Penhora posterior; sustação da execução;
penhora insuficiente
1. O sumário de RP 17/12/2020 (2498/03.6TTPRT-D.P1) é o seguinte:
I. – Um dos fundamentos de oposição à penhora é o bem penhorado ser de valor excessivo em relação ao crédito do exequente ou conduzir a um duplo pagamento.
II. – O n.º 1 do artigo 794.º do CPC não obriga a uma sustação integral da execução, mas apenas em relação aos bens cuja penhora anterior tenha ocorrido noutro processo, com a finalidade de evitar diligências de venda (ou outras) sobre os mesmos bens.
III. - Daqui decorre que o seu n.º 3 não deva ser interpretado no sentido de que apenas possam ser penhorados novos bens, se o exequente desistir da penhora sobre o bem que motivou a sustação da execução.
IV. - Essa desistência apenas se justifica no caso de a nova penhora satisfizer, integralmente, o pagamento do crédito em execução. Caso contrário, beneficiaria, injustificadamente, o devedor, pois, conduziria à diminuição ou eliminação da garantia processual do exequente, ao arrepio do princípio da efectividade, constitucionalmente consagrado.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O artigo 794.º - Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens – do CPC, prescreve:
“1 - Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.3 - Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição.4 - A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º.”.
O n.º 5 do artigo 850.º prevê a renovação da execução extinta - “O exequente pode ainda requerer a renovação da execução extinta nos termos das alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo anterior, quando indique os concretos bens a penhorar, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior -”. A alínea e) do n.º 1 do artigo 849.º reporta ao caso referido no n.º 4 do artigo 794.º.
A redacção do citado artigo 794.º é similar à do artigo 871.º do anterior CPC, cuja epígrafe é: “Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens”.
Em anotação ao artigo 871.º do anterior CPC, pode ler-se em José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, pág. 287: este preceito “não se inspira em razões de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos; susta-se o processo em que a penhora se efectuou em segundo lugar, ainda que a execução respectiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora. O que a lei não quer é que em processo diferente se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem que ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.”. (negrito nosso).
Assim, no dizer de Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 16.ª Edição Actualizada, pág. 1254, “Logo que tenha conhecimento de os bens já terem sido penhorados noutro processo, deve o juiz, oficiosamente ou a requerimento de exequente ou executado, proferir despacho a mandar sustar a execução em relação aos bens duplamente penhorados, a qual prossegue, no entanto, relativamente aos outros bens.” [...]
Decorre da citada doutrina que a presente acção executiva, apesar de sustada quanto ao bem imóvel penhorado, em primeiro lugar, no processo n.º 1527/03.8TTVNG, pode prosseguir quanto a outros bens que já estivessem penhorados nos autos, ou quanto a bens que, entretanto, foram penhorados com a autorização do tribunal, neste caso, o depósito bancário no valor de €12.405,05 – cf. pontos 3) e 15) dos factos provados.
Dito de outro modo: o n.º 1 do citado artigo 794.º não obriga a uma sustação integral da execução, mas apenas em relação aos bens cuja penhora anterior tenha ocorrido noutro processo – como o caso do imóvel identificado no ponto 1) dos factos provados -, com a finalidade de evitar diligências de venda (ou outras) sobre os mesmos bens.
Daqui decorre que o n.º 3 do artigo 794.º não deva ser interpretado no sentido de que apenas possam ser penhorados novos bens, se o exequente desistir da penhora sobre o bem que motivou a sustação da execução.
O que, verdadeiramente, o regime executivo impede ao exequente é o uso de um mecanismo processual que conduza a uma penhora excessiva em relação ao valor da dívida ou a um duplo pagamento e não o prosseguimento da execução sustada, com a penhora de outros bens do devedor, que garantam o total pagamento do seu crédito.
De outro modo, não faria sentido o disposto no n.º 4 do artigo 794.º, ao estatuir que a sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º, ou seja, de o exequente poder vir a requerer a renovação da execução extinta, indicando novos bens à penhora. Quem pode o mais - renovar a execução extinta -, pode o menos – não desistir de bem penhorado -.
