"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/06/2021

Jurisprudência 2020 (228)


Sigilo profissional;
colaborador de advogado


1. O sumário de RL 24/11/2020 (881/17.9T8FNC-A.L1-1) é o seguinte:

I. Nos termos do art.º 92º, n.º 7 do Estatuto da Ordem dos Advogados e Ponto 2.3.4 do Código de Deontologia dos Advogados Europeus os colaboradores do advogado, ou porque fazem parte do seu escritório ou porque por este foi requisitado o seu auxílio, estão sujeitos ao mesmo sigilo profissional deste.

II. Tal dever não é absoluto, como decorre do disposto pelo art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil, podendo ser dispensado através do incidente processual de quebra do segredo profissional uma vez que nesta matéria estão em causa dois interesses públicos essenciais na administração da Justiça; por um lado o princípio da confiança no advogado e na sua função e por outro o princípio da cooperação de todos para a descoberta da verdade, sendo necessário em cada caso concreto fazer a correcta ponderação das circunstâncias a fim de verificar qual o princípio preponderante em cada situação.

III. Para proceder a tal avaliação, o Tribunal a quo deve previamente averiguar junto das partes quais as concretas questões que se pretende colocar à testemunha; delimitadas estas, e caso não resulte inequívoco que se verifica a legitimidade da escusa (situação em que, se se concluir pela imprescindibilidade do depoimento para o apuramento da verdade material, se terá de lançar mão do pedido de quebra de sigilo, com a inerente tramitação) o Tribunal deve proceder à inquirição da testemunha, pois só assim e perante o que em concreto se venha a relatar, é que será possível ajuizar da legitimidade ou não da escusa.

IV. Verificando-se das declarações da testemunha que estas estarão cobertas pelo sigilo profissional, a parte que a indicou e queira valer-se de tais declarações deve suscitar o incidente de quebra de segredo profissional, nos termos do art.º 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ex vi art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o art.º 417º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”:

“1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados. (…)
3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: (…)
c) Violação do sigilo profissional ou dos funcionários públicos, ou do segredo do Estado, sem prejuízo do nº 4.
4 – Deduzida a escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”

Resulta assim desta norma que a recusa de prestação de informações é legítima quando importar a violação de sigilo profissional.

Tem-se entendido por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque é inerente à própria natureza do serviço prestado e da profissão.

A razão de ser do dever de guardar segredo profissional por parte dos advogados é, por um lado, a confiança e a lealdade entre advogado e cliente e, por outro, a dignidade da advocacia. Assim, ao lado do interesse privado do cliente, existe o interesse público na confiança do advogado e na sua função.

Como pode ler-se a este respeito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018, Proc. n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt:

“O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público.

Nas palavras de António Arnauld [“Iniciação à Advocacia”, página 66], o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense.

A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.

Isso mesmo foi afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2017: “A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”.

Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela [Parecer do Conselho Geral de 02.04.1981, em ROA, ano 41, páginas 900 e seguintes].”

Nos termos do art.º 92º do Estatuo da Ordem dos Advogados (E.O.A., sob a epígrafe “Segredo profissional”):

“1 – O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação, por revelação do cliente (…);
b) a factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; (…)
4 – O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo. (…).
7 – O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no nº 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, (…)”.
 
Esta última disposição, ao contrário do que pretende a Recorrente, está de facto especialmente vocacionada para os colaboradores do próprio advogado, ou porque fazem parte do seu escritório ou porque por este foi requisitado o seu auxílio.

Veja-se a este respeito o que dispõe o Código de Deontologia dos Advogados Europeus (Deliberação 2511/2007 OA publicada no DR II de 27.12.2007) no ponto 2.3, sob a epígrafe Segredo Profissional:

“2.3.1 - É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, pois, reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado. A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado.
2.3.2 - O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional.
2.3.3 - A obrigação de guardar segredo profissional não está limitada no tempo.
2.3.4 - O advogado exigirá aos membros do seu pessoal e a todos aqueles que consigo colaborem na sua atividade profissional, a observância do dever de guardar segredo profissional a que o próprio está sujeito.”

Já se entendeu inclusivamente que este sigilo se estende aos próprios funcionários do organismo profissional que disciplina a atividade de advogado – cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 8/3/2018, Proc. n.º 3764/15.3T8BRG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt.

No entanto, como se verifica do disposto pelo art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil, supra citado, o segredo profissional não é absoluto, podendo ser dispensado através do incidente processual de quebra do segredo profissional, nos termos das disposições citadas, por força do princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade.

Assim, verifica-se que nesta matéria estão em causa dois interesses públicos essenciais na administração da Justiça; por um lado o princípio da confiança no advogado e na sua função e por outro o princípio da cooperação de todos para a descoberta da verdade, sendo necessário em cada caso concreto fazer a correcta ponderação das circunstâncias a fim de verificar qual o princípio preponderante em cada situação.

O levantamento do sigilo profissional obedece a regras, previstas pelo art.º 135º do Código de Processo Penal, aqui aplicável, como vimos, por força do disposto pelo n.º 4 do art.º 417º do Código de Processo Civil:

“1 – Os ministros da religião ou confissão religiosa e os advogados, (…) e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 – Havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante o qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 – Nos casos previstos nos nº 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, (…).”

Feito este enquadramento legal, resulta que, invocado o direito de escusa de depoimento, com fundamento em estar sujeito a sigilo profissional, o Tribunal pode tomar uma das seguintes atitudes (como vem sintetizado no Acórdão da Relação de Guimarães a que se fez referência):

a) ou aceita a legitimidade da recusa e o silêncio da testemunha;
b) ou, tendo dúvidas acerca da legitimidade da recusa, procede a averiguações, caso conclua pela ilegitimidade insiste pelo depoimento, ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa;
c) ou, concluindo pela legitimidade da recusa, requer ao tribunal superior àquele em que o incidente tiver sido suscitado que ordene a quebra do segredo profissional se esta se mostrar justificada, ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa.

Desta forma e revertendo ao caso concreto, referindo a testemunha que é funcionária no escritório do mandatário da Ré, verifica-se a sua sujeição à observância do dever de guardar segredo profissional a que o próprio mandatário está sujeito.

No entanto, como vimos, tal dever não é absoluto, podendo ser dispensado através do incidente processual de quebra do segredo profissional.

Sucede que, para proceder à avaliação que se referiu, o Tribunal a quo deve previamente averiguar junto das partes quais as concretas questões que se pretende colocar à testemunha; delimitadas estas, e caso não resulte inequívoco que se verifica a legitimidade da escusa (situação em que, se se concluir pela imprescindibilidade do depoimento para o apuramento da verdade material, se terá de lançar mão do pedido de quebra de sigilo, com a inerente tramitação) o Tribunal deve proceder à inquirição da testemunha, pois só assim e perante o que em concreto se venha a relatar, é que será possível ajuizar da legitimidade ou não da escusa.

Assim, e no que ao caso concreto respeita, o mandatário da A. deve concretizar e delimitar quais as questões que pretende colocar à testemunha.

Efectuada a avaliação pelo Tribunal, este pode decidir proceder ao interrogatório da testemunha.

Note-se que, do facto de o Tribunal proceder ao interrogatório da testemunha não resulta que tenha concluído pela ilegitimidade da escusa; significa que, delimitadas as questões em concreto pelo mandatário, não sendo evidente que as matérias sobre as quais se pretende inquirir a testemunha estão, à partida, abrangidas pelo sigilo profissional, o Tribunal colhe o seu depoimento.

Caso nesse depoimento se venha a considerar que, afinal a testemunha proferiu declarações sujeitas a sigilo, deve o mandatário da A., caso pretenda socorrer-se das declarações proferidas, diligenciar pela obtenção do levantamento do sigilo, solicitando Parecer à Ordem dos Advogados e suscitando o pedido de dispensa de sigilo junto do Tribunal da Relação, nos termos do art.º 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ex vi art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

Na eventualidade da dispensa de sigilo não venha a ser obtida, não pode o Tribunal socorrer-se dessas declarações (conf. art.º 92º, n.º 5 do EOA: “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”) sob pena de se cometer uma nulidade, nos termos do art.º 195º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Posto isto, cumpre neste momento dizer o seguinte quanto ao presente recurso; observa-se no caso, e relativamente ao recurso interposto pela A., que o Tribunal não considerou liminarmente que se verificava a legitimidade da escusa, embora tenha feito esse juízo perante as questões dos RR. [julga-se ser esta a interpretação a dar ao segmento do despacho em recurso: “Mesmo admitindo-se que as questões a serem colocadas pelo ilustre mandatário da Autora não incidam sobre matéria sujeita a sigilo, o mesmo não sucederá relativamente às questões a serem colocadas pela ilustre mandatária dos Réus (…)”].

E, atente-se, na realidade o Tribunal não indeferiu ou recusou o depoimento; o Tribunal limitou-se a entender que não existia motivo para cindir o depoimento da testemunha, comum a A. e RR., interrompendo a audiência para que os RR. obtivessem um parecer junto da OA, o que se afigura caber dentro dos poderes que o art.º 602º do Código de Processo Civil confere ao Juiz, sendo tal decisão irrecorrível.

Deste modo, não proferiu o Tribunal, no que à A. respeita, qualquer decisão que lhe tenha sido desfavorável.

O que se impõe é que, decorridos os trâmites que neste momento estão a decorrer, a cargo dos RR. (ou antes, se o Tribunal a quo assim o entender, por reponderar a decisão de não cindir o depoimento da testemunha, ou outro fundamento), se designe nova data para a inquirição da testemunha indicada pela A., com observância então da tramitação quanto ao depoimento desta que acima se expôs (iniciando-se pela concretização pela A. da concretas questões que pretende colocar à testemunha, que se afigura serem as que no ponto 4º das suas Conclusões de Recurso indicou)."


[MTS]