"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/06/2021

Jurisprudência 2020 (223)


Matéria de facto;
poderes do STJ


1. O sumário de STJ 12/11/2020 (3159/05.7TBSTS.P2.S1) é o seguinte:

I - Os poderes do STJ são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (art. 674.º, n.º 3, in fine, e art. 682.º, n.º 2, do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682.º, n.º 1, do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.

II - Contudo, o STJ, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do art. 662.º do CPC, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito.

III - Para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas. A decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.

IV - A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto.

V - A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é sabido, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.

Efectivamente, preceitua o nº 3 do artigo 674º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito[...].

Ou seja, e nas palavras do acórdão do STJ de 06/07/2011[...], “se a este Supremo Tribunal de Justiça lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei”.

Trata-se, por conseguinte, de verificar se o Tribunal da Relação, ao usar os seus poderes, respeitou a lei processual, o que é inequivocamente, e como também destaca o Acórdão do STJ de 06/07/2011, matéria de direito[...].

Ocorre agora questionar se houve erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.

Isso reporta-nos à fundamentação da matéria de facto e à análise crítica da prova.

Se se exige que o Tribunal da Relação forme livremente a sua própria convicção, ainda que a mesma porventura possa coincidir com a (também ela livre) convicção do julgador de 1ª instância, a fundamentação da decisão deve, de modo transparente, mostrar o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu ao formar essa convicção e ao decidir da matéria de facto.

Nas palavras do Acórdão do STJ de 08.06.2011[...], “motivar é justificar a decisão de modo a que possa ser controlada, desde logo, pelo tribunal e, naturalmente, pelos sujeitos processuais e pelas instâncias de recurso”.

Assim, da fundamentação deve resultar, com clareza, o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu para formar a sua própria convicção, não podendo ser suficiente uma remissão ou concordância genérica com a fundamentação da 1ª instância, como destacou, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/09/2013[...], anotado em sentido concordante por Miguel Teixeira de Sousa [Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito Privado nº 44, Outubro/Dezembro de 2013, pp. 29 e ss.], e em que se afirma inequivocamente que “a reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto”.

Sobre esta matéria prescreve o artigo 607º nº 4 do C.P.Civil o seguinte:

“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

As grandes diferenças no novo regime de fundamentação da sentença ou do acórdão sobre matéria de facto consistem no seguinte:

(i) para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas;

(ii) a decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.

Isto significa que o juiz deve esclarecer quais as provas que o levaram a formar a sua convicção, como acontecia no regime anterior, mas deve ainda analisar criticamente as provas produzidas explicando os motivos que o levaram a optar por uma determinada resposta.

Para Antunes Varela [Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 653], “além do mínimo traduzido na menção especificada dos meios de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova”.

Miguel Teixeira de Sousa [Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 348] refere que “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.

Em anotação ao artigo 653º nº 2 (a que corresponde o actual 607º nº 4), Lopes do Rego [Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, pág. 545] escreveu: “… a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador – só assim se realizando verdadeiramente uma “análise critica das provas”. Tal circunstância determinou a alteração do preceituado no nº 5 do artigo 712º do CPC, podendo ter lugar a remessa do processo à 1ª instância para fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto sempre que ela se não mostre “devidamente fundamentada” (e não apenas quando omita a menção dos concretos meios de prova que a suportaram)

Segundo o acórdão nº 55/85 do Tribunal Constitucional[...], a fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz “ad quem”, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – e que visa garantir, em última análise, a “transparência” do processo e da decisão.

Não sendo satisfatoriamente cumprida, quanto a algum facto essencial, a exigência de fundamentação emergente do estatuído no nº 2 do artigo 653º, pode a parte prejudicada requerer que o tribunal de 1ª instância supra a nulidade, procedendo à fundamentação adequada. Face à actual relevância – constitucional e legal – da exigência de fundamentação, temos como duvidosa a solução consistente em considerar que a lei não estabelece qualquer sanção para a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto: o que, a nosso ver, decorre do nº 5 deste artigo 712º é que a nulidade cometida, quando reclamada adequadamente pela parte, deve, na medida do possível, ser sempre suprida pela 1ª instância; mas, se tal suprimento for impossível, não nos parece excluída a possibilidade de a Relação anular o julgamento com base numa omissão essencial e relevante de fundamentação [Lopes do Rego, ob cit, em anotação ao artigo 712º, pág. 610] [...].

A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto [Antunes Varela, ob cit pág. 653 a 655].

“Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento” [Lebre de Freitas,  Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 660].

A análise crítica das provas prevista para o julgamento referido na primeira parte do nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil não difere funcionalmente do exame pressuposto no julgamento regulado na segunda parte deste número: ambos visam concluir se a prova produzida é, em concreto, bastante para a demonstração do facto. O modo como se chega a tal conclusão é, no entanto, profundamente diferente, o que se reflecte na motivação da convicção.

Na motivação da decisão sobre os factos julgados de acordo com a norma constante da primeira parte do nº 4, o juiz explica por que razão, de acordo com a sua livre convicção (primeira parte do nº 5), o meio é idóneo, em abstracto e em concreto, à prova do facto; na motivação do julgamento feito no contexto da segunda norma, o juiz partindo da certeza e afirmando que o meio é, em abstracto, idóneo (v.g. um documento), esclarece por que razão se extrai dele (ou não) o facto a provar (segunda parte do nº 5).

Num caso, o juízo de conformidade entre os factos alegados e a realidade histórica estriba-se na prudente convicção do julgador; noutro, este juízo funda-se, em especial, no valor que a lei atribui a determinados meios de prova [Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil- Os Artigos da Reforma”, 2014, 2ª Edição, Vol I, Almedina, pág588 e 589].

Entrando mais directamente no caso dos autos, lendo o acórdão da Relação sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto (fls. 1336 a 1345), verificamos que a mesma, apreciou livremente as provas, fazendo o seu próprio juízo com total autonomia e, quase de forma exaustiva, analisou criticamente as provas, especificou, de forma racional, coerente e lógica os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção e com respeito pela prova testemunhal e documental produzida.

O acórdão chegou mesmo a alterar a matéria de facto, eliminando, esclarecendo ou aditando factos – Cfr fls 1345.

Para concluir, acrescentaremos apenas que a metodologia das instâncias no que toca à fundamentação e análise crítica da prova, não tem de ser exaustiva, bastando que sejam claros e suficientes os motivos que levaram o julgador a decidir em determinado sentido e não noutro.

Formalmente, a notável extensão, quer da fundamentação, quer da análise crítica das provas, leva-nos à conclusão que tal desiderato adjectivo foi conseguido, quer na 1ª instância, quer na Relação, não se exigindo que a motivação e análise crítica seja do tipo “facto a facto, ponto por ponto”.

Efectivamente, a imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável [Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol 2º, 2ª ed, 2008, págs. 661 a 662].

Concluímos, pois, que a Relação seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, o acórdão da Relação não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadoras das regras da experiência comum."

[MTS]