"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/06/2021

Jurisprudência 2020 (232)


Procedimento cautelar; inversão do contencioso;
acção de impugnação; objecto


1. O sumário de RG 17/12/2020 (169/17.5T8BRG.G2) é o seguinte:

I – Na providência cautelar, havendo inversão do contencioso e consequente dispensa de o requerente intentar a ação principal, recai sobre o requerido o ónus de intentar a ação destinada a impugnar a existência do direito acautelado (art. 371º, nº 1, do CPC).

II - Esta ação não se destina a discutir ou reanalisar os fundamentos que levaram ao decretamento da providência, destina-se unicamente a impugnar a existência do direito acautelado na providência, o que são realidades distintas.

III - A impugnação dos fundamentos que levaram ao decretamento da providência tem que ser feita mediante recurso da decisão, nos termos gerais, quando tiver havido contraditório, ou nos termos previstos no art. 372º, do CPC, nos casos de contraditório deferido, ou seja, quando o requerido não foi ouvido antes do decretamento da providência.

IV - O acordo pelo qual os proprietários de um prédio cedem ao proprietário do prédio confinante uma pequena parcela de terreno com a contrapartida deste último pagar um valor pecuniário, reconstruir o muro de separação dos prédios e alargar o caminho de acesso ao prédio dos primeiros, recuando os limites do seu prédio em 50 centímetros, constitui um contrato de compra e venda atípica, permitido ao abrigo do princípio da liberdade contratual estabelecido no art. 405º, nº 1, do CC.

V - A tal acordo é aplicável o regime da compra e venda previsto nos arts. 874º e ss do CC: na parte típica, de forma direta, na parte atípica, por força da remissão do art. 939º, do CC.

VI - Tendo esse acordo sido celebrado por mero documento particular, em desrespeito pela forma legal imposta pelo art. 875º, do CC, o mesmo é nulo nos termos do art. 220º, do CC.

VII - Os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos por via do abuso de direito, mas sempre em casos excecionais ou de limite, a ponderar casuisticamente.

VIII - Age em abuso de direito o proprietário subscritor do acordo que adquiriu a parcela de terreno cedida, pagou o preço respetivo, efetuou construção sobre a parcela adquirida e reconstruiu o muro, em conformidade com o acordo celebrado, apenas pretendendo obter a destruição dos efeitos desse mesmo acordo, por via da invocação da nulidade, na parte em que lhe competia alargar o caminho, cedendo 50 centímetros do seu prédio, justificando-se, por isso, nesta concreta situação, que os efeitos da nulidade não sejam declarados.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"III - Possibilidade de discussão nesta ação da verificação dos pressupostos que justificaram o decretamento da providência, designadamente a existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, da legitimidade processual ativa dos réus para intentarem a providência cautelar e da inexistência de mora.

Para solucionar esta questão importa esclarecer a relação entre os procedimentos cautelares e a ação definitiva.

As providências cautelares são um meio que a lei coloca à disposição do titular de um direito que se encontra ameaçado de ser alvo de lesão grave e dificilmente reparável de obter a tutela provisória, de natureza antecipatória ou conservatória, que se mostre concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, por forma a evitar que a composição definitiva do litígio se mostre inútil, por tardia, prevenindo, assim, o chamado periculum in mora.

Em sede de providência cautelar basta ao requerente fazer prova sumária do direito ameaçado (365º, nº 1, do CPC), do apelidado fumus boni iuris, sendo que para a providência ser decretada basta a mera probabilidade séria da existência do direito e do receio fundado da sua lesão (art. 368º, nº 1, do CPC).

Portanto, os procedimentos cautelares são procedimentos de cognição sumária, limitada e restrita e, como decorrência destas características, a sua natureza é meramente provisória.

Daí que, salvo o caso de inversão do contencioso, que adiante se analisará, o procedimento cautelar tem natureza instrumental, pois depende sempre de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado (art. 364º, do CPC), a qual, na hipótese de a providência ter sido instaurada como preliminar da ação, terá de ser proposta pelo requerente no prazo de 30 dias após a notificação do trânsito em julgado da decisão que haja ordenado a providência, sob pena de caducidade da providência decretada (art. 373º, nº 1, al. a), do CPC).

