Advogado; seguro obrigatório;
intervenção principal; intervenção acessória; convolação*
1. O sumário de RL 3/12/2020 (6918/18.7T8LRS.L1-8) é o seguinte:
- A intervenção principal provocada pode fundar-se em preterição inicial de litisconsórcio necessário ou na verificação de uma situação de litisconsórcio voluntário.- Se o litisconsórcio voluntário decorrer da solidariedade da obrigação, a lei possibilita o reconhecimento do direito de regresso e a condenação na sua satisfação.
- Na intervenção principal a sentença aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado, apreciação que não ocorre na intervenção acessória, constituindo a sentença caso julgado quanto o chamado apenas relativamente às questões de que dependa o direito de regresso.
- O seguro de responsabilidade civil decorrente do exercício da advocacia tem a natureza de seguro obrigatório, podendo ser directamente demandada a seguradora.
- Não se verifica litisconsórcio necessário entre o segurado e a seguradora na acção em seja pedida a condenação em indemnização por responsabilidade civil decorrente do exercício da advocacia.
- A admissibilidade da intervenção principal passiva implica que o chamado e o autor do chamamento sejam ambos sujeitos passivos da relação material controvertida configurada pelo Autor na petição.
- A convolação judicial de incidentes de intervenção de terceiros não pode ocorrer oficiosamente em sede de recurso.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Os incidentes de intervenção de terceiros sofreram alteração de monta na Reforma processual de 1995, mantendo-se o seu quadro estável nas subsequentes intervenções do legislador processual.
Desde essa reforma o desenho legal é o de três distintos incidentes:
-- a) intervenção principal, b)intervenção acessória e c)oposição, estando este último fora do horizonte do caso que nos ocupa.
No que aos demais respeita, o primeiro (intervenção principal) é caracterizado pela similitude de interesse entre o interveniente e a parte a que se associa ou a que é chamado a associar-se, assumindo a posição de Autor ou de Réu ao lado das partes primitivas; o segundo (intervenção acessória) caracteriza-se por poder resultar da decisão a proferir na causa direito de regresso do Réu contra o interveniente, para dele haver o que foi condenado a pagar, assumindo o chamado a posição de auxiliar do Réu.
Genericamente os incidentes podem ser deduzidos por terceiros não partes ou pelas partes, classificando-se, respectivamente, como espontâneos ou provocados. No caso dos autos pode excluir-se a consideração das formas espontâneas, uma vez que o incidente foi deduzido por uma das partes, a Ré.
Como resulta da consequência indicada - assumir a seguradora a posição de Ré - é pretendida a intervenção principal.
A actual intervenção principal provocada aglutinou diversos incidentes anteriores, o que ainda pode ser surpreendido na sua estrutura.
Temos assim, de um lado, a intervenção principal provocada para suprimento de preterição inicial de litisconsórcio necessário passivo ou activo (artigo 316.°, n.° 1, do CPC), e do outro, a autorizada pela verificação de uma situação de litisconsórcio voluntário passivo ou activo (artigo 316.°, n.° 2 e 3, do CPC).
Com a possibilidade acrescida, no que se refere à intervenção em situação de litisconsórcio voluntário passivo (artigo 316.°, n.° 3, alínea a)) fundada em obrigação solidária (artigo 317.°, n.° 1, do CPC), de a lei possibilitar a efectivação do direito de regresso na modalidade do seu reconhecimento e da condenação na sua satisfação.
Nesta sub-espécie do incidente, o chamado assume uma dupla qualidade: (i) de réu, face ao autor e face ao primitivo réu, enquanto este ocupa a posição de réu no confronto com o autor, (ii) de autor no confronto com o chamado. Numa situação inédita no nosso direito processual [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, volume 1.°, p. 634].
Característica essencial da intervenção principal é a de a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa apreciar a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado - artigo 320.° do CPC.
A intervenção provocada acessória encontra-se prevista no artigo 321.°, n.° 1, do CPC, e tem como pressupostos que a) o réu tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda e que b) o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
Visa o incidente possibilitar que o interveniente auxilie o Réu na defesa, constituindo a sentença caso julgado quanto o chamado (...) relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento - artigo 323.°, n.° 4, do CPC - sem que conheça do mérito da acção quanto ao chamado.
