"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/06/2021

Jurisprudência 2020 (227)


Poderes inquisitórios;
omissão; vício da sentença*


1. O sumário de RP 9/12/2020 (4585/11.8TBSTS.P2) é o seguinte:

I - Proferida sentença de condenação genérica, em montante a liquidar ulteriormente, tem a factualidade atinente ao apuramento do quantum de ser objeto de alegação e de proposição de provas no incidente de liquidação deduzido e, uma vez produzida estas, na insuficiência de prova, incumbe ao juiz, mediante indagação oficiosa, completá-la, cabendo-lhe ordenar as necessárias diligências de prova, designadamente, a produção de prova pericial (cfr. art. 360º, nº 3 e 4 e, entre outros, arts. 411º, 417º, 436º e 467º, todos do CPC, a consagrar afloramentos do princípio do inquisitório).

II - E, invariavelmente, o incumprimento do ónus de prova pelo requerente sequer pode conduzir à improcedência do seu pedido de liquidação, impondo-se o respeito pelo o caso julgado anterior do qual já decorre haver algo a fixar;

III - Na decisão da matéria de facto, com concreta e especificada exposição de factos provados e não provados, o juiz deve garantir a recolha de todos os factos (cfr. art. 5º, do CPC) que mostrem relevância jurídica, acautelando anulações de julgamento, decretadas ao abrigo do art. 662º, nº2, al. c), do CPC.

IV - A deficiência da decisão da matéria de facto sobre pontos determinados, bem como a omissão em tal decisão de factos essenciais à decisão da causa, implica a anulação, mesmo oficiosamente, da decisão proferida pelo tribunal a quo, para que a 1ª instância supra a deficiência e/ou a omissão, sendo de anular a sentença, ao abrigo da al. c), do nº2, do artigo 662º, do CPC, para produção de prova adicional, a complementar a produzida, quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários à reapreciação pelo Tribunal da Relação.

V - E a inobservância do inquisitório, cujo acionamento era necessário para colmatar a insuficiência da prova produzida, constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual por tal omissão ser suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão, desfavorável.

VI - Estando a nulidade processual coberta por decisão judicial posterior que a permitiu e lhe deu continuidade, conferindo assentimento ao respetivo ato ou omissão dela geradora, o meio próprio para a arguir é o recurso a interpor da decisão (e não a simples reclamação), com a qual se esgotou o poder jurisdicional (cfr. art. 613º, do CPC), onde aquela nulidade, a apreciar, releva se se projetar, como é o caso, negativamente na decisão proferida.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2º- Da deficiência da decisão da matéria de facto e das suas consequências

Tendo presente o disposto no nº2, do art. 608º, aplicável ex vi nº2, do art. 663º, ambos do CPC, dos quais decorre que o acórdão conhece “todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e porque a proceder-se à anulação da decisão proferida na 1ª instância, automaticamente fica prejudicada a apreciação dos fundamentos de recurso aduzidos pela apelante cumpre conhecer, de imediato, da patologia da sentença dado que a verificar-se ser de anular a decisão proferida em 1ª instância e de repetir o julgamento, tal determinará a devolução dos autos à 1ª Instância, com o consequente prejuízo do conhecimento dos fundamentos de recurso invocados pela apelante.

Na verdade, o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova, designadamente prova documental e pericial produzida para dar uma decisão à matéria de facto, imprescindível para a de mérito.

Ora, decidiu o Tribunal a quo a matéria de facto fundamentando ter fundado “a sua convicção na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência, mais concretamente na sentença proferida nos autos, na factura de fls. 745 v. (fls. 793 v.); na factura proforme de fls. 746 (fls. 794); a carta de embarque de fls. 746 v. (fls. 794 v.); as facturas de fls. 747, 749 e ss,; a factura de fls. 751 (fls. 795); a factura proforme de fls. 751 v. (fls. 795 v.); a carta de embarque de fls. 752 (fls. 796); as facturas de fls. 752 v. e ss.; 787 e ss., por um lado, e a ficha técnica de fls. 730 v., as facturas de fls. 731 e ss., as notas de débito de fls. 734 v./735, os recibos de vencimento de fls. 735 v. e ss., os extratos de remunerações de fls. 739 fr. e v. e as facturas de fls. 804 e ss., por outro.

