"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/06/2021

Jurisprudência 2020 (226)

Junção de documentos;
escrituração mercantil


1. O sumário de RP 16/12/2020 (0227/18.8YIPRT-A.P1) é o seguinte:

I - O incidente da dispensa do dever de sigilo só tem lugar quando a recusa de colaboração com o tribunal tem por fundamento a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, não quando essa recusa tem outro fundamento.

II - O titular da informação tem o direito à reserva, privacidade ou segredo da informação que lhe respeita; o terceiro que teve acesso a essa informação tem o dever de guardar sigilo sobre essa informação.

III - O dever de sigilo não deve ser dispensado para obtenção da entrega de documentos da contabilidade de uma sociedade quando os factos que se pretendem apurar através desses documentos podem ser apurados por outro meio de prova com maior valia probatória e cuja produção permitirá conservar sob reserva a informação contida nos documentos, v.g. a realização de prova pericial de exame à contabilidade realizada por técnicos de contas ou contabilistas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I) Questão prévia: o objecto do incidente:

Conforme foi mencionado pelo Relator nos despachos que proferiu com vista à definição e regularização da instância aberta e remetida a destempo, importava concretizar o objecto do incidente para definir o que a Relação era chamada a decidir.

A ré é uma sociedade de direito português. Todavia, a autora pretende a junção de documentos da ré e de documentos de uma sociedade de direito francês que não é parte na acção. Como é evidente, tratando-se de pessoas colectivas com personalidade jurídica e judiciária própria, cada uma delas tinha de ser tratada de forma autónoma e distinta.

A ré não pode juntar ou ser obrigada a juntar documentos que não lhe dizem respeito, que não integram a respectiva contabilidade. Apenas a sociedade de direito francês pode juntar ou ser obrigada a juntar os documentos da sua própria contabilidade, sendo certo que para o efeito terão de ser tidas em conta as disposições da legislação europeia em vigor sobre a competência e a produção de meios de prova em matéria civil e comercial.

O incidente foi suscitado pela autora que formulou através dele a seguinte pretensão: ser «a Ré obrigada a apresentar a documentação contabilística requerida, quer em sua posse, quer na posse da sociedade D…, de quem é subsidiária em Portugal».

Entende agora a 1.ª instância que «o presente incidente de levantamento de sigilo está apenas dirigido contra a Ré».

A autora, por sua vez, manifestou que apesar dos documentos que a sociedade de direito francês juntou, mantém o interesse no prosseguimento do presente incidente devendo ser suscitado o mesmo tipo de incidente relativamente a esta sociedade, o que parece querer dizer que o incidente que deduziu deve continuar apenas contra a ré, ou seja, necessariamente, com vista à junção por esta dos documentos da respectiva contabilidade e não, conforme havia sido, inicialmente pretendido também dos documentos da contabilidade da sociedade de direito francês.

Nesse contexto e para não eternizar a polémica, vamos considerar que é esse o objecto do incidente e será apenas esse objecto que será apreciado, ficando totalmente à margem dos autos o tratamento a dar aos documentos que a autora pretende da contabilidade da sociedade de direito francês.

ii) A dispensa do sigilo invocado pela  no tocante aos documentos da respectiva contabilidade:

O acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos constitui um direito fundamental constitucionalmente protegido que implica a obtenção em prazo razoável de uma decisão judicial que aprecie a pretensão regularmente deduzida em juízo.

Nessa medida pressupõe também, para o efeito, que através do tribunal se possa obter a colaboração daqueles que podem dar o seu contributo para a descoberta da verdade, sem o que, em certos casos, se não passaria da simples enunciação teórica dos direitos de cada um sem concretização efectiva, designadamente por ausência de prova.

No domínio do processo civil o artigo 417.º do respectivo Código consagra um dever de cooperação para a descoberta da verdade, impondo a «todas as pessoas, sejam ou não partes na causa», «o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade», «facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.» Esta é a regra: partes ou não devem colaborar com o tribunal para que este possa administrar a justiça.

