Perícia particular;
valor probatório
1. O sumário de RL 15/12/2020 (7090/10.6TBSXL-B.L1-7) é, na parte agora relevante, o seguinte:
I- Constitui procedimento incorreto dar como provado facto que integra a reprodução textual do teor de relatório de avaliação psicológica feito a pedido da mãe porquanto: (i) os relatórios em causa têm a matriz e natureza substantiva de uma prova pericial particular, figura não reconhecida na nossa legislação; (ii) não foi observada a metodologia própria para a avaliação pericial no âmbito do exercício das responsabilidades parentais; (iii) a reprodução singela do teor dos relatórios como facto provado constitui uma forma de esquiva à formulação de um juízo crítico sobre os mesmos, constituindo uma fusão inadmissível entre o meio de prova e o facto provado a que aquele se dirige; (iv) tais relatórios estão desatualizados, reportando-se a um período superior a um ano antes do julgamento. [...].
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O tribunal a quo deu como provado sob 9 o teor de dois relatórios realizados por psicóloga clínica, na sequência de análise que tal psicóloga fez aos menores. A metodologia adotada, neste circunspecto, pelo tribunal a quo não é aceitável, quer por razões processuais quer por razões de fundo.
Em primeiro lugar, os relatórios em causa têm a matriz e natureza substantiva de uma prova pericial particular, figura não reconhecida na nossa legislação, ao contrário do que acontece, por exemplo, em Espanha. Ou seja, o que a mãe dos menores quis fazer – e fez – foi uma perícia particular aos menores, fora do quadro das perícias legalmente previstas para estes casos (cf. Artigos 42º, nº6, do RGPTC e 467º, nº3, do Código de Processo Civil).[«Pretendendo um dos progenitores infirmar as conclusões de relatório psicológico realizado por estabelecimento hospitalar, por determinação do juiz, caber-lhe-á reclamar daquele ou requerer segunda perícia, não podendo pura e simplesmente contraditá-lo, por via da junção aos autos de relatório psicológico elaborado por psicólogo que lhe presta serviços» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.7.2017, Ezaguy Martins, 12010/14] Este processo foi instaurado em 12.11.2018 e a avaliação em causa decorreu entre dezembro de 2018 e janeiro de 2019 (fls. 33 v.).
Em segundo lugar, não foi observada a metodologia própria para a avaliação pericial no âmbito do exercício das responsabilidades parentais, a qual pressupõe «(…) a realização de entrevistas individuais e conjuntas com os pais, entrevistas individuais e conjuntas com a(s) criança(s), e a observação das interações entre os diversos membros do sistema familiar (…). O processo deve ainda ser complementado com a recolha de informação junto de fontes colaterais, da rede formal ou informal» - Rute Agulhas e Alexandra Anciães, “Avaliação pericial no âmbito do exercício das responsabilidades parentais. Que contribuição para a atribuição de residência alternada?”, in Sofia Marinho e Sónia Vladimira Correia, Uma Família Parental, Duas Casas, Edições Sílabo, 2017, p. 210. Ou seja, a psicóloga clínica não observou o protocolo necessário à realização de prova pericial neste âmbito, não constando do relatório a observação de interações da mãe com os menores, nem tendo sido entrevistado o pai, cuja ausência só ganharia relevância atendível no âmbito de uma perícia ordenada pelo tribunal.
Em terceiro lugar, no âmbito da valoração da prova, há que cindir entre fonte de prova, meio de prova (instrumento de que o juiz se serve para verificar as afirmações fácticas das partes), convicção firmada sobre o meio de prova e subsequente facto provado (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2020, pp. 7-8, 55-63; Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Noções de Psicologia do Testemunho, 2ª ed., 2020, pp. 379-390). No caso, a fonte de prova foram os menores e o meio de prova –admitido pelo tribunal – foram os “relatórios de avaliação psicológica” dos menores elaborados pela psicóloga clínica. Tais relatórios, como qualquer meio de prova, devem ser objeto de um juízo crítico para apreciação do seu valor persuasivo quanto à ocorrência dos factos sob discussão nos autos, devendo o julgador exarar as razões pelas quais os relatórios devem, ou não, ser relevados. Após a formulação desse juízo crítico, o tribunal deve exarar quais os factos que considera provados com base no meio de prova, no caso, nos relatórios de avaliação psicológica. Todavia, os meios de prova não são factos, mas instrumentos processuais para a prova de factos, de modo que o que o tribunal deve considerar, ou não, como provados são factos autónomos e não a reprodução dos meios de prova. Vale isto por dizer que não constitui procedimento correto reproduzir, textualmente, o teor dos relatórios (=meio de prova), devendo, isso sim, enumerar-se factos provados, os quais poderão estar sustentados nesse meio de prova. Deste modo, não devia o tribunal a quo ter reproduzido, textualmente, os relatórios, mas sim ter enunciado factos provados com redação própria (por exemplo, o que foi feito no facto provado sob 11), atendendo ao teor dos relatórios, caso concluísse pela sua atendibilidade e relevância (cf. Artigo 986º, nº 2, do Código de Processo Civil). A reprodução singela do teor dos relatórios como facto provado constitui uma forma de esquiva à formulação de um juízo crítico sobre os mesmos, constituindo uma fusão inadmissível entre o meio de prova e o facto provado a que aquele se dirige.
Em quarto lugar, os relatórios em causa foram elaborados entre dezembro de 2018 e janeiro de 2009, tendo decorrido a sessão de julgamento em 4.2.2020 e datando a sentença de 30.3.2020. Existe um hiato temporal significativo entre a elaboração de tais relatórios e o julgamento, sendo que a própria psicóloga que elaborou os relatórios afirmou, no seu depoimento, que “um ano na vida das crianças é muito tempo”. Daqui também se infere que, mesmo a relevarem-se tais relatórios, os mesmos não estariam atualizados à data da sentença. Foi por esta mesma ordem de razões, que a própria psicóloga afirmou, no seu depoimento, que procedeu à reinquirição dos menores cerca de um mês antes do julgamento.
Por toda esta ordem de razões, entendemos que não pode ser dado como provado o facto 9, devendo o mesmo ser suprimido."
[MTS]