Acórdão, acaba-se por concluir que nem a letra nem a história do preceito reservam espaço à possibilidade de uma interpretação extensiva do art. 842.º (...).
Também assim o entendemos, aliás conforme também é sustentado pelo recorrente, quando faz alusão ao art. 9º do CC.
Razão por que discordamos, em absoluto, do entendimento perfilhado pelo executado e que foi acolhido no despacho recorrido, no sentido de que a falta de previsão do direito de remição no caso do unido de facto traduz a existência de uma lacuna, cuja integração deve ser feita com o recurso à analogia, ou seja, preenchendo-se o caso omisso por via da equiparação da situação do unido de facto a caso análogo do cônjuge referido no artigo 842.º do CPC, ou do regime constante do art. 1640º do CC.
Ou seja, não faz sentido estabelecer, como se estabelece no despacho recorrido, uma paridade entre as pessoas em união de facto e os cônjuges para efeitos de direito de remição com base na ratio do artigo 842.º ou do regime das dívidas dos cônjuges do art. 1690º do CC.
O que nos leva a concordar com o Recorrente quando advoga que não é aceitável, nem à luz das normas do regime especial da lei quadro das uniões de facto - que não estabeleceu uma paridade absoluta entre as uniões de facto e as relações matrimoniais clássicas - equiparar a unida de facto ao cônjuge e aplicar, pela via analógica, o preceituado no artigo 842.º do CPC.
Rita Lobo Xavier (in “Estatuto Privado da União de Facto, in RJLB, ano 2, 2016, nº1, pag. 1513)afirma que “ Resulta da lei portuguesa que a união de facto juridicamente relevante, embora considerada como uma relação análoga à dos cônjuges, não é equiparada ao casamento, constituindo, por isso, uma relação parafamiliar (pararafraseando Pereira Coelho), mais precisamente, paraconjugal”. Noutros ordenamentos jurídicos, por exemplo, no ordenamento brasileiro, a união estável é equiparada ao casamento e constitui uma entidade familiar.
Aquela mesma autora ( in ob cit, pag.1532 ) realça que “A Lei n.º 23/2010, de 30/8, que procedeu à primeira alteração da LUF, não consagrou quaisquer soluções para os problemas relacionados com responsabilidade solidária por dívidas contraídas para acorrer aos encargos da vida do lar e à divisão do património adquirido durante a relação. As sugestões da doutrina e dos tribunais enfrentam todavia duas objeções importantes. Por um lado, tratar-se-á de “adivinhação judiciária”, isto é, da construção de uma teoria a posteriori para justificar aquilo em que os membros da união de facto nem sequer pensaram; ou de “contorções” do direito comum, muitas vezes insatisfatórias. Por outro lado, se as pessoas vivem em união de facto porque não querem casar, “seria uma violência impor-lhes o estatuto matrimonial, que elas deliberadamente rejeitaram” ( aliás este último aspeto é realçado pelo recorrente).
Contudo, importa salientar que algumas das normas inseridas na LUF pressupõem o reconhecimento da existência de uma forma de “economia doméstica”, tal como refere a mesma autora.
Em suma: apesar de tudo, a lei 7/2001 (com todas as alterações que já teve) resolveu alguns problemas, mas a união de facto não foi equiparada ao casamento e as normas respeitantes ao casamento não devem, em princípio, ser aplicadas à união de facto por via da analogia.
Pelo que, a sentença errou ao fazer a referida aplicação analógica.
Chegados aqui: resta perguntar se a questão poderá vir a ser decidida numa pura perspetiva constitucional, aliás como ocorreu no passado recente, em muitos outros casos em que agora a querela doutrinal e jurisprudencial já está resolvida com a previsão plasmada na LUF ( por exemplo, o que ocorreu com as normas inseridas na LUF e que pressupõem o reconhecimento da existência de uma forma de designada “economia doméstica- art. 4º, 5º, art. 6º da LUF) ou até no CC ( cfr. art. 2020º do CC e art. 496º, nº3 do CC).
