Procedimento cautelar;
impossibilidade jurídica do pedido*
1. O sumário de RG 17/12/2020 (1484/20.6T8VRL.G1) é o seguinte:
I Não é possível, através de um procedimento cautelar comum declaradamente prévio a uma ação de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado por ter sido alegadamente cometido “erro judiciário” na decisão de deferimento de um arresto, pedir a paralisação ou levantamento desse arresto.
II A tal desiderato obsta:
- a falta de identidade objetiva, decorrência dos princípios da instrumentalidade e da dependência, entre a tutela que se pretende obter pela via do procedimento e o direito que se pretende efetivar através do pedido a fazer na ação principal;- a utilização do meio processual desadequado para sindicar uma decisão proferida noutro processo, ou para antecipar o resultado eventualmente favorável de uma oposição ao arresto, a qual tem igualmente caráter urgente.
III Numa ação de responsabilidade civil por “erro judiciário” é seu pressuposto a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente; num procedimento cautelar prévio à ação essa alegação teria de estar presente por se integrar na “aparência do direito”.
IV Isso não se verifica se não resulta dos autos do procedimento que os requeridos no arresto em causa sequer interpuseram recurso, tendo o arresto sido confirmado e ampliado face a recurso interposto pela requerente do mesmo.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] os recorrentes desenvolvem a sua alegação de recurso em duas vertentes:
- por um lado, alegam “o erro grosseiro da parcial providência do arresto” (originando prejuízos elevados aos requerentes, face à decisão confirmada (e ampliado o arresto) por Acórdão desta Relação proferidas no processo nº. 449/20.2T8VRL –invoca a violação dos artºs. 277º, a), C.P.C., 90º, 128º e 127º do CIRE;- por outro lado, o errado indeferimento do presente procedimento cautelar, violador dos artºs. 362º, 363º, e 364º, do C.P.C..
Vejamos cada um desses pontos de vista.
Previamente teríamos de fazer uma prognose relativamente a qual a ação principal a propor pelos requerentes, face ao alegado, já que este procedimento do modo como está configurado processualmente (-foi mandado desapensar da ação nº. 1073/20.5T8VRL por despacho transitado) tem de ser visto como preliminar de uma ação principal.
No caso esse raciocínio está facilitado porque, face ao alegado, são os requerentes que anunciam o seu propósito de vir a intentar uma ação de responsabilidade civil contra o Estado, por danos no seu património causados pela errada decisão (no seu ponto de vista) proferida no arresto que corre nos autos com o nº. 449/20.2T8VRL.
Ora, se assim é, o juízo de dependência fica imediatamente comprometido, pois que concluindo neste procedimento por um pedido de ordem à 2ª requerida para a suspensão imediata do arresto e reposição dos bens móveis, créditos e outros bens, advertindo-a ainda de que não poderá praticar atos sobre todos os bens imóveis e móveis arrestados das requerentes, não violando os seus direitos de posse e propriedade, como de atividade mercantil e comercial normal, e neste recurso concluindo mais concreta e expressamente pelo pedido de levantamento do arresto; como facilmente se constata, este(s) pedido(s) não pode(m) ser concebido(s) como algo antecipatório ou conservatório do pedido a formular na ação a propor (e, na perspetiva de deferimento da inversão do contencioso que foi requerida, coincidente com o pedido que constituiria a ação principal), face ao desiderato que se pretende obter numa ação de responsabilidade civil extracontratual: uma indemnização visando o ressarcimento de perdas e danos (o que colide com o requerido em sede cautelar e por outro lado com o facto –já resolvido- de terem intentado inicialmente o mesmo por apenso à ação com o nº. 1073/20.5T8VRL).
Aliás diga-se que coisa diferente do ressarcimento - e que os requerentes referem - é “minorar” prejuízos diários provocados, alegadamente, pela execução do arresto decretado, e que irão deduzir no competente processo; uma coisa é antecipar uma reparação, outra é paralisar prejuízos.
Além disso, e relativamente ainda ao primeiro ponto de vista, não podem os requerentes através de uma outra ação, no caso através do procedimento cautelar comum, sindicar uma decisão proferida num outro processo: e é exatamente esse o fim visado neste procedimento, através da providência requerida, ou seja, a ineficácia ou paralisação do arresto decretado.
