"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/06/2021

Jurisprudência 2021 (2)


Direito de acção;
justificação judicial*


I. O sumário de RL 5/1/2021 (10486/18.1T8LRS.L1-7) é o seguinte:

1. O DL nº 273/2001, de 13.10, foi o primeiro diploma a instituir a transferência dos tribunais para as conservatórias das competências relativas aos processos de carácter eminentemente registral.

2. Essa transferência de competências não afasta a possibilidade de nos tribunais judiciais correr a referida ação de justificação judicial, quer quando o requerente preveja que o requerido se vai opor à sua pretensão, quer quando o pedido, ponderada a causa de pedir, extravasa a mera ação registral.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O tribunal recorrido indeferiu liminarmente a presente ação por entender que a mesma configurava a ação especial de justificação de reatamento de trato sucessivo prevista no art. 116º do CRPredial que se inicia na respetiva Conservatória do Registo Predial, sendo, pois, o juízo central cível absolutamente incompetente para dela conhecer.

Sustentam os apelantes que, não obstante na sua formulação a ação em causa seja da competência da CRP, tal competência não é exclusiva desta, não estando vedada a intervenção do tribunal, nomeadamente, tendo em atenção os pedidos formulados, como acontece no presente caso, em que o peticionado extravasa a competência da CRP.

Apreciemos.

Dispõe o art. 116º do CRP (aprovado pelo DL. nº 224/84, de 6.07, na redação introduzida pelo DL. 273/2001, de 13.10), que “1 - O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 2 - Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do nº 2 do artigo 34º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 3 - Na hipótese prevista no número anterior, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado”.

Foi com a Lei nº 2049, de 6 de Agosto de 1951, que se iniciou uma viragem quanto à procura de um meio adequado de fazer corresponder a situação real da titularidade dos direitos de propriedade sobre os imóveis com a respetiva situação registral através do mecanismo da obrigatoriedade do registo predial [...].

A Lei nº 2049 criou novos expedientes extrajudiciais de suprimento da falta de determinados documentos exigidos para os casos de registo obrigatório (posteriormente tornados extensivos ao próprio registo facultativo pelo DL nº 40.603, de 18.5.1956), sob a forma de escritura de justificação notarial.

O CRP de 1959 veio prever a possibilidade de justificar direitos sobre imóveis mediante o recurso a dois meios alternativos: extrajudicial, mediante a celebração de escritura pública, e judicial, mediante ação especial de justificação judicial, nele especialmente regulada (arts. 199º e ss.), sistema que se manteve, no essencial no CRP de 1967 (aprovado pelo DL nº 47.611, de 28.3.1967), no qual a justificação judicial ficou regulada nos (arts. 205º e ss.).
Não obstante se tratar de um processo especial, a justificação judicial nunca foi regulada no CPC.

No CRP aprovado pelo DL nº 224/84, de 6-07, o legislador optou por deixá-lo de fora, considerando que ele deveria ser inserido no local próprio do CPC, mas, como não terá, então, sido considerado oportuno alterar este diploma, foi publicado um diploma autónomo, o DL nº 284/84, de 22.08, de carácter considerado de transitório, sem grandes alterações no regime que até então era consagrado.

O DL nº 312/90, de 2.10, regulou o processo especial de suprimento, criando, pela primeira vez, um procedimento especial a correr pelas conservatórias do registo predial com vista ao suprimento da falta de títulos necessários ao registo, a que os interessados poderiam recorrer em alternativa ao processo judicial e à escritura de justificação notarial [...].

O atual processo de justificação a correr pelos serviços de registo predial foi instituído pelo DL nº 273/2001, de 13.10.

E foi este, de facto, o primeiro diploma a instituir a transferência dos tribunais para as conservatórias das competências relativas aos processos de carácter eminentemente registral.