A intervenção acessória tem em comum com a sub-modalidade de intervenção principal provocada passiva prevista no artigo 317.°, n.° 1, do CPC, a invocação da posição jurídica de regresso.
Divergem, porque na intervenção principal o chamado assume a posição de parte principal e na acessória não a pode assumir.
Ou seja, estes incidentes - intervenção principal provocada (do 317.°, n.° 1) e intervenção acessória -, têm em comum a situação de regresso, mas excluem-se mutuamente, uma vez que o primeiro pressupõe a possibilidade de o terceiro assumir a posição de parte principal e o segundo pressupõe que o terceiro não pode assumir tal posição.
Este o quadro a considerar na análise da situação dos autos.
A Ré enquadrou o pedido de intervenção no artigo 316.°, n.° 1, do CPC, ou seja, numa situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
O litisconsórcio necessário consiste na situação processual que exige a intervenção de todos os interessados na relação controvertida, sob pena de ilegitimidade, activa e/ou passiva - artigo 33.°, n.° 1, do CPC.
Essa exigência pode decorrer da lei, de convenção negocial ou da natureza da relação jurídica, o que qualifica o litisconsórcio necessário como legal, convencional ou natural.
É pacífico que o acordo estabelecido entre a Ordem dos Advogados e a chamada constitui um contrato de seguro, como resulta das suas cláusulas, confrontadas com o disposto no artigol.0 do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro - RJCS).
Tal contrato foi celebrado, como do próprio texto resulta, nos termos do artigo 104.° da Lei 145/2015, de 9 de Setembro (Estatuto da Ordem dos Advogados - EOA).
Estabelece essa norma:
1 - O advogado com inscrição em vigor deve celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional tendo em conta a natureza e âmbito dos riscos inerentes à sua atividade, por um capital de montante não inferior ao que seja fixado pelo conselho geral e que tem como limite mínimo (euro) 250 000, sem prejuízo do regime especialmente aplicável às sociedades de advogados e do disposto no artigo 38.° da Lei n.° 2/2013, de 10 de janeiro.2 - Quando a responsabilidade civil profissional do advogado se fundar na mera culpa, o montante da indemnização tem como limite máximo o correspondente ao fixado para o seguro referido no número anterior, devendo o advogado inscrever no seu papel timbrado a expressão «responsabilidade limitada».3 - O disposto no número anterior não se aplica sempre que o advogado não cumpra o estabelecido no n.° 1 ou declare não pretender qualquer limite para a sua responsabilidade civil profissional, caso em que beneficia sempre do seguro de responsabilidade profissional mínima de grupo de (euro) 50 000, de que são titulares todos os advogados não suspensos.
Trata-se de um seguro de grupo, uma vez que cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar - artigo 76.° do RJCS -, no caso o vínculo existente entre a Ordem dos Advogados e os seus associados.
Importa apreciar da sua natureza obrigatória, entendendo-se como seguro obrigatório aquele a que estão obrigadas certas categorias de pessoas em razão de factores definidos pela lei que consagra a obrigação de o celebrar. Em consequência, a obrigatoriedade de celebrar o seguro, derroga na mesma medida a regra geral de liberdade contratual, consagrada no artigo 405.°, n.° 1, do CC, a qual inclui a liberdade de contratar ou de não contratar. Aos seguros obrigatórios refere-se o artigo 10.° do RJCS.
A natureza obrigatória do seguro em causa nos autos resulta, no nosso entender, de um conjunto de factores, a saber, (i) da expressão deve utilizada pela lei, (ii) da inclusão desta norma no Estatuto da Ordem dos Advogados, que consagra os deveres dos advogados enquanto profissionais, (iii) da natureza do próprio Estatuto enquanto protector de relevantes interesses públicos e do público.
Quanto à utilização da expressão deve como consagrando um dever e não uma faculdade, decorre a conclusão desde logo do sentido normal daquele verbo.
Tal conclusão é reforçada pela sua inclusão no diploma que visa especificamente regular o exercício da advocacia e estabelecer os deveres próprios dos advogados, como sublinhado, em virtude de o exercício da advocacia ser essencial num Estado de Direito democrático e de, nessa medida, estar regulado também na perspectiva do interesse das pessoas que recorrem aos serviços dos advogados. [...]
Assim concluindo, importa saber se de tal resulta uma situação de litisconsórcio necessário legal entre o segurado e a seguradora na acção em seja pedida a condenação em indemnização por responsabilidade civil decorrente do exercício da advocacia.