Não podia o Tribunal “a quo” e não pode este Tribunal de recurso, atuando em 2ª instância face à decisão de improcedência deste procedimento cautelar intentado, apreciar o bem ou mal decidido naquele processo nº. 449/20.2T8VRL, ficando por isso, e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, prejudicadas todas as considerações a propósito feitas: simulação para desconsideração de personalidade jurídica, os artigos do CIRE expressamente invocados, a disposição do artº. 277º, e), do C.P.C. relativa à inutilidade superveniente da lide, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado, bem como se houve denegação de justiça, ou a proporcionalidade do arresto tudo como vem melhor sintetizado até à conclusão XV do recurso interposto (e até reapreciação da matéria de facto, prova nula e ilegal, tudo como vem abordado no requerimento inicial).
Ou, se virmos numa outra perspetiva, esta declarada pelos requerentes, não pode este processo servir para antecipar a eventual procedência de uma oposição ao arresto, ou o resultado da ação principal que dirima o litígio entre as partes (relativamente ao qual o arresto serviu como meio de proteção de um direito de crédito que aí se pretende fazer valer –cfr. artº. 391º do C.P.C.).
A lei prevê para cada situação o meio processual adequado, e não se pode através de outra ação invocar o que é argumento a ser utilizado em sede de contestação/oposição, muito menos querendo antecipar o juízo a fazer nessa sede.
Conforme se decidiu nos Acs. das Relações de Coimbra de 8/3/2005 e de Évora de 9/7/2015 (dgsi.pt) a utilização dos meios processuais especificamente previstos na lei não pode ser excluída e preterida por outros mecanismos, por força dos princípios da legalidade, da economia processual e da proibição de atos inúteis (artº. 130º do CPC). A “aceleração” de decisões não pode ser obtida através de procedimento cautelar comum, quando a lei especificamente prevê e regula o ato ou situação em causa –no caso seria (será) a oposição ao arresto, e por isso seria ainda redundante dada a urgência também desta; a oposição ao arresto integra ela própria um processo urgente, pelo que, a assistir razão aos requerentes, não podem estes vir através de um procedimento de igual natureza (urgente) vir invocar o prejuízo decorrente da demora.
No Ac. da Rel. de Évora de 18/10/2018 (dgis.pt) adotou-se uma visão diversa. Todavia, e ainda que se pudesse perspetivar a possibilidade do procedimento ser preliminar da ação/incidente declarativo em que se discutirá o crédito ou os fundamentos que determinaram o arresto, essa perspetiva colide com a intenção/pretensão indemnizatória anunciada neste procedimento cautelar e de que o mesmo será preliminar (“antecipatório à ação de condenação”) e que analisamos como primeiro argumento, e com a característica da urgência da oposição ao arresto que analisamos no segundo argumento.
Excluída a identidade objetiva em qualquer sentido ou interpretação, por mais ampla que fosse, que pudesse ser dado à providência requerida, o presente procedimento terá necessariamente de improceder, ainda que, como decorre da decisão sob recurso, se provasse toda a factualidade alegada pelos requerentes.
Ficam por isso prejudicados todos os restantes argumentos recursivos, que integram em síntese as conclusões XVI a final (que encerram também argumentos já “supra” analisados).
De facto, o Tribunal por força do artº. 608º, nº. 2, C.P.C. aplicável ao Tribunal da Relação por força do artº. 663º, nº. 2, do mesmo C.P.C., não aprecia questões prejudicadas pela solução dada a outras.
Porque, não obstante, tratado pelo Tribunal recorrido e decorrente do segundo ponto de vista do recurso interposto, sempre se adiantará que se a ação principal de que a presente é preliminar consistirá numa ação de indemnização por responsabilidade extracontratual, então, relativamente à “aparência do direito” teríamos de ter presente a alegação dos pressupostos da responsabilidade civil, entre eles o “erro grosseiro” que determinou o arresto infundado (bem como os prejuízos daí decorrentes). E, nessa matéria, à argumentação exposta pelos requerentes opõe-se o disposto no artº. 13º, nº. 2, da Lei nº. 67/2007 de 31/12 (relativa à responsabilidade civil extracontratual do Estado): o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Conforme já se apreciou e decidiu no Acórdão desta Relação de 1/10/2015, “Tal revogação tem que ser vista como uma condição prévia da ação de indemnização, tendo o legislador estatuído neste preceito uma condição de procedência da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário. A ausência de revogação da decisão danosa fundada num vício de julgamento qualificável como erro judiciário determina, só por si, a improcedência da ação de responsabilidade – cfr. Carlos Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, anotação 8 ao artigo 13.º, pág. 274, nota 479 e anotação 9 ao artigo 13.º, pág. 276, nota 483 e Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, nota 3 ao artigo 13.º, pág. 357, ambos citados no recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 186, de 23 de setembro de 2015. Assim sendo, estamos perante um pressuposto da ação indemnizatória, pressuposto esse que determina, só por si, a improcedência da ação, conduzindo à absolvição do réu do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – artigo 576.º, n.º 3 do CPC.”.