O n.º 3 da norma institui no entanto que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima se a colaboração pretendida importar: a) violação da integridade física ou moral das pessoas; b) intromissão na vida privada ou familiarno domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.

Só nestas situações aquela recusa pode ser considerada legítima e, como tal, dispensada a colaboração.

O regime de conhecimento desses fundamentos de recusa não é igual em qualquer das situações.

Sendo certo que em qualquer dos casos cabe ao tribunal que ordenou a colaboração, decidir sobre os motivos apresentados para recusar a colaboração e se a recusa é legítima, só quando a recusa é fundamentada na violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado é que tem lugar a abertura do incidente da dispensa do dever de sigilo invocado (n.º 4 da norma) no caso de o tribunal entender que a colaboração é necessária e o requerente pretender que o dever de sigilo seja levantado para que a colaboração ocorra. O incidente de dispensa não visa ultrapassar a recusa de colaboração apoiada em qualquer dos fundamentos possíveis de a legitimar; ele apenas tem por objecto a apreciação do levantamento do dever de sigilo ou segredo.

Assim, excepto nos casos em que para se justificar a recusa de colaboração se invoca a violação deste sigilo ou segredo, situação em que a forma de impor a colaboração é a dedução do incidente de levantamento do dever de sigilo, a Relação só será chamada a apreciar se a colaboração deve ser concretizada através de recurso da decisão da primeira instância que houver apreciado os fundamentos da recusa apresentada (recurso da requerente da colaboração se o tribunal tiver aceite os fundamentos apresentados para a recusa e dado sem efeito o pedido de colaboração, recurso da pessoa a quem é pedida a colaboração se o tribunal não tiver aceite a justificação da sua recusa e determinado a prestação da colaboração).

A possibilidade de dispensa do dever de sigilo no domínio de um processo civil encontra-se prevista no n.º 4 do artigo 519º [417.º] do Código de Processo Civil, segundo o qual, deduzida escusa com fundamento no dever de sigilo, pode ser determinada a dispensa desse dever aplicando-se para o efeito, com as necessárias adaptações, o disposto no processo penal.

Dispõe, por sua vez, o artigo 135.º do Código de Processo Penal que o tribunal superior pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. [...]

A autora requereu que a ré junte aos autos «os extractos contabilísticos, nomeadamente das conta-correntes, comprovativos dos preços finais de compra assim como de venda por kg, relativamente aos anos de 2015 e 2016».

A Mma. Juíza deferiu esse requerimento, sinal de que entendeu que «os factos que a parte pretende provar [têm] interesse para a decisão da causa» (artigo 429.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Notificada para o efeito, a ré escusou-se a juntar os documentos com os seguintes fundamentos: aos documentos estão sujeitos a sigilo, nos termos dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial e do artigo 64.º da Lei Geral Tributária; b) o pedido não respeita os pressupostos da aplicação do artigo 429.º do Código de Processo Civil por não identificar minimamente, em concreto, os documentos cuja junção se pretende e não especificar os factos que com tais documentos quer provar.

As razões mencionadas sob a alínea b) dizem respeito ao conteúdo do despacho que ordenou a junção e aos requisitos para essa junção ser ordenada, nada tendo a ver com a questão da dispensa do sigilo que é, em exclusivo, o objecto do presente incidente e aquilo que esta Relação deverá (poderá) decidir, razão pela qual não nos cabe pronunciarmo-nos sobre as mesmas.

