"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/03/2022

Jurisprudência 2021 (145)


Processo de divórcio;
competência internacional; lei aplicável*


I. O sumário de RG 15/6/2021 (4708/19.9T8BRG.G1) é o seguinte:

1 - A competência do Tribunal, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pelo autor.

2 - A competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

3. De acordo com o disposto no artigo 62º do Código de Processo Civil o Tribunal português é internacionalmente incompetente para decidir da acção de divórcio relativo a dois cidadãos portugueses com residência habitual e permanente nos Estados Unidos da América e em que os factos integradores da causa de pedir ocorreram nesse país.

4. As regras de competência do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, aplicam-se desde que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro; à competência dos tribunais desse Estado-Membro, decorrente das normas do Regulamento, não obsta a circunstância de o demandado não ser nacional desse Estado ou de nenhum outro Estado da União Europeia, nem a circunstância de a relação material controvertida possuir elementos de conexão com a ordem jurídica de um Estado não Membro da União Europeia.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão a decidir no recurso diz respeito, fundamentalmente, à competência internacional dos Tribunais Portugueses.

A apelante insurge-se quanto ao facto de na sentença recorrida ter-se aplicado o Regulamento do Conselho 1215/2012 de 20/12/2012 [sic].

Este Regulamento concede às partes a possibilidade de celebrar um acordo de escolha da lei aplicável no divórcio ou separação judicial.

Efectivamente de acordo com o disposto no artigo 5º do citado regulamento “os cônjuges podem acordar em designar a lei aplicável ao divórcio e à separação judicial desde que se trate das seguintes leis:

a) Lei do Estado da residência habitual dos cônjuges no momento da celebração do acordo de escolha da lei; ou

b) A lei do Estado da última residência habitual dos cônjuges, desde que um deles ainda aí resida no momento da celebração do acordo; ou

c) A lei do Estado da nacionalidade de um dos cônjuges à data da celebração do acordo; ou

d) A lei do foro.

De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo “sem prejuízo do disposto no n.º 3, um acordo que determine a lei aplicável pode ser celebrado e alterado a qualquer momento, o mais tardar à data da instauração do processo em tribunal".

E o n.º 3 dispõe que se a lei do foro assim o determinar, os cônjuges podem ainda designar a lei aplicável perante o tribunal durante o processo. Nesse caso essa designação será registada em tribunal nos termos da lei do foro.

De acordo ainda com o disposto no artigo 4º “é aplicável a lei designada pelo presente regulamento ainda que não seja a lei de um Estado-membro participante”.

Decorre do referido Regulamento que o acordo de escolha da lei deverá ser celebrado ou alterado o mais tardar na data da instauração do processo em tribunal e mesmo durante o processo se a lei do foro o permitir.

Nos termos dos artigos 5.º a 8.º do Regulamento em princípio a lei aplicável ao divórcio é a lei escolhida pelos cônjuges, nos termos, limites e condições fixadas no próprio Regulamento. Não havendo lei escolhida de forma válida, é aplicável a lei do Estado: a) da residência habitual dos cônjuges à data da instauração do processo em tribunal; ou, na sua falta, b) da última residência habitual dos cônjuges, desde que o período de residência não tenha terminado há mais de um ano antes da instauração do processo em tribunal, na medida em que um dos cônjuges ainda resida nesse Estado no momento da instauração do processo em tribunal; ou, na sua falta, c) da nacionalidade de ambos os cônjuges à data da instauração do processo em tribunal; ou, na sua falta, d) em que se situe o tribunal onde o processo foi instaurado (artigo 8.º).

Conforme resulta dos autos não foi celebrado qualquer acordo entre os cônjuges.

Com efeito, à data da instauração do processo não foi junto qualquer acordo que os cônjuges tenham celebrado.

Durante o processo efectivamente foi perguntado aos cônjuges qual a lei que os mesmos queriam ver aplicada.

A resposta da apelante foi que pretendia que o processo de divórcio decorresse no país da residência (sua e do autor) onde alegou já ter insaturado o respectivo processo de divórcio e com a lei aplicável no Estado da sua residência nos Estados Unidos da América – o Estado da Virgínia.

Do seu requerimento não resulta que a mesma tenha acordado com o autor que a lei a aplicar fosse a do Estado da Virgínia.

Mas antes de se saber qual a lei a aplicar há que determinar qual o Tribunal competente para a presente acção.

Está em causa aferir da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente acção de divórcio, atendendo a que ambas as partes residem no estrangeiro e os factos que sustentam o pedido de divórcio – separação consecutiva por período superior a um ano – também ocorreram fora do território nacional português.

De acordo com o artigo 72º do Código de processo Civil, para as acções de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor.

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

O artigo 59.º do mesmo diploma legal preceitua que há que salvaguardar aquilo que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, referindo expressamente que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos naquele artigo 62.º, mas sem prejuízo do que se encontra naqueles estabelecido.

Portanto, no âmbito da aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, importa salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, que vinculem internacionalmente o Estado Português, reconhecendo-se, assim, o primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontre vinculado sobre o direito nacional, designadamente a prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional.

Em matéria de competência para o divórcio ou separação judicial rege o Regulamento do Conselho 2201/2003.