Aliás, em última análise, e tal com o frisámos no início desta exposição quando citámos o AC do TC. Nº 359/91, a decisão sobre a questão há de situar-se, não já no plano da diferente natureza do casamento e da união de facto, mas sim no plano do interesse da família enquanto casal nascido da união de facto sem distinções quanto às relações de filiação daí decorrentes, nomeadamente por força dos arts. 36ºnº1 e 67º da CRP, mostrando-se assim irrelevante a argumentação que, pelo facto de a lei civil proibir a aplicação analógica de normas excecionais, acaba por não se rejeitar aquela discriminação.
O enquadramento constitucional da união de facto terá se ser analisado tendo em atenção o disposto nos artigos 36º,nº1 , 67º e 26º e 13º, todos da CRP.
Neste particular, veja-se a anotação ao art. 36º da CRP, de Gomes Canotilho e Vital Moreira ( in CRP Anotada, 3ºed., p. 220): “ Conjugando o direito de constituir família com o direito de contrair casamento, a Constituição não admite todavia a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”. Para isso apontam a clara distinção das duas noções no texto (“constituir família” e “contrair casamento”) mas também o preceito nº4 sobre a igualdade dos filhos, dentro ou fora do casamento…Constitucionalmente, o casal nascido da união de facto também é família, e ainda que os seus membros não tenham o estatuto de cônjuges, seguramente que não há distinções quanto às relações de filiação daí decorrentes”. (...)
Assim sendo pergunta-se: a prevalência atribuída pelo art. 842.º do CPC à família matrimonializada conflitua ou não com o entendimento constitucional de família?
Desde já dir-se-á, na esteira da doutrina supra citada e igualmente afirmada no citado AC do STA, que que não existe na Constituição qualquer indício bastante de valorização do casamento relativamente à unidade familiar constituída a partir da união de facto, pelo que é lícito afirmar que está vedada, em absoluto, ao legislador ordinário a possibilidade de optar pela proteção da família fundada no casamento em detrimento da família resultante da união de facto, a não ser que exista um motivo razoável e objectivamente fundado que justifique essa diferenciação e que tenha apoio explícito em valores constitucionais positivos.
Revertendo para o caso sub judicio, dir-se-á que afastar a pessoa que viva em união de facto com o executado da possibilidade de, ao abrigo do art. 842.º do CPC, resgatar o património familiar perante uma venda executiva em processo executivo – atribuindo-se, com isso, primazia à posição de “cônjuge” –, só seria justificado na medida em que se pudesse afirmar a existência de um motivo razoável e objetivamente fundado capaz de justificar essa discriminação, o que não se verifica in casu.
Inexistindo um motivo de tal ordem, a mesma revela-se desproporcionada e não justificada constitucionalmente.
Por conseguinte, no pressuposto de que o direito de preferência não é de todo uma realidade estranha à união de facto (já que o mesmo é reconhecido, em certas situações, pela Lei n.º 7/2001), e tendo ainda em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que a norma esta a ser aplicada, conclui-se que a diferenciação entre o cônjuge e o companheiro em união de facto, para efeitos de titularidade do direito de preferência qualificado na aquisição do património familiar sujeito a venda forçada em processo executivo, não se afigura conforme a Constituição.
E, não se diga, conforme sustentado pelo recorrente, que com este entendimento, se viola o princípio da igualdade (no segmento tratar igual o que é igual e desigual o que é desigual), enquanto princípio vinculativo da lei, porquanto este princípio traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio, pois embora não proíba as distinções de tratamento, se materialmente fundadas, proíbe a discriminação arbitrária, ou seja, as diferenciações que se considerem irrazoáveis por inexistir um fundamento material bastante segundo critérios objetivos e relevantes.
Assim sendo, e conjugando-se este princípio da igualdade com o princípio constitucional de proteção da família, conclui-se pelo dever de não desproteger, sem uma justificação razoável, essa família que não se funda no casamento, pelo menos quanto àqueles pontos do regime jurídico que diretamente contendam com a proteção dos seus membros e que não sejam aceitáveis como instrumento de eventuais políticas de incentivo à família que se funda no casamento.
