Julgamento da matéria de facto;
poderes da Relação*
I. Cumprido pelo recorrente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º do CPC e tendo a Relação reapreciado os meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.
II. O Tribunal da Relação tem, em sede de reapreciação da matéria de facto e no âmbito da formação da sua própria convicção acerca do facto impugnado, um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, não estando adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes nem aos indicados pelo tribunal recorrido.
III. O nosso atual modelo de processo civil, assente no primado do direito substantivo sobre o direito adjetivo e no princípio da gestão processual, atribui ao juiz o poder de exercer influência sobre o processo, quer a nível do procedimento propriamente dito, quer ao nível do pedido, da causa de pedir e das provas.
IV. Estando-se perante um formalismo processual relativo à modificabilidade do princípio da estabilidade da instância ínsito no artigo 260º, do Código de Processo Civil, o acordo das partes quanto à alteração da causa de pedir, exigido pelo artigo 264º do mesmo código, tem de ser expresso.
V. Os fundamentos da decisão só adquirem o valor de caso julgado quando dizem respeito a relações sinalagmáticas ou quando criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado e o objeto da ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico indispensável.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.2.2. Nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia.
Sustenta a recorrente enfermar ainda o acórdão recorrido, no que concerne às alterações das respostas dadas aos pontos 7 e 35 dos factos provados, da nulidade prevista na al. d), do nº1 do citado art. 615º, pois ao pronunciar-se sobre os montantes debitados em data anterior a Setembro de 2011, nomeadamente no que se refere aos IMIs, está a cometer excesso de pronúncia por se debruçar sobre questões que não constam dos temas da prova, que não foram colocadas à apreciação do tribunal de 1ª instância, tendo apenas surgido já em sede de recurso e que já tinham inclusivamente sido objeto de apreciação por outro Tribunal, em momento anterior, pelo que requer que sejam anuladas tais alterações.
Mas, a nosso ver, também não lhe assiste razão.
Senão vejamos.
O excesso de pronúncia a que alude a al. d), do nº 1 do art. 615º, do CPC, verifica-se quando o tribunal aprecia e toma posição sobre questões de que não deveria conhecer, designadamente porque não foram suscitadas pelas partes e não eram de conhecimento oficioso.
Todavia, relevantes, para tal efeito, são somente as questões que contendam com a substanciação da causa de pedir, pedido e exceções invocadas pela defesa [...] ou que devam ser suscitadas oficiosamente.
Particularmente, na fase de recurso, constituem questões solvendas, as que delimitam o objeto daquele e que se traduzem, quer nos invocados erros de direito na determinação, interpretação e aplicação das normas que constituem fundamento jurídico da decisão, nos termos do disposto no art.º 639.º, n.º 2, do CPC, quer, em sede de impugnação da decisão de facto, na especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e que cumpre ao impugnante indicar nos termos do art.º 640.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código [...].
Quer isto dizer não se integrarem no conceito jurídico-processual de “questão” os argumentos jurídicos ou probatórios discreteados no âmbito das questões a solucionar nem as situações de discordância das partes em relação ao decidido, designadamente no que concerne à valoração da prova feita pelo Tribunal da Relação, segundo o critério da sua livre e prudente convicção.
Essencial é que o tribunal se contenha no âmbito do objeto do recurso, delimitado pelas conclusões.
Ora, relativamente aos pontos 7 e 35 dos factos provados, o que se verifica é que o Tribunal da Relação, na sequência da impugnação destas respostas por parte da ré/apelante, reapreciou esta factualidade e fundamentou as alterações nelas introduzidas nos seguintes termos:
«Relativamente ao facto nº 7, analisada a prova documental e ouvidos os referidos depoimentos, a nossa convicção, tal como a da Mmª juiz “a quo” é de que a ré pagou as primeiras 51 rendas do contrato.No entanto a Mmª juiz “a quo” julgou provado que apenas pagou estas 51 rendas.Ora, se é certo que a prova produzida não nos permite concluir que a ré pagou mais do que estas 51 rendas (e o ónus da prova era da apelante), também é certo que não nos permite concluir que apenas pagou estas.Decorre do facto provado sob o nº 18, na parte que aqui não vem impugnada, dos comprovativos de depósitos, dos extractos bancários e da conta leasing, que foram depositadas quantias que totalizam montante bem superior a essas 51 rendas, sem que a autora tenha demonstrado, com exactidão, como lhe era exigível, que, na sequência da factualidade provada nos nºs 27º, 28º, 34º e 36º, os concretos valores debitados se mostrassem contratualmente justificados.Efectivamente, a autora debitou valores relativos ao IMI referente a anos anteriores à celebração do contrato de locação financeira (2006, 2007, 2008 e 2009). Débitos em conta que os termos das respectivas cláusulas não consentiam. [...]
Ora, nos termos das cláusulas 4ª das condições gerais e cláusula 10ª das condições particulares do contrato de locação financeira (factos 28º e 