No que concerne sigilo propriamente dito, a ré invoca o disposto nos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial e do artigo 64.º da Lei Geral Tributária. Afigura-se-nos que não tem razão, sobretudo quando invoca essas normas para sustentar um dever de sigilo que confunde com o direito à privacidade ou reserva dos dados da sua vida.

dever de sigilo e o direito à reserva ou privacidade de determinadas informações ou documentos de uma pessoa singular ou colectiva são diferentes dimensões da tutela do mesmo bem jurídico, mas não podem ser confundidas.

dever de sigilo é um ónus que recai sobre quem tem acesso a informação ou documentação de outrem que está sujeita a um direito, titulado por este, de reserva ou privacidade. A imposição do dever de sigilo visa impedir que a informação ou os documentos possam ser divulgados para fora do núcleo de conhecimento em que se encontram. É o caso do dever de sigilo bancário, do dever de sigilo de padre ou do dever de sigilo profissional, do médico ou do advogado por exemplo.

dever de sigilo onera a pessoa que teve acesso à informação ou documentos de uma terceira pessoa no âmbito da sua relação com essa pessoa (a relação médico-paciente, cliente-advogado, cliente-banco) e consiste num instrumento de concretização do direito de reserva ou privacidade que a lei atribui à pessoa a que a respeita a informação ou os documentos em função da natureza ou conteúdo daquela ou destes.

dever de sigilo pressupõe portanto que haja um direito de reserva, segredo ou privacidade do titular da informação sobre o conteúdo da mesma. Mas este direito pode existir sem que lhe esteja associado qualquer dever de sigilo bastando para o efeito que a informação esteja somente em poder do respectivo titular, sem ter chegado ao conhecimento de terceiro cujo estatuto profissional o obrigue a guardar sigilo sobre as informações a que teve acesso.

Para tutela da informação que lhe respeita, titular da informação não se prevalece de qualquer dever de sigilo porque ele pode sempre fazer a divulgação pública que entender da informação, ele invoca sim o direito à reserva ou privacidade da mesma. Quem pode invocar (e deve invocar por se tratar de uma obrigação legal cuja violação o pode fazer incorrer em responsabilidade) o dever de sigilo sobre essa informação é o terceiro que tenha tido acesso a essa informação e que esteja vinculado profissionalmente a guardar segredo da mesma (dever de sigilo).

É assim fácil de ver que para se recusar a juntar aos autos documentos da respectiva contabilidade a ré não pode invocar o artigo 64.º da Lei Geral Tributária que consagra de facto um dever de sigilo, de confidencialidade nas palavras da norma.

Segundo esta norma, os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.

Resulta expressamente da norma que o que se estabelece é o dever dos dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária de não divulgarem determinadas informações alheias obtidas no exercício das suas funções. No caso a junção dos documentos não foi solicitada a qualquer dessas pessoas, pelo que nunca poderá estar em causa a violação do dever de sigilo por parte destes!

A razão que a ré pode invocar para recusar a junção dos documentos não é pois esse dever de sigilo, mas sim a existência de um qualquer direito à reserva, segredo ou privacidade da informação constante desses documentos, a qual não resulta da referida norma, resultará sim de qualquer outra norma de direito que consagre um direito subjectivo com esse conteúdo.

fundamento material da recusa terá pois de ser o disposto nos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial uma vez que nos encontramos perante um pedido de junção de documentos da escrituração mercantil da sociedade ré, a qual, como sabemos, é elaborada em virtude de exigências legais que definem os termos em que essa contabilidade deve ser organizada e conservada.

Sendo assim, neste caso o fundamento da recusa não é a situação prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, ou seja, não é, manifestamente, um caso de recusa por fundamento em «violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado» que pudesse motivar a abertura do correspondente incidente de dispensa.

Por isso, estabelecendo o n.º 4 da norma que o incidente de dispensa do dever de sigilo previsto tem lugar quando a recusa de funda na situação na alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, no caso o incidente não podia sequer ter sido deduzido e, tendo-o sido, deve ser indeferido liminarmente.

Caberá sim ao tribunal de 1.ª instância decidir se o regime dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial obsta ou à apresentação dos documentos em juízo e decidir em conformidade, cabendo da sua decisão recurso para o Tribunal da Relação.