Em conjugação com os supra identificados documentos, mais concretamente os juntos pela A., foram apreciados os depoimentos de S… e T…, funcionárias administrativas da A. que explicaram o processo de aquisição por importação do fio suportado pelos documentos supra identificados de fls. 745 v. e ss./749 e ss. e de fls. 751 e ss./754 e ss., os primeiros ids. pelo n.º da factura …… ou pelo contentor ……… – 4 e os segundos pela factura n.º …… ou pelo contentor …………, posteriormente fornecido pela R. à A. ao custo das facturas de fls. 747 e 752 v./753, respectivamente que, como explicaram estas testemunhas, contempla, além do preço da aquisição, os demais custos associados, a que se referem os documentos de fls. 748 e ss. e 753 e ss., relativos, porém, ao conjunto mais vasto do fio adquirido pela A., só em parte fornecido à R., assim impossibilitando a determinação concreta dos mesmos nesta parte. (…)

Os demais factos não provados ficaram a dever-se à ausência ou insuficiência de prova”.(...).

Fundamenta, assim, o Tribunal a quo, a decisão da matéria de facto em insuficiência da prova.

Ora, resultando, como vimos, do estatuído no nº4, do art. 360º, do Código de Processo Civil, que “quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial”, devia o Tribunal a quo, oficiosamente, lançando mão da inquisitoriedade, materializada em inúmeras disposições legais ao longo da lei adjetiva em matéria da instrução da causa (encontrando-se revelações de tal princípio no art. 411º, 417º, entre muitos outros), realizar diligências instrutórias que lhe permitissem apurar os factos, designadamente pedindo informações às partes ou a terceiros, requisitando elementos a organismos, pareceres técnicos, esclarecimentos às partes, e ordenar prova pericial, que no caso se mostra útil, necessária e, mesmo, imprescindível para apurar valores.

E como cada elemento de prova de livre apreciação não pode ser considerado de modo estanque e individualizado, tendo, depois, de proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada de todos os elementos probatórios, para que forme uma convicção coerente e segura, não pode este Tribunal deixar de anular a decisão recorrida, para que seja complementada a prova, se necessário com reinquirições, reabrindo a audiência para produção de prova adicional.

E depois de produzida a prova que for entendida necessária - sempre podendo, para efeitos de influenciar o julgador, as partes apresentar as suas sugestões - para completar a já produzida, o Tribunal, fazendo aquela análise crítica, conjunta e conjugada, e com base nas regras de experiência comum, estará habilitado a proceda à liquidação do que já decidido se mostra ter de ser concretamente quantificado, em montante determinado.

O que não pode é ser julgado improcedente, sem mais, o que decidido se mostra, já, ter de ser liquidado, quantificado.

Na verdade, não se mostra acertada a decisão que, depois de mencionar “importa conhecer da liquidação … na sequência da sentença que decretando a anulação, por venda de coisa defeituosa, da compra e venda celebrada entre ambas, condenou a R. a devolver à A o valor, a liquidar ulteriormente, do fio que esta efectivamente lhe entregou, calculado por referência ao valor suportado com a sua aquisição (…) conclui “Desconhecendo-se, pois, o valor desse tecido entregue pela A. à R., e não se mostrando, como não se mostrou aquando da sentença, a sua apurada composição, suficiente para o efeito, o pedido da A. tem de improceder (…) e “Quanto aos demais custos associados à aquisição desta concreta quantidade e qualidade de fio, desconhecendo-se igualmente do valor suportado pela A., a parte a ele equivalente, é forçoso concluir igualmente pela improcedência do pedido na parte correspondente”.

Ora, estatui a al. c), do nº2, do art. 662º, que a Relação deve, “mesmo oficiosamente”:

“c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória, a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Ora, no caso, sendo deficiente a decisão sobre os pontos dados como não provados, por falta de rigorosa e completa prova, necessária à decisão da causa segundo as várias soluções possíveis da questão de direito, pois que determinada ulterior liquidação, não poderá improceder, por insuficiência de prova, impugnada se encontrando a matéria de facto.

Assim, deve o tribunal de recurso, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida em 1ª instância quando, não constando dos autos todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta - 662º n.º 2 al. c), sendo a sentença anulada, para suprimento do erro e da omissão de que padece a decisão da matéria de facto.

Deverá, pois, o Tribunal a quo completar a prova, devendo, pedir as informações e os esclarecimentos que entenda necessários e realizar perícia, o que se determina ao abrigo do nº4, do art. 360º, e, mesmo, do princípio do inquisitório, consagrado no art. 411º, por tal ser relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, em face do já definitivamente decidido na sentença.

Conclui-se, assim, pela anulação da decisão proferida, ao abrigo da al. c), do nº2, do artigo 662º, a fim de ser a factualidade em questão apreciada pelo tribunal a quo, reabrindo a audiência e produzindo prova complementar, conforme o supra decidido.

3º Consequência da falta de iniciativa oficiosa

Sempre cumpre, ainda, referir que, a omissão de iniciativa oficiosa de produção de prova suplementar, designadamente pericial, viável, integra uma nulidade sujeita ao regime dos arts. 195º, nº1, 196º, 2ª parte, e 199º, nº1. E, na medida em que pode influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º.

Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do inquisitório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do nº1, do art. 195º, se não constituísse nulidade de que o tribunal pudesse conhecera oficiosamente, a mesma ter-se-ia por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo - arts 197º, nº 1 e 199º, nº 1 [Cfr. Acórdãos. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/1/2005: processo 04B4031, de 11/12/95, processo 96A483, de 03/12/96, processo 97A232, de 06/05/97, processo 97A232 e de 22/01/98, processo 98A448, Acórdão da Relação de Évora, de 1/4/2004: processo 2737/03-2, e Acórdão da Relação do Porto de 10/01/2008, processo nº 0736877, todos in www.dgsi.pt].

A violação do princípio do inquisitório, mediante omissão da iniciativa imposta pelo nº4, do art. 360º, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Dada a relevância e primordial importância do inquisitório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão sem realização da imprescindível prova complementar, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual por a omissão ser suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).

E estando a omissão em causa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso [...]. A prolação de decisão a considerar insuficiente a prova produzida desacompanhada de iniciativa oficiosa de provas complementares, designadamente a prova pericial a que alude o nº4, do art. 360º, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso [...].

Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir de mérito, de produzir a imprescindível prova complementar, designadamente a pericial, devendo, para tanto, ouvir os argumentos das partes.

Assiste, deste modo, razão à apelante, ao concluir pela violação do inquisitório, que levou, até a decisões contraditórias."

*3. [Comentário] a) Salvo o muito devido respeito, o acórdão padece de algumas confusões.

b) Antes do mais, não se percebe a aplicação, em simultâneo, do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC, quanto ao julgamento da matéria de facto, e o estabelecido no art. 195.º, n.º 1, CPC quanto à nulidade processual por omissão de uso do princípio do inquisitório. Ou há um erro de julgamento (error in judicando) ou um erro de procedimento (error in procedendo); o que não pode haver é, ao mesmo tempo, um erro de julgamento (que justifica a aplicação do art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC) e um erro no procedimento, que conduz à aplicação do art. 195.º, n.º 1, CPC.

c) No acórdão afirma-se o seguinte:
 
"E estando a omissão em causa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso."

A afirmação é verdadeira, mas nada tem a ver com o caso concreto. O tribunal não decidiu que não tinha de cumprir a inquisitoriedade imposta pelo art. 360.º, n.º 4, CPC. O tribunal simplesmente não cumpriu o disposto neste preceito -- o que é coisa substancialmente diferente.

d) Por fim, o acórdão ignora o vício da decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC), continuando a recorrer ao regime da nulidade processual inominada (uma solução que poderia ter algum mérito há mais de duas décadas atrás) em vez de utilizar o mecanismo da decisão-surpresa (conhecida do processo civil português desde 1996).

Como se tem repetido neste Blog em casos análogos ao decidido no acórdão, a decisão do tribunal a quo é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC). Só assim se dá verdadeiro significado à decisão-surpresa, que não é a consequência de uma nulidade processual, mas antes uma decisão viciada em si mesmo.

Talvez ajude a sedimentar esta solução lembrar o que se dispõe no art. 101 c.p.c. (com a epígrafe
Principio del contraddittorio): 

Il giudice, salvo che la legge disponga altrimenti, non può statuire sopra alcuna domanda, se la parte contro la quale è proposta non è stata regolarmente citata e non è comparsa.

Se ritiene di porre a fondamento della decisione una questione rilevata d’ufficio, il giudice riserva la decisione, assegnando alle parti, a pena di nullità, un termine, non inferiore a venti e non superiore a quaranta giorni dalla comunicazione, per il deposito in cancelleria di memorie contenenti osservazioni sulla medesima questione.

Com todas as letras: a decisão-surpresa que resulta da omissão da audição prévia das partes é uma decisão nula. O mesmo tem de valer quando, entre muitos outros casos, a decisão omite o uso de poderes inquisitórios impostos pela lei.

MTS