Será nessa ação que se verificará de forma plena, irrestrita e definitiva se aquele direito que, em sede de providência apenas foi objeto de uma summaria cognitio, afinal existe ou não. Com efeito, os procedimentos têm uma função meramente preventiva sendo na ação principal que se irá obter a tutela definitiva e têm natureza temporária pois destinam-se a durar apenas até que seja proferida decisão naquela ação.

O ónus de instaurar a ação principal cabe assim ao requerente da providência, àquele que invocou o direito e o receio da sua lesão.

Porém, permite o art. 369º, nº 1, do CPC, que, mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência possa dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

Portanto, para que ocorra a inversão do contencioso é necessário, por um lado, que o juiz forme a convicção segura da existência do direito que a providência se destina a acautelar e, por outro lado, que a providência decretada se possa substituir à tutela definitiva que o requerente da providência poderia solicitar na ação principal.

Só a verificação cumulativa destes dois requisitos permite que o contencioso seja invertido.

Havendo inversão do contencioso e consequente dispensa de o requerente intentar a ação principal, recai sobre o requerido o ónus de intentar a ação destinada a impugnar a existência do direito acautelado, o que deve ocorrer nos 30 dias subsequentes à notificação que lhe foi feita de que a decisão que decretou a providência transitou em julgado (art. 371º, nº 1, do CPC).

Se a ação não for proposta, ou se ocorrer alguma das situações referidas no nº 2 do art. 371º, do CPC, a providência decretada consolida-se como composição definitiva do litígio.

Esta ação não se destina a discutir ou reanalisar os fundamentos que levaram ao decretamento da providência, destina-se unicamente a impugnar a existência do direito acautelado na providência, o que são realidades distintas.

A impugnação dos fundamentos que levaram ao decretamento da providência tem que ser feita mediante recurso da decisão, nos termos gerais, quando tiver havido contraditório, ou nos termos previstos no art. 372º, do CPC, nos casos de contraditório deferido, ou seja, quando o requerido não foi ouvido antes do decretamento da providência.

Na ação a que alude o art. 371º, nº 1, do CPC, o requerido só pode impugnar a existência do direito.

No caso em apreço, os aqui autores e requeridos na providência foram citados para se oporem à providência requerida, tendo, por isso, havido contraditório.

Consequentemente, uma vez notificados da decisão proferida, se pretendiam impugnar os fundamentos da providência, deveriam ter recorrido dessa decisão.

Não o tendo feito, ficou precludido o direito de o fazerem posteriormente.

Não podem, por isso, nesta ação discutir os fundamentos que determinaram o decretamento da providência, designadamente a existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, só podendo impugnar a existência do direito acautelado.

Portanto, todas as questões que os autores levantam na ação e que se prendem com os fundamentos da providência são irrelevantes nesta ação e não podem voltar a ser apreciados.

Logo, é verdade, como afirmado pelos recorrentes, que “era assim permitido ao Autores intentarem a presente ação para impugnação da inversão do contencioso, assim como da existência do direito acautelado pela providência”. Porém, distintamente do que os mesmos concluem, essa impugnação não passa pela prova da inexistência dos fundamentos que determinaram o seu decretamento, mas apenas pela impugnação do direito acautelado, pela demonstração de que esse direito não existe.

Por conseguinte, a sentença recorrida, ao entender que os autores não se poderiam pronunciar, na petição inicial, acerca do preenchimento ou não dos requisitos que determinaram o decretamento da providência, decidiu corretamente, pelo que o recurso improcede nesta parte.

*
A questão de os requerentes da providência não serem dotados de legitimidade processual ativa para a instaurar também é matéria que está ultrapassada pois só poderia ter sido apreciada e decidida na providência, não o podendo ser nestes autos.

Neste processo apenas se poderá discutir a legitimidade do ponto de vista material ou substancial, ou seja, saber se os réus são ou não titulares do direito, mas já não a legitimidade enquanto pressuposto processual para intentarem a providência.

O mesmo se diga quanto à questão de não haver mora, por a obrigação não ter prazo e os autores não terem sido interpelados ao cumprimento, que é enquadrada pelos recorrentes como falta de fundamento para a providência ser decretada.

Essa, como todas as demais matérias relativas à falta de fundamentos para a providência ser decretada, não podem ser reapreciadas nesta ação."

[MTS]