Não cremos, igualmente, que este entendimento “viola a linha de parentesco”, conforme sustentado pelo recorrente, “postergando a possibilidade de um descendente ou ascendente do executado poder exercer tal direito”.
Com efeito, e conforme se argumenta no citado AC do STA, “como decorre do teor do artigo 842º ( pretérito 912º ) do CPC, a atribuição do direito de remição não está intimamente relacionada com as implicações económicas da eventual morte do executado e preservação do seu património para os herdeiros. Isto porque, ao atribuir, em primeira linha, o direito de remição somente ao cônjuge, e não à primeira e segunda classe de sucessíveis previstas no art.º 2133.º do C.Civil (cônjuge e descendentes, cônjuge e ascendentes), a lei permite que os descendentes e a família consanguínea do executado percam a faculdade de defender esse património para efeitos sucessórios e a possibilidade de preservá-lo dentro da família-linhagem. Com efeito, numa situação de segundas núpcias, com filhos apenas do primeiro matrimónio, se o cônjuge exercer o direito de remição, adquirindo onerosamente o bem na execução, poderá ficar titular exclusivo do direito de propriedade se vigorar o regime de separação de bens. E caso ele sobreviva ao executado, os descendentes e os ascendentes deste perdem a possibilidade de alcançar o bem por via hereditária, o qual se extravia, assim, da família consanguínea do executado”.
Assim sendo, não poderá proceder a argumentação aduzida pelo recorrente no sentido de que a aplicação do 842.º do CPC ao membro da união de facto lhe dá a possibilidade de "desviar" o património do executado dos herdeiros legítimos deste, pois essa situação também pode acontecer no caso exemplificado, em que o cônjuge também pode ficar, através do instituto da remição, com aquele património em detrimento dos descendentes e/ou ascendentes do executado.
Aliás, o mesmo acontece no caso de o executado casado não ter quaisquer filhos, pois os ascendentes (que seriam necessariamente chamados como herdeiros) só podem exercer o direito de remição no caso de o cônjuge não o ter exercido.
Deste modo, e visto que no nosso atual ordenamento jurídico até o núcleo constituído por duas pessoas do mesmo sexo que se encontrem casadas é tutelado como unidade familiar protegida – inclusive podem adotar - gozando da proteção que o instituto da remição dá à família, não cremos que tenha atualmente fundamento razoável, para efeitos de noção e defesa de família, a diferenciação entre cônjuges não separados judicialmente de pessoas e bens e pessoas em situação de união de facto estável e douradora em condições análogas às dos cônjuges, sobretudo tendo em conta que muitas destas uniões persistem dezenas de anos, -como é o caso dos autos: há mais de 18 anos-, gerando filhos, netos e bisnetos, constituindo, enfim, uma efetiva família.
Por tudo o exposto, seria inconstitucional a norma constante do art. 842.º do CPC se interpretada de forma a não admitir o exercício do direito de remição ao unido de facto, assim se reconhecendo a este o direito de remição aí previsto, sob pena de, não se fazendo essa interpretação, se violar o princípio constitucional da proteção da família ínsito no art. 36.º, n.º 1 da CRP, conjugado com os princípios da igualdade e da proporcionalidade."
*3. [Comentário] Sendo certo que o melhor é aguardar por uma pronuncia do TC sobre a matéria, não deixa de haver um argumento a ponderar (aliás, bastante mais concreto do que os argumentos utilizados no acórdão) quanto ao reconhecimento do direito de remição ao unido de facto.
O principal argumento para aceitar a atribuição do direito de remição ao unido de facto é a circunstância de ele também ser reconhecido ao cônjuge que se encontra casado com o executado no regime de separação de bens. Nesta situação, o cônjuge do executado adquire o bem para si próprio, sem qualquer possibilidade de ele se tornar um bem comum dos cônjuges. Isto demonstra que o direito de remição não visa a reconstituição de um património conjugal -- precisamente o que, pela natureza das coisas, não existe na união de facto.
MTS