Competência internacional; Reg. 1215/2012;
lugar de cumprimento da obrigação
I. Como sucede com os outros poderes e funções do Estado, a jurisdição dos tribunais portugueses tem limites e é demarcada por confronto com a jurisdição dos tribunais de outros países, sendo que para que os tribunais portugueses sejam competentes, no seu conjunto, é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de factor de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio.
II. O nosso ordenamento jurídico encerra, em paralelo, dois regimes gerais de competência internacional, decorrendo o regime interno dos artºs. 62º e 63º do Código de Processo Civil, e o regime comunitário da ressalva contida no art.º 59º do Código de Processo Civil.
III. A aplicação do regime comunitário prevalece sobre o regime interno, em razão do primado do direito europeu, alcandorado a fonte hierarquicamente superior.
IV. Para que a apreciação da causa seja da competência dos tribunais portugueses em atenção às normas jurídicas europeias que decorrem do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, importa que a causa trazida a Juízo esteja compreendida no respectivo âmbito territorial (o regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros; a causa tem conexão com o território de Estados-Membros vinculados pelo Regulamento, a demandada está domiciliada num desses Estados-Membros); no âmbito material (a demanda tem por objecto matéria comercial não excluída do âmbito do Regulamento), e no âmbito temporal (o Regulamento aplica-se apenas às acções intentadas após a sua entrada em vigor).
V. Resulta do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, ter sido adoptado um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço).
VI. A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros.
VII. Tendo em vista a determinação da competência judiciária, importa qualificar o contrato ajuizado de acordo com o direito comunitário, prevalente sobre o direito interno, enquanto pressuposto necessário para se determinar se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes, considerando que o litígio tem por objecto matéria comercial, emergente de uma relação transnacional.
VIII. O Tribunal de Justiça da União Europeia já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens.
IX. Tendo a Autora sustentado a sua pretensão jurídica na circunstância de, no exercício da respectiva atividade, ter encomendado à Ré, a elaboração de um projeto e cálculos para uma máquina, obrigando-se a Ré a fornecer software e hardware para a instalação de recuperação de calor, fumos/água, que fabricou e enviou para Portugal, enviando ainda um técnico seu para proceder à instalação do software, ou seja, tendo a entrega material do equipamento ocorrido em Portugal, encerrará este critério - o da entrega material do equipamento ao comprador - um critério com um elevado grau de certeza jurídica com que as partes podiam contar para a determinação do tribunal internacionalmente competente, no caso os tribunais portugueses, sendo, assim, relevante para fundamentar a conexão do ajuizado contrato com um lugar, no caso Portugal, que, não só é razoavelmente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado, mas também é suficientemente seguro para permitir determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar a deduzida pretensão, decorrente da invocada relação jurídica.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, sublinhando-se que, tal como sucede com os outros poderes e funções do Estado, a jurisdição dos tribunais portugueses tem limites e é demarcada por confronto com a jurisdição dos tribunais de outros países.
Para que os tribunais portugueses sejam competentes, no seu conjunto, “é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de factor de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio”, neste sentido, Castro Mendes, in, Apontamentos das suas Lições de Direito Processual Civil, redigidos por Armindo Ribeiro Mendes, Volume I, pág. 263, sendo que os factores ou critérios de atribuição traduzem-se em circunstâncias que integram o conteúdo de regras ou princípios que definem quando é que “o Estado português se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”, neste sentido, Manuel de Andrade, in, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, página 92, e Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, página 198.
O nosso ordenamento jurídico - art.º 59º do Código de Processo Civil - encerra, em paralelo, dois regimes gerais de competência internacional, aclarando os critérios em função dos quais reconhece, aos tribunais portugueses, competência internacional, e enunciando a exigibilidade dos elementos de conexão prevenidos nos artºs. 62º e 63º do Código de Processo Civil, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do art.º 94º do Código de Processo Civil, entendido como regime interno, e aqueloutro regime decorrente da ressalva contida no mencionado art.º 59º do Código de Processo Civil ao determinar o respeito pelo estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, reconhecido como regime comunitário.