A natureza obrigatória do seguro, nos termos gerais, permite que o lesado demande directamente a seguradora - artigo 146.°, n.° 1, do RJCS -, não lhe impõe que a demande conjuntamente com o segurado.
Nessa medida, nos termos gerais, é-lhe permitido demandar apenas o segurado (ou a seguradora), por nenhuma norma impor coisa diversa.
Tal não acontece com o seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação por a lei tomar expressamente posição no artigo 64.°, n.° 1, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto. Não por se tratar de uma característica dos seguros de natureza obrigatória, mas porque, não o sendo, é necessária norma específica que o determine.
Não sendo esse o caso do seguro em causa, a sua natureza obrigatória apenas atribui ao lesado a faculdade de demandar directamente a seguradora, não lhe impõe que o faça.
Ora, para se verificar uma situação de litisconsórcio necessário era indispensável essa imposição.
Em suma, conclui-se que não existe lei que exija a presença em juízo da seguradora de responsabilidade civil profissional no caso dos autos, o que exclui a situação de litisconsórcio necessário legal.
Por outro lado, no contrato trazido aos autos não consta convenção que determine necessária a presença em juízo do segurado e do segurador nas acções em que possa estar em causa matéria regulada pelo contrato.
Não se verifica litisconsórcio necessário convencional.
A decisão de condenação do segurado ou da seguradora, em acção em que apenas uma seja demandada, em nada afecta o efeito útil normal da decisão: condenação a indemnizar.
Com o que se pode concluir não se verificar uma situação de litisconsórcio necessário natural, o que, conjugado com as anteriores conclusões, afasta a possibilidade de enquadramento no regime do artigo 316.°, n.° 1, do CPC, inicialmente invocado pela Ré.
Para além da invocação daquele regime, a Ré pronunciou-se, nomeadamente nas alegações de recurso, pela verificação dos pressupostos da norma do artigo 316.°, n.° 3, alínea a), do CPC.
Já a ela nos referimos anteriormente, enquadrando na sua previsão aquelas situações em que, para além, da Ré, existem outros sujeitos passivos da relação material controvertida.
Diz a norma:
O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este: a) mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida.
A apreciação da admissibilidade da intervenção principal provocada passiva implica a apreciação da identidade da relação material controvertida, ou seja, importa saber se no caso de seguradora de responsabilidade civil, em caso de seguro obrigatório, esta é, com o segurado, sujeito passivo da relação material controvertida.
Qual a relação material controvertida a considerar é, em termos lógicos, a primeira questão a dilucidar: a configurada pelo Autor na petição ou aquela a que o Réu faz referência na contestação?
Entendemos que a primeira, dadas as consequências que resultam da intervenção: decisão condenatória do interveniente no peticionado pelo Autor, com efeito de caso julgado, nos termos do artigo 320.°, do CPC.
Consequências que apenas podem resultar de a relação material controvertida configurada pelo Autor as possibilitar, não podendo basear-se a condenação do interveniente nos factos aduzidos pela Ré na contestação.
Nem se invoque quanto a tal o regime do artigo 317.°, n.° 1, do CPC, enquanto atende à relação configurada pelo Réu. Na verdade, atende a essa relação, mas apenas porque permite a sua apreciação no confronto entre o Réu e o chamado. Em relação ao Autor e ao fundamento do chamamento nenhuma excepção se verifica. A possibilidade de apreciação da relação invocada pelo Réu é um plus nesta sub-espécie, que decorre da apreciação da relação estabelecida entre o Réu e o chamado e não apenas no confronto com o Autor.
Nesse caso, a identidade de relação material tal como configurada pelo Autor continua a ser um pressuposto do chamamento, nada obstando ao resultado previsto no artigo 320.°. A condenação adicional a título de regresso é especificidade que resulta do confronto com o primitivo Réu, envolvendo, naturalmente, a relação por este aduzida na contestação, na tal situação inédita no nosso direito processual.
Similar situação se verifica na sub-espécie do artigo 317.°, n.°1, do CPC, devendo ter-se em conta a relação jurídica invocada na petição pelo autor como requisito do chamamento. A diferença consiste apenas em que é admitida a formulação acrescida do pedido de reconhecimento e condenação na satisfação do direito de regresso decorrente da solidariedade passiva entre o primitivo Réu e o chamado, ou seja, vista a natureza solidária da parte passiva dessa relação jurídica é permitido ao Réu "resolver" desde logo, na acção em que é demandado, o seu direito contra o co-devedor solidário e, nessa medida, é atendido o que quanto a tal alega na contestação (porque esta desempenha a função de petição no confronto com o co- obrigado solidário).