O objectivo do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho é permitir aos cônjuges a possibilidade de optar entre vários critérios alternativos de competência para a determinação do tribunal competente que julgará a causa de separação ou divórcio.

Assim, dispõe o artigo 3º do citado Regulamento que:

Competência geral

1. São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:

- a residência habitual dos cônjuges, ou

- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

- a residência habitual do requerido, ou

- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu "domicílio";

b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do "domicílio" comum.

2. Para efeitos do presente regulamento, o termo "domicílio" é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda.

Por sua vez dispõe o artigo 7º do mesmo Regulamento que:

Competências residuais

1. Se nenhum tribunal de um Estado-Membro for competente nos termos dos artigos 3.º, 4.º e 5.º, a competência, em cada Estado-Membro, é regulada pela lei desse Estado-Membro.

2. Qualquer nacional de um Estado-Membro que tenha a sua residência habitual no território de outro Estado-Membro pode invocar neste último, em pé de igualdade com os respectivos nacionais, as regras de competência aplicáveis nesse mesmo Estado-Membro a um requerido que não tenha a sua residência habitual num Estado-Membro e não possua a nacionalidade de um Estado-Membro ou, no caso do Reino Unido ou da Irlanda, não tenha o seu "domicílio" no território de um destes últimos Estados-Membros.

Para além dos casos em que é reservada a competência exclusiva dos tribunais portugueses (artigo 63º do Cód. Proc. Civil), enuncia o artigo 62º do Cód. Proc. Civil, como factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, os critérios ou princípios da coincidência, na alínea a), da causalidade, na alínea b) e da necessidade, na alínea c)- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandrino [sic], Código de Processo Civil Anotado, v. I, págs. 131 e 132.

Estes factores são autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastante para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses.

Para a determinação da competência internacional, só se aplicam os critérios de conexão a que se refere o artigo 62º do Código de Processo Civil se não existirem instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses (pois, existindo, prevalecem sobre os critérios plasmados na segunda parte do artº 59º do CPC).

De acordo com o artigo 82º do Código Civil, - 1. A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente, em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles. 2. Na falta de residência habitual, considera-se domiciliada no lugar da sua residência ocasional ou, se esta não puder ser determinada, no lugar onde se encontrar.

Ora, como resulta dos autos a residência habitual dos cônjuges é nos Estados Unidos da América, e não em Portugal, onde vêm de férias esporadicamente.

Por outro lado, não foi celebrado o acordo a que se refere o Regulamento 1259/2010 do Conselho, para que fosse aplicado a Lei do Estado da Virgínia dos Estados Unidos da América, nem existe o elemento de conexão a que alude o artigo 8º do citado regulamento, que é o da residência habitual dos cônjuges no momento da propositura da acção.

Assim, não tendo os cônjuges residência, nem domicílio em Portugal, para que o tribunal português pudesse ser competente internacionalmente para apreciar e julgar a presente acção, teria que se praticado em Portugal o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum facto que a integre.

Ora, no caso, a separação de facto por um ano consecutivo ocorreu nos Estados Unidos da América onde, como foi alegado, desde 2015, os cônjuges estão separados fazendo vidas completamente separadas, sendo que todos os factos demonstrativos da ruptura definitiva do casamento ocorreram nesse país onde os cônjuges têm residência permanente.

Daí entendermos que o tribunal português é internacionalmente incompetente para o julgamento da acção.

Por outro lado, o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro, destina-se a aferir da competência das autoridades para decidir a acção de divórcio, enquanto que o Regulamento (UE) nº 1259/2010 do Conselho, de 20 de Dezembro, destina-se a aferir a Lei aplicável em matéria de divórcio.

Atento o disposto no artigo 62º do Código de Processo Civil, e o estatuído nos referidos regulamentos, o Tribunal português é internacionalmente incompetente para decidir da acção de divórcio relativo a dois cidadãos portugueses com residência habitual e permanente nos Estados Unidos da América e em que os factos integradores da causa de pedir ocorreram nesse país."

III. [Comentário] O acórdão merece as seguintes observações:

-- Onde se começa por referir o Reg. 1215/2012 devia certamente querer referir-se o Reg. 1259/2010 (Roma III);

 -- Dado que uma coisa é a lei aplicável ao julgamento da acção e outra é a determinação do tribunal internacionalmente competente, não se percebe a relevância de qualquer acordo das partes sobre a lei aplicável ao divórcio para a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses;

-- Também não se percebe que conclusão para a competência internacional dos tribunais portugueses se pode retirar da circunstância de -- alegadamente -- não existir "o elemento de conexão a que alude o artigo 8º do [Reg. 1259/2010], que é o da residência habitual dos cônjuges no momento da propositura da acção";

-- Não é correcto concluir que o "tribunal português é internacionalmente incompetente para o julgamento da acção" e, depois, referir "por outro lado" o Reg. 2201/2003; este instrumento europeu prevalece sobre o direito interno;

-- Segundo se percebe, ambos os cônjuges têm nacionalidade portuguesa; se assim é por que razão se ignorou o disposto no art. 3.º, n.º 1, al. b), Reg. 2201/2003?

MTS