"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/06/2021

Jurisprudência 2020 (238)


Transacção;
interpretação


1. O sumário de RP 17/12/2020 (19355/19.7T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A transacção está sujeita à disciplina dos contratos (arts. 405.º e segs) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º e segs)”. A sua finalidade é “prevenir ou terminar um litígio”, admitindo a lei que a transacção possa ter lugar, não só estando a causa pendente, mas também antes da propositura da acção judicial, mas não dispensando “uma controvérsia entre as partes (cfr. n.º 2), como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro”.

II - Tendo por objecto “recíprocas concessões”, na transacção não há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito, nem o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes. As concessões recíprocas podem revelar-se sob dois aspectos: podem as partes transigir ou reduzir o direito controvertido, ou, podem, constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido.

III - Para resolver as dúvidas que a interpretação das declarações de vontade expressas na transacção suscita, terá que atender-se aos critérios legais de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidos no artigo 236.º, n.º1, do C.C., preceito que acolhe a denominada doutrina objectivista da “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário.

IV - Na interpretação da declaração em causa a doutrina da impressão do destinatário reclama que se atendam a todas as circunstâncias relacionadas com os termos do negócio celebrado, ou seja, é necessário atender, na sua globalidade, ao contexto factual em que a mesma foi emitida.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 1248.º, do CC, o seguinte:

1. Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido

Servindo-nos do ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1986, p. 856] em anotação àquele artigo, elucidam os autores que “[C]onsiderada como contrato, a transacção está sujeita à disciplina dos contratos (arts. 405.º e segs) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º e segs)”. A sua finalidade é “prevenir ou terminar um litígio”, admitindo a lei que a transacção possa ter lugar, não só estando a causa pendente, mas também antes da propositura da acção judicial, mas não dispensando “uma controvérsia entre as partes (cfr. n.º 2), como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro”. Tendo por objecto “recíprocas concessões”, na transacção não há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito, nem o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes: “a ideia básica dos contraentes é a de concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida (..)”. As concessões recíprocas podem revelar-se sob dois aspectos: podem as partes transigir ou reduzir o direito controvertido, ou, podem, constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido.

Sendo efetuada em acta, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 291.º, CPC, cabe ao juiz verificar se a transação é válida pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, nesse caso limitando-se homologá-la por sentença, ditada para a acta, condenando nos respetivos termos. A função dessa sentença não é a de apreciar ou decidir as razões e argumentos das partes sobre a respetiva controvérsia substancial, mas apenas a de verificar/fiscalizar a regularidade e a validade do acordo, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nele intervieram.

Daí que, como de resto resulta do n.º 1 do artigo 1248º do CC, se possa dizer que a fonte real da resolução do litígio não é nestes casos propriamente a sentença homologatória, mas o acto de vontade das partes, convergindo no sentido de celebrarem um contrato de transação, mediante recíprocas concessões.

Estando em causa uma transacção judicial homologada por decisão transitada em julgado, na sua interpretação, ou seja, na determinação do conteúdo das declarações de vontade das partes, importará atender ao disposto no art.º 238.º do C.C., dispondo o seguinte:

Artigo 238.º (Negócios formais)
1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

Por outro lado, concomitantemente, com vista a resolver as dúvidas que a interpretação das declarações de vontade expressas na transacção suscita, terá que atender-se aos critérios legais de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidos no artigo 236.º, n.º1, do C.C. nos termos do qual “[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”, preceito que acolhe a denominada doutrina objectivista da “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria, temperada pelo disposto no n.º 2, nos termos do qual, “[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida” [Cfr. Acórdão do STJ de 25-02-2009, n.º convencional 08P2057, Conselheiro Sousa Peixoto, disponível em www.dgsi.pt].
Importa ter presente que a transacção em causa foi celebrada no âmbito de um outro processo, nomeadamente, com o nº 7392/19.6T8VNG, que correu termos no mesmo Tribunal, no qual a Autora, aqui recorrente, demandou a Ré, em 27-09-2019, em ação declarativa comum emergente do contrato de trabalho, pedindo a condenação daquela no pagamento da quantia de €2.851,44 a título de créditos salariais: compensação pela caducidade do contrato, retribuição de férias, subsídio de férias e de Natal e retribuição pela formação profissional não ministrada.

As partes transigiram na audiência de partes desse processo, realizada em 14-11-2019, não sendo despiciendo assinalar que da respectiva acta - junta pela Ré a este processo e não impugnada - , resulta que a autora estava representada por mandatário forense constituído.

O conteúdo global da transacção é o que consta transcrito nos factos provados, estando em causa a interpretação da cláusula 3.ª, na qual as partes fizeram consignar o seguinte:

- “Com o pagamento integral da quantia mencionada em 1º), as partes declaram nada mais a haver ou reclamar uma da outra, por força do contrato de trabalho que constitui objeto dos presentes autos”.

Está em causa apreciar se o tribunal a quo decidiu correctamente ao interpretar esta cláusula no sentido de que “tem inequivocamente o significado de que nenhuma das partes, nomeadamente, a trabalhadora reclamará da outra qualquer outra quantia, além dos 650,00 acordados, por qualquer litígio emergente do contrato de trabalho, seja por créditos salariais, seja por qualquer dano, inclusive, não patrimonial emergente da relação laboral”.