Em suma, na intervenção principal provocada o interveniente tem de ser, como o Réu, sujeito passivo da relação jurídica configurada pelo Autor na petição. Essa qualidade tem de ser aferida face à concreta petição inicial em causa.
Concluímos assim que a relação jurídica a ter em atenção para integração da previsão do artigo 316.°, n.° 3, alínea a), do CPC, é aquela configurada pelo autor na sua petição inicial e não qualquer outra com ela relacionada, v.g., a que o Réu alega existir em sede de contestação, aduzindo novos factos de que decorra a (co- )responsabilidade do terceiro, no caso, os relativos ao contrato de seguro.
Pelas razões expostas, concluímos que a intervenção provocada passiva implica a verificação de uma situação de litisconsórcio voluntário que, justamente se caracteriza por a relação material controvertida respeitar a várias pessoas - artigo 32.° do CPC.
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Em consequência, importa determinar se, face à concreta relação material controvertida configurada na petição inicial, poderia verificar-se uma situação de litisconsórcio voluntário ab initio.
Revertendo ao caso concreto, temos que a identidade de relação material controvertida não se verifica, face à inexistência na petição de elementos que permitam a condenação da seguradora a pagar a peticionada indemnização ao Autor, a saber, os elementos de facto relativos à transferência da responsabilidade.
Temos assim que, in casu, a relação material controvertida configurada na petição não permite a intervenção principal provocada da seguradora, por ela não ser sujeito passivo dessa relação material, requisito exigido pelo artigo 316.°, n.° 3, alínea a), do CPC.
Por tudo, conclui-se que o incidente de intervenção principal provocada passiva não é o meio processual adequado a fazer intervir a seguradora nestes autos, concordando-se com a conclusão pelo indeferimento em primeira instância.
Certo é que poderia haver lugar a apreciação da possibilidade de intervenção acessória provocada prevista no artigo 321.° do CPC. Na verdade, o juiz não está vinculado ao meio processual utilizado pelas partes, nos termos e com os limites do disposto no artigo 193.°, do CPC.
Um dos requisitos da intervenção acessória - insusceptibilidade de ser demandado a título principal - encontra-se verificado pelo que se disse antes quanto à insusceptibilidade de intervenção principal.
Decorre do próprio funcionamento do contrato de seguro que o segurado que satisfaça o pagamento de indemnização por responsabilidade que seja objecto do contrato, tem direito a havê-la da seguradora em termos gerais.
Em abstracto o incidente poderia adequar-se à situação.
No entanto, a Ré não pediu nem em primeira instância nem neste recurso que tal questão fosse objecto de apreciação, nomeadamente face ao teor do artigo 193.°, n.° 3, do CPC.
Termos em que nesta sede de recurso, não é admissível equacionar a convolação - o que seria possível em primeira instância -, por estar o objecto de apreciação delimitado pelas conclusões da Recorrente que não submetem tal matéria a apreciação desta Relação.
Uma última nota para considerar que a decisão recorrida não enquadra a sua apreciação no incidente do artigo 321.°, do CPC, mas procede a uma apreciação perfunctória da viabilidade do direito de regresso que apenas este incidente admite, nos termos do disposto no artigo 322.°, n.° 2, do mesmo Código.
Ora, a decisão ao abrigo desta norma é irrecorrível.
Não obstante, não é essa decisão que está em causa neste recurso, mas a de indeferir o incidente de intervenção principal provocada."
*3. [Comentário] A RL decidiu bem quanto à inadmissibilidade da intervenção principal provocada deduzida pelo réu com base no disposto no art. 316.º, n.º 3, al. a), CPC.
Onde não se pode acompanhar a RL é na inadmissibilidade da convolação da (inadmissível) intervenção principal provocada na (admissível) intervenção acessória provocada (art. 321.º, n.º 1, CPC). O art. 193.º, n.º 3, CPC atribui ao tribunal o poder de determinar oficiosamente essa convolação, nada impedindo que esse tribunal seja um tribunal de recurso.
MTS