Ou seja, por um lado, e sem curar dos pactos privativo e atributivo de jurisdição decorrente do art.º 94º do Código de Processo Civil, os tribunais portugueses detêm competência exclusiva nos termos do art.º 63º do Código de Processo Civil, enunciando, por seu turno, o art.º 62º do Código de Processo Civil, os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, isto é, os critérios ou princípios da coincidência, condizente à alínea a); da causalidade, decorrente da alínea b); e da necessidade, conforme se colhe da alínea c), indicando-se para mais desenvolvimentos a respeito destes critérios ou princípios, Alberto dos Reis, obra citada, páginas 198 a 200, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª edição, páginas 131 a 134, realçando que os enunciados critérios devem ser entendidos enquanto factores autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastante para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses, como sustentam, Manuel de Andrade, obra citada, págs. 92 e 93, Castro Mendes, obra citada, página 264, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, obra citada, página 131.
Por outro lado, atendendo ao art.º 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia “o regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros”, a par da nossa Lei Fundamental - art.º 8º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa - distinguimos que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Reconhecendo-se, como acabamos de afirmar, que no nosso ordenamento jurídico vigoram, em simultâneo, dois regimes gerais de competência internacional, o regime interno e o regime comunitário, impõe-se também sublinhar que a aplicação do regime comunitário prevalece sobre o regime interno, em razão do princípio do primado do direito europeu, alcandorado a fonte hierarquicamente superior, conforme, aliás, já foi afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, verbi gratia, Acórdão de 8 de Setembro de 2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim), in, Colectânea de Jurisprudência 2010-I-08015, onde se consignou a propósito da prevalência da aplicação do regime comunitário sobre o regime interno: “(…) resulta de jurisprudência assente [que], por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente aplicáveis têm o efeito de, nas suas relações com o direito interno dos Estados-Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional (v., designadamente, acórdãos Simmenthal, já referido, n.º 17, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C-213/89, Colect., p. I-2433, n.º 18). 54. Com efeito, como salientou o Tribunal de Justiça, as normas do direito da União directamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados-Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados-Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.ºs 14 e 15, e Factortame e o n.º 18). 55. Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado - Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10.º CE, de aplicar integralmente o direito da União directamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.ºs 16 e 21, e Factortame e o., n.º 19).”
Revertendo ao caso sub iudice, importa atentar (estamos perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional, em que as partes estão sediadas em Estados-Membros da União Europeia) na ressalva contida no mencionado art.º 59º do Código de Processo Civil ao determinar o respeito pelo estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, no caso, as normas jurídicas europeias relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial que decorre do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, sem deixarmos de acentuar que é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, com aplicação prevalente sobre o denominado regime interno decorrente do regime geral de competência internacional.
Assim, a dilucidação da única questão jurídica colocada a este Tribunal ad quem que consiste em determinar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar a pretensão formulada nos autos, terá em atenção as normas jurídicas europeias que decorrem do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, uma vez que a causa trazida a Juízo está compreendida no âmbito territorial (o regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros, nomeadamente, à Itália e Portugal; a causa tem conexão com o território de Estados-Membros vinculados pelo Regulamento, Portugal e Itália, sendo que a Ré está domiciliada num desses Estados-Membros); no âmbito material (a demanda tem por objecto matéria comercial não excluída do âmbito do Regulamento), e no âmbito temporal (o Regulamento é aplicável apenas às acções judiciais intentadas depois da sua entrada em vigor, ou seja, 10 de Janeiro de 2015, sendo que a presente demanda foi intentada posteriormente) do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012.
Sendo pacífico que a causa trazida a Juízo tem como causa de pedir uma relação contratual, celebrada entre as partes, e atendendo ao enquadramento jurídico que vimos de discretear, tomar-se-á como assente que lhe é aplicável o n.º 1 do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, ou seja, tendo a Ré/Enermatic, S.R.L. domicílio num Estado-Membro, a acção tanto poderia ter sido proposta nesse Estado (Itália), como no “tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”.