Em conformidade com o que se deixou expendido, na interpretação da declaração em causa a doutrina da impressão do destinatário reclama que se atendam a todas as circunstâncias relacionadas com os termos do negócio celebrado, ou seja, é necessário atender, na sua globalidade, ao contexto factual em que a mesma foi emitida.

Nas elucidativas palavras de Mota Pinto [Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição, páginas 447/448], na interpretação da declaração negocial “releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer”.

Assinala o tribunal a quo, com pertinência, que “nada nos autos revela que a vontade das partes, nomeadamente da Autora, não foi livre e esclarecida”. De resto, nem tão pouco “é invocado qualquer vício da vontade, nomeadamente, o erro”.

Mencionámos, por também relevar para este ponto, que a autora estava patrocinada por mandatário judicial no acto em que transigiu, o que vale por dizer que estaria devidamente elucidada dos seus direitos e do sentido e alcance da declaração que emitiu ao aceitar transigir naqueles termos.

Para além dessa circunstância, como também bem refere o tribunal a quo, cabe também ter presente que a autora sabia bem que entretanto já tinha proposto a presente acção – em 01-10-2019 -, mas em contraponto a Ré ignorava-o, visto que só foi citada em 31-12-2019.

Argumenta a recorrente que “O objeto do presente litígio diverge completamente daquele que serviu por base à transação celebrada, não podendo qualquer cláusula da mesma justificar uma absolvição do pedido na presente ação”.

Mas o Tribunal a quo também não descurou isso, consignando na fundamentação o seguinte:

- «É certo que na ação em causa apenas foram reclamados créditos salariais - compensação pela caducidade do contrato, retribuição de férias, subsídio de férias e de natal e retribuição pela formação profissional não ministrada. (…). E evidentemente, esta ação embora tenha uma causa de pedir diversa da anterior, funda-se também ela na relação laboral/contrato de trabalho estabelecida entre as partes.».

Com efeito, os pedidos formulados nas duas acções são diferentes, mas no que concerne às causas de pedir a diferença é apenas parcial, pois em qualquer dos casos as acções partilham um facto fundamental, também ele integrante das respectivas causas de pedir, em concreto, a relação contratual de trabalho subordinada que vigorou entre as partes.

Ao convergir com a Ré, de modo a ficar expresso na cláusula 3.ª que “as partes declaram nada mais a haver ou reclamar uma da outra, por força do contrato de trabalho que constitui objeto dos presentes autos”, a autora bem sabia que tinha proposto a presente acção contra a Ré e não podia ignorar o sentido da declaração que estava a emitir. Na normalidade das coisas e para uma pessoa de normal diligência, ademais com o apoio técnico de profissional do foro, o sentido literal da declaração é inequívoco.

E, para além disso, note-se, essa interpretação é legítima e perfeitamente compreensível, pois como ficou acima dito pelas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, sendo a transacção um contrato, podem as partes livremente “constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido”.

Justamente por isso, a A. não podia também ignorar, nem descurar, que a Ré estava a aceitar a celebração da transacção consigo, no pressuposto de que nada mais lhe seria reclamado por ela, fosse a que título fosse, com fundamento na relação de trabalho já cessada. No circunstancialismo descrito, qualquer declaratário normal, colocado na posição concreta da Ré, perante a declaração assumida pela autora na transacção, não deixaria de fazer aquela interpretação, isto é, assumindo que aquela estava expressa e inequivocamente a renunciar à reclamação de quaisquer eventuais direitos fundados no contrato de trabalho que porventura ainda entendesse subsistirem.

Dai que, com acerto, refere-se na fundamentação da decisão recorrida, o seguinte:

- «Um declaratório normal, colocado na posição da ré, interpretaria a referida cláusula contratual no sentido ora exposto, pois não só não foi ressalvado qualquer dano emergente (de qualquer natureza) da relação laboral sofrido pela Autora, nem salvaguardada a manutenção da ação em curso e que já havia sido instaurada, como não está demonstrado que a ré soubesse da existência da mesma, nomeadamente porque não havia ainda sido citado para aquela.

Assim, caso a Autora pretende-se no momento da transação ocorrida salvaguardar a ação pendente, deveria ter ressalvado tal situação na cláusula redigida. Desse modo, caso assim o entendesse e para ter a certeza que não poria fim ao litígio, que ainda não era do conhecimento da Ré, deveria ter expressamente exigido para a realização do acordo uma cláusula que salvaguardasse tal situação como seja “Com o pagamento integral da quantia mencionada em 1º), as partes declaram nada mais a haver ou reclamar uma da outra, por força do contrato de trabalho que constitui objeto dos presentes autos, sem prejuízo da resolução a alcançar na ação que corre termos sob o nº 19355/19.7T8PRT”.

Na verdade, não podendo a Autora deixar de estar ciente sobre o sentido que a ré atribuiria à sua declaração, na normalidade das coisas e para uma pessoa de normal diligência, caso quisesse salvaguardar o prosseguimento da presente acção, isto é, excluindo-a do âmbito daquela transacção, então deveria ter cuidado de ressalvar essa vontade, quer através de uma cláusula com redacção diversa, quer acrescentando uma outra cláusula, p. ex., como a sugerida pelo tribunal a quo.


[MTS]