Refira-se que caso fosse apropriado julgar o incidente o mesmo teria de ser indeferido por várias razões.

Conforme se começou por justificar a dispensa do dever de sigilo (não é o caso, repete-se), citando Lopes do Rego, dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa.

O pedido deduzido em juízo pela autora respeita ao pagamento do preço pelo qual vendeu à ré e esta lhe comprou 36.569,41 kg «kiwis da campanha de 2017». Alega a autora que a ré «não apresentou contas sobre a campanha daquele ano» (não alega a razão, designadamente de origem contratual, pela qual a ré estaria obrigada a tal coisa!), «nem deu a conhecer as condições de mercado de venda dos kiwis», (também não explica por que devia a ré comunicar-lhe as condições em que fazia depois a revenda dos kiwis), razão pela qual «indagou … o preço de mercado … praticado naquele ano de 2017, junto de empresas que forneceram o mesmo produto e qualidade» e determinou ela o preço.

Se é assim, pura e simplesmente não se vislumbra que interesse pode ter para a autora e para os fins da acção aceder aos «extractos contabilísticos, nomeadamente das conta-correntes, comprovativos dos preços finais de compra assim como de venda por kg, relativamente aos anos de 2015 e 2016».

Não se alcança, com efeito, que haja nos autos qualquer justificação para que na campanha de 2017 seja relevantes não os preços dessa campanha, mas os preços dos anos de 2015 e 2016, o que interpretamos como preços das campanhas de 2015 e 2016.

Neste contexto, os documentos em causa não parecem pois ter qualquer interesse relevante para a apreciação concreta da pretensão tal como esta foi formulada pela autora, pelo que não se justifica a devassa da concreta escrituração mercantil da ré cuja junção é pretendida.

Por outro lado, se o que se pretende é apurar a quantidade de kiwis adquiridos à autora na campanha de 2017 que a ré logrou revender e a que preços o fez (no pressuposto de que entre a autora e a ré estava acordado que a fixação do preço da venda seria feito à posteriori segundo um critério relacionado com isso) a verdade é que a junção dos documentos não se justifica por razões relativas ao valor probatório do meio de prova por documentos.

Com efeito, a mera análise dos documentos, que poderão ser muitos e carecerão de ser devidamente interpretados, acabará por ser insuficiente para o tribunal julgar os factos atinentes àqueles aspectos. O meio de prova que se justifica (e que o tribunal pode ordenar oficiosamente) é a realização de uma prova pericial de exame à escrita da ré para os peritos apurarem, através da análise da respectiva contabilidade, aqueles factos ou os outros que sejam afinal de contas os que interessam para alcançar o objectivo da determinação do preço.

Sendo realizada por peritos com conhecimentos de contabilidade (técnicos de contas, revisores oficiais de contas ou economistas) a prova pericial permitirá apurar os factos em questão porque os peritos saberão que documentos analisaro que procurar neles e que conclusões contabilísticas deles poderão ser retiradas.

Com a vantagem de que por essa via, precisamente porque os peritos ficarão vinculados ao dever de sigilo profissional em relação ao que apurarem na análise dos documentos, no processo apenas serão tornados públicos os factos indispensáveis para o julgamento da acção e a cujo apuramento a ré não poderá escusar-se se contratualmente tiver acordado um critério de determinação do preço que dependa dessa documentação (caso em que, por força das regras da boa fé, não poderá impedir o acesso à mesma … em termos estritamente suficientes e que salvaguardem a reserva da demais informação que consta dos documentos a analisar, ou seja, através da peritagem).

Também por esse motivo, portanto, a junção dos documentos não assume no caso uma relevância probatória para o cabal exercício do direito de acção da autora (objectivo susceptível de ser obtido de outra forma, mais eficaz e mais protectora do conjunto de direitos em questão) que justificasse a devassa da escrituração mercantil da ré e a derrogação do direito desta à reserva dessa documentação."


[MTS]