Os critérios para determinar o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão resultam das als. b) e c) do n.º 1 do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012:
“b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
Importa, pois, saber se, para determinar qual é o “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, releva o local da entrega dos bens (Portugal) ou do respectivo fabrico (Itália).
Como resulta do cotejo do enunciado art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, foi claramente adoptado um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço), relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, não só seja razoavelmente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado, mas também suficientemente segura para permitir determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão decorrente da relação jurídica, e, neste sentido, convém relembrar o considerando 16 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012 “O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele.”
A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros.
Como exemplo inicial desta orientação, cujas raízes remontam ao Direito Comunitário, descortinamos o Acórdão do TJCE de 14 de Outubro de 1976, no caso LTU Lufttransportunternehmen GmbH Co./Eurocontrol, o qual prescindiu da referência ao Direito de qualquer dos Estados intervenientes na causa do litígio, partindo antes dos objectivos e do sistema do respectivo instrumento, conjugado com os princípios gerais resultantes do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais.
Outrossim, a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sufraga o enunciado posicionamento, aportando Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia que cita, conforme respigamos do Acórdão do Supremo de Justiça proferido em 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1.S1), desta 7ª Secção, in, www.dgsi.pt, também citado pelo Tribunal a quo, “A interpretação autónoma da al. b) do nº 1 do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2002, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do artigo 5º, nº 1, b), do Regulamento nº 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve então fazer-se“à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do regulamento” (acórdão Falco Privatstiftung e jurisprudência nele citada, ponto 20).
Na verdade, como sabemos, e foi mais uma vez recordado, por exemplo, no acórdão de 16 de Junho de 2016 do Tribunal de Justiça da União Europeia, processo, C‑511/14, Pebros Servizi srl contra Aston Martin Lagonda Ltd, “decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 5 de Dezembro de 2013, Vapenik, C‑508/12, EU:C:2013:790, n.º 23 e jurisprudência referida) (…).
Ambos os regulamentos (…) ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na acção, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual” (ponto 54 do acórdão do TJ de 23 de Abril de 2009, proc. C-533/07, caso Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch contra Gisela Weller-Lindhorst).”
Importa, assim, qualificar o contrato ajuizado de acordo com o direito comunitário, prevalente sobre o direito interno, com vista à determinação da competência judiciária sem perder de vista o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, enquanto pressuposto necessário para se reconhecer se os tribunais portugueses são, ou não, internacionalmente competentes, considerando que o litígio tem por objecto matéria comercial emergente de uma relação transnacional, cuidando de relembrar que a competência internacional tem de ser aferida em razão dos termos em que o demandante configura a acção, a qual se define através do pedido, da causa de pedir e da natureza das partes, importando, necessariamente, ponderar sobre os elementos objectivos da demanda, ou seja, a natureza da providência solicitada, a natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, o facto ou acto donde resulta o invocado direito, outrossim, dos elementos subjectivos da acção.
Cotejada a facticidade decorrente dos autos, e enunciada no acórdão recorrido, divisamos que a pretensão jurídica deduzida está sustentada num contrato outorgado entre as partes, pelo qual a Ré/Enermatic, S.R.L., se obrigou a fornecer à Autora/Damabel - Importação e Exportação, Lda., software e hardware para a instalação de recuperação de calor, fumos/água, nos seguintes termos:
- Elaboração de projeto mecânico 60/SP unidade RFW: dimensionamento, seleção de componente;- P & I;- Elaboração de esquemas de montagem mecânica;- Assistência na execução na oficina e no local da obra;- Esquema elétrico de ligação;- Dimensionamento e seleção dos componentes elétricos e informáticos;- SW de gestão e controlo da instalação;- SW de visualização e contabilização energética no PC virtual com as licenças relativas;- Instalação SW;- Assistência no arranque e montagem;- Manual do utilizador; e,- Formação.