No caso dos autos, sustada a execução quanto ao bem imóvel penhorado no processo n.º 1527/03.8TTVNG, nada impede que a mesma prossiga quanto ao depósito bancário no valor de €12.405,05, tanto mais que este montante é insuficiente para garantir o pagamento da dívida exequenda, no montante de € 16.508,48, mais as custas processuais, e eventuais juros de mora de 17 anos!
Assim, dar provimento à pretensão do executado e ordenar o levantamento da penhora do depósito bancário, seria diminuir ou eliminar de vez (o dinheiro é um bem facilmente dissipável) a garantia do pagamento (parcial, diga-se) mais sólida e eficaz que o exequente tem nesta fase processual da execução, dado que a dívida inicial se mantém há 17 anos! [muito perto da prescrição dos vinte anos – cf. artigo 20.º do Código Civil] e sem solução, à vista, quanto à venda do imóvel penhorado.
Diferente seria se o novo bem penhorado fosse de valor excessivo em relação ao crédito do exequente ou conduzisse a um duplo pagamento.
Sendo de valor inferior, a interpretação do n.º 3 do artigo 794.º, no sentido pretendido pelo executado, violaria, além do mais, o disposto no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
No dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 2007, em anotação ao artigo 20.º, pág. 416, “Na epígrafe e no n.º 5 a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (nº 5). Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção. A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais é organização e processo de protecção e garantia. Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Cód. Proc. Civil, art. 2.º-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (cfr. as formas de processo hoje consagradas no Cód. Proc. Trib. Admin., arts. 35º e ss.).”.
Dito em linguagem simplificada: salvo o disposto no artigo 784.º, n.º 1 do CPC, que protege o devedor de qualquer acto processual do credor que conduza à penhora de valor excessivo ou a um duplo pagamento, todas as demais normas da acção executiva devem ser interpretadas no sentido que conduzam ao pagamento efectivo do crédito do exequente, em prazo razoável, e não no sentido de proteger o devedor relapso.
Assim, a desistência prevista no n.º 3 do artigo 794.º apenas se justifica no caso de a nova penhora satisfizer, integralmente, o pagamento do crédito em execução. Caso contrário, beneficiará, injustificadamente, o devedor.
Neste sentido, a manutenção da penhora sobre o bem imóvel é, aparentemente, a única garantia que o exequente continua a ter para o pagamento integral do seu crédito, isto é, para o pagamento efectivo da diferença entre o valor do depósito bancário penhorado e a totalidade da dívida.
Diferente interpretação do n.º 3 do artigo 794.º conduziria à diminuição ou eliminação dessa garantia processual do exequente, ao arrepio do princípio da efectividade, constitucionalmente consagrado."
`*3. [Comentário] Se bem se interpreta o sentido do acórdão, entende-se nele que, independentemente de o exequente desistir da penhora dos bens que já se encontravam penhorados numa outra execução, esse exequente pode, na execução parcialmente sustada, nomear novos bens à penhora.
`*3. [Comentário] Se bem se interpreta o sentido do acórdão, entende-se nele que, independentemente de o exequente desistir da penhora dos bens que já se encontravam penhorados numa outra execução, esse exequente pode, na execução parcialmente sustada, nomear novos bens à penhora.
Trata-se de uma solução dificilmente compatível com o disposto no art. 751.º, n.º 5, al. e), CPC, que, explicitamente, só admite a nomeação de novos bens se o executado desistir da penhora dos bens que justificam, nessa parte, a sustação da execução. Quer dizer: se dúvidas havia sobre a interpretação do disposto no art. 794.º, n.º 3, CPC, essas mesmas dúvidas são desfeitas pelo estabelecido no art. 751.º, n.º 5, al. e), CPC.
O que talvez se possa dizer é que, independentemente de toda a problemática relacionada com a segunda penhora e com a sustação da execução, é sempre possível reforçar a penhora nas condições referidas no art. 751.º, n.º 1, al. b), CPC (manifesta insuficiência dos bens penhorados).
[MTS]