Ora, no processo nº. 449/20.2T8VRL a decisão de 1ª instância foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães face a recurso interposto pela requerente, conforme decorre da alegação dos recorrentes e das contra-alegações, uma vez que a providência foi ampliada pela Relação. Aos aí requeridos, quando citados (não sabemos se já foram) cabe a possibilidade de recurso, e a possibilidade de apresentar oposição –artº. 372º, nº. 1, C.P.C.. Nos autos não resulta alegada qual foi a atuação dos requeridos, designadamente não resulta o preenchimento daquele dispositivo. Não se pode falar da força do caso julgado material (artº. 619º do C.P.C.) perante os aqui requerentes (ao contrário do sustentado pelo M.P.) porque não sabemos se estes ainda podem ali reagir em via recursória.
Já se pronunciou sobre a constitucionalidade desta norma o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 363/2015, publicado no DR 2ª Série, nº. 186, de 23/09/2015, que decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.
Os argumentos, alguns que também valem para obstar ao objetivo visado neste procedimento (parte destacada a negrito), são os seguintes:
- o artº 22º da Constituição da República Portuguesa reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração, mas o mesmo artº. 22º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito;- reconhece-se uma larga margem de conformação ao legislador, quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado, cabendo-lhe densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar, não podendo, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artº. 22º da CRP;- sabendo que a efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito;- ora, o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais, tem de ser o recurso (e reclamação);- é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para uma limitação como a estatuída no nº. 2 do artº. 13.º da Lei nº. 67/2007;- o que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; menos ainda se poderá admitir que a decisão judicial definitiva sobre uma determinada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior;- a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário, constituem bens constitucionais reconhecidos.
Abordaram esta matéria os Acórdãos das Relações de Guimarães 1/10/2015 (cuja súmula do Acórdão do TC aqui seguimos e já citado), de Évora 17/3/2016, e de Lisboa de 9/7/2014 (www.dgsi.pt).
Quanto ao “periculum in mora”, além de outras considerações que se poderiam acrescentar, secundamos as que foram proferidas pelo Tribunal recorrido.
Apenas de acrescentar, face ao teor da conclusão XXIII que o Tribunal recorrido analisou todas as questões que se lhe impunham, e até mais, pois que tendo logo julgado inadequado o meio para o fim visado, ainda assim apreciou e julgou não verificados os pressupostos do procedimento cautelar comum. Não cometeu por isso qualquer nulidade, designadamente que fulmine a sentença de nula face ao artº. 615º, nº. 1, d), C.P.C.."
*3. [Comentário] A RG decidiu bem.
O caso decidido constitui um bom exemplo da formulação de um pedido juridicamente impossível, que, sempre que o processo comporte despacho liminar, deve conduzir ao indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial. Atendendo a que os procedimentos cautelares são sujeitos a despacho liminar (art. 226.º, n.º 4, al. b), CPC), era isso que a 1.ª instância deveria ter feito, atendendo à manifesta improcedência do pedido (art. 590.º, n.º 1, CPC).
O caso decidido constitui um bom exemplo da formulação de um pedido juridicamente impossível, que, sempre que o processo comporte despacho liminar, deve conduzir ao indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial. Atendendo a que os procedimentos cautelares são sujeitos a despacho liminar (art. 226.º, n.º 4, al. b), CPC), era isso que a 1.ª instância deveria ter feito, atendendo à manifesta improcedência do pedido (art. 590.º, n.º 1, CPC).
MTS