E ainda
Tudo isto para funcionar nas instalações da Gravotêxtil - Sociedade de Acabamentos Têxteis, S.A, sitas em Portugal.- Fornecimento do quadro elétrico principal que contém toda a parte de potência, incluindo 2 inverteres de 11KW cada e todos os componentes informáticos: CPU + cartas I/O + Monitor + carta Ethernet para transmissão de dados;- Fornecimento do quadro elétrico periférico contendo cartas I/O e uma carta Ethernet para transmissão de dados;- Ensaios de ambos os quadros; e,- Transporte e embalagem.
A propósito da qualificação dos contratos, o Supremo Tribunal de Justiça já se tem debruçado sobre a questão, reiterando que o Tribunal de Justiça da União Europeia já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente, para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2005 (Processo n.º 05B316); de 10 de Maio de 2007 (Processo n.º 07B072); de 9 de Junho de 2011 (Processo n.º C-87/10); de 5 de Abril de 2016 (Processo n.º 27630/13.8YIPRT-A.G1.S1); de 22 de Setembro de 2016 (Processo n.º 2561/14.8T8BRG.G1.S1) e de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1.S1).
A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça fazendo apelo à Jurisprudência do Tribunal Justiça da União Europeia (TJUE), anteriormente designado da Comunidade Europeia (TJCE), nomeadamente ao Acórdão do Car Trim, de 25 de Fevereiro de 2010, anotado em, O Direito, ano 142.º, 2010, II, por Maria João Matias Fernandes, página 371/384 - reconhece que “1) O artigo 5.°, n.º1, alínea b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que os contratos cujo objeto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências relativas à obtenção, à transformação e à entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por este fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e conformidade com o contrato da mercadoria, devem ser qualificados de “venda de bens” na aceção do artigo 5.°, n.º1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento. 2) O artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, em caso de venda à distância, o lugar onde as mercadorias foram ou devam ser entregues por força do contrato deve ser determinado com fundamento nas disposições desse contrato. Se for impossível determinar o lugar de entrega com esse fundamento, sem fazer referência ao direito material aplicável ao contrato, esse lugar é o da entrega material dos bens pela qual o comprador adquiriu ou devia ter adquirido o poder de dispor efetivamente desses bens no destino final da operação de venda.” (anota-se a referência ao nº 1 do art.º 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, mas inteiramente transponível para a interpretação do n.º 1 do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012).
Deste modo, ponderados os termos do contrato ajuizado, donde emerge o direito que a Autora/Damabel - Importação e Exportação, Lda. se arroga, e tendo em devida atenção os princípios que norteiam a fixação do critério autónomo que consta da alínea b) do art.º 7 do regime constante do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, conforme vimos de discretear, e tendo a Autora/Damabel - Importação e Exportação, Lda. sustentado a sua pretensão jurídica na circunstância de, no exercício da respectiva atividade, ter encomendado à Ré/Enermatic, S.R.L., a elaboração de um projeto e cálculos para uma máquina, obrigando-se a Ré/Enermatic, S.R.L. a fornecer software e hardware para a instalação de recuperação de calor, fumos/água, que fabricou e enviou para Portugal, enviando ainda um técnico seu para proceder à instalação do software, ou seja, tendo a entrega material do equipamento ocorrido em Portugal (equipamento para funcionar nas instalações da Gravotêxtil - Sociedade de Acabamentos Têxteis, S.A, sitas em Portugal), encerrará este critério - o da entrega material do equipamento ao comprador, aqui Autora/Damabel - Importação e Exportação, Lda. - um critério com um elevado grau de certeza jurídica com que as partes podiam contar para a determinação do tribunal internacionalmente competente, no caso os tribunais portugueses, sendo, assim, relevante para fundamentar a conexão do ajuizado contrato com um lugar, no caso Portugal, que, não só é razoavelmente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado, mas também é suficientemente seguro para permitir determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar a deduzida pretensão, decorrente da invocada relação jurídica.
Reconhecido o enquadramento jurídico adoptado acerca dos princípios que orientam a fixação do critério autónomo que consta da alínea b) do art.º 7 do regime constante do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e configurada a demanda nos termos enunciados, resta aprovar o acórdão recorrido, sem deixar de respigar do mesmo, os seguintes segmentos:
“(…) As regras comunitárias de definição do foro em matéria civil e comercial, encontram-se previstas no Regulamento (EU) 1215/2012 de 12 de dezembro.(…) A norma geral consta do art. 4º, nº 1 deste Regulamento que diz que “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.Quando está em causa matéria contratual, como no caso presente, preceitua o art. 7º, no seu nº 1, al. a), b) e c) que: As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro (…).Uma vez que não existe pacto de jurisdição (v. art. 25º do Regulamento), a determinação da competência no presente caso, está dependente da qualificação do contrato celebrado entre A. e R., matéria em que as duas divergem.(…) A A. defende que estamos perante um contrato de compra e venda e a Ré argumenta que entre elas foi celebrado um contrato de prestação de serviços na modalidade de empreitada.A qualificação do contrato em causa tem de ser efetuada à luz do Regulamento 1215/2012 e não à luz do direito interno.Analisando o referido contrato, vemos que a Ré se comprometeu a vender bens em que algum(s) dos mesmos incorporam programas informáticos concebidos por aquela segundo instruções definidas pela Autora.(…) O Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia Car Trim, acima citado (de 25 de fevereiro de 2010, Processo C-381/08), fornece-nos, pois, elementos para a qualificação dos contratos como de “compra e venda” (…) ou de “prestação de serviços”, dizendo a propósito, o seguinte: “Para determinar a obrigação característica dos contratos em causa, há que ter em consideração os seguintes elementos. Em primeiro lugar, importa salientar que a qualificação de um contrato que tem por objeto a venda de bens que, em primeiro lugar, devem ser fabricados ou produzidos pelo vendedor é regulamentada por determinadas disposições do direito da União e do direito internacional que podem orientar a interpretação a dar aos conceitos de “venda bens” e de “prestação de serviços”. Antes de mais, por força do artigo 1.°, n.º 4, da Directiva 1999/44, são considerados contratos de compra e venda os contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir e que, nos termos do artigo 1.°, n.º 2, alínea b), da mesma diretiva, qualquer bem móvel corpóreo é qualificado de “bem de consumo”, com certas exceções que não são pertinentes num caso como o em apreço no processo principal.Além disso, nos termos do artigo 3.°, n.º 1, da CVIM, são considerados contratos de compra e venda os contratos de fornecimento de bens a fabricar ou a produzir, salvo se a parte que os encomendar tiver de fornecer uma parte essencial dos materiais necessários a esse fabrico ou a essa produção.Acresce que o artigo 6.º, n.º 2, da Convenção das Nações Unidas de 14 de Junho de 1974, sobre a prescrição em matéria de venda internacional de bens, prevê também que são equiparados a contratos de compra e venda e dos contratos de fornecimento de bens a fabricar ou a produzir, salvo se a parte que os encomendar tiver de fornecer uma parte essencial dos materiais necessários a esse fabrico ou produção.Assim, as disposições acima mencionadas constituem um indício de que o facto de o bem a entregar ter de ser fabricado ou produzido previamente não altera a qualificação do contrato em causa como contrato de compra e venda.(…) Em face dos critérios acima mencionados, há que qualificar o contrato em causa como de compra e venda de bens, em que o elemento de conexão é o lugar da entrega dos bens (v. art. 7º, nº 1 –b) do mencionado Regulamento).Situando-se este local em Portugal, temos que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar os pedidos formulados na presente ação, o que se declara.”
Na improcedência da argumentação esgrimida e trazida à discussão pela Recorrente/Ré/Enermatic, S.R.L, nas suas doutas alegações de recurso, e na decorrência do consignado enquadramento jurídico normativo, a invocada excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, terá, necessariamente, de ser julgada improcedente."
[MTS]