Consta do respetivo preâmbulo que “O presente diploma opera a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio. Trata-se de uma iniciativa que se enquadra num plano de desburocratização e simplificação processual, de aproveitamento de atos e de proximidade da decisão, na medida em que a maioria dos processos em causa eram já instruídos pelas entidades que ora adquirem competência para os decidir, garantindo-se, em todos os casos, a possibilidade de recurso. … No âmbito do registo predial, comercial e, por remissão, automóvel, o processo de justificação, anteriormente efetuado notarial ou judicialmente ou pelo conservador, passa a ser, em regra, decidido pelo próprio conservador, mantendo-se paralelamente o processo de justificação notarial previsto na lei do emparcelamento e o processo de justificação administrativa para inscrição de direitos sobre imóveis a favor do Estado.”.

A questão que se coloca é a de saber se essa transferência de competências afasta, de todo, a possibilidade de nos tribunais judiciais correr a referida ação de justificação judicial.

Afigura-se-nos que não.

Vicente J. Monteiro, em Desjudicialização da Justificação de Direitos sobre Imóveis, disponível no sítio do “CENoR”, www.fd.uc.pt/cenor, págs. 14/15, escreve que “…, as dúvidas começaram a surgir após a publicação do referido Decreto-Lei nº 273/2001, porquanto, além de outras normas legais, incluindo o citado Decreto-Lei nº 312/90, foi revogado o Decreto-Lei nº 284/84, de 22 de agosto, que era, como vimos o diploma que regulava o processo especial de justificação judicial. … Contudo, é de questionar se, no caso de o interessado que pretende justificar o seu direito contra determinado titular inscrito, que já sabe que se vai opor à sua pretensão, eventualmente por questões de animosidade pessoal, pode ou não instaurar ação declarativa, nomeadamente de reivindicação, invocando a usucapião. É que, se ele começar por instaurar um processo de justificação no registo predial, já se sabe que é necessário proceder à notificação do titular inscrito, e se este se opuser o conservador deve declarar o processo por findo, nos termos do nº 2 do art. 117º-H, restando-lhe o recurso aos meios judiciais. Por isso, entendo que a invocada incompetência dos tribunais deve ser avaliada com a devida parcimónia, devendo evitar-se atos e procedimentos inúteis no registo, quando já se sabe que vai haver algum tipo de oposição, devendo, nesse caso, instaurar-se desde logo a competente ação declarativa, revelando o interessado na petição os factos em que assenta o seu direito e pedindo que o réu seja notificado para contestar”.

Ou seja, prevendo o requerente que o(s) requerido(s) se vai opor à sua pretensão, nada obstará a que lance logo mão da respetiva ação judicial.

Não será a situação em causa, uma vez que os apelantes alegam na PI que estão na posse dos imóveis desde 12.7.2002 de forma pública e pacifica, portanto, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos requeridos.

Também no Ac. da RC. de 7.9.2010 (Virgílio Mateus), em www.dgsi.pt, se sumariou que: “1. - Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs.) para efeitos de registo. 2. É da competência material dos Tribunais, e não da Conservatória do Registo Predial, uma ação em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, e cumulativamente o pedido de reconhecimento de que o prédio comprado é diverso daquele em relação ao qual obtiveram a inscrição de aquisição”.

Os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme dispõe o art. 211º, nº 1 da Constituição.

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e, também, o pedido formulado, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do art. 5º, nº 3 do CPC [Neste sentido cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 14.05.2009, P. 09S0232 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt].

Referia o Prof. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 que “a competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” [...].

Ora, ponderando o que supra se deixou escrito, os pedidos formulados pelos Requerentes, nomeadamente, o expresso em último lugar [...], tendo em conta a factualidade alegada, afigura-se-nos estarmos perante uma situação em que àqueles será lícito recorrer aos tribunais judiciais para definir o seu alegado direito, com força de caso julgado.

Em conclusão, procede a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, declarando-se competente o juízo central cível para conhecer a presente ação, que deverá prosseguir os seus termos".


*3. [Comentário] A situação analisada no acórdão respeita ao direito de acção dos demandantes. No direito português, pode ser vista pela perspectiva do disposto no art. 535.º, n.º 1, CPC: se o réu não contestar, a custas ficam a cargo do autor vencedor. Noutros ambientes legislativos, a questão seria apreciada pela óptica do interesse processual.

Menos feliz é misturar a questão com a da competência do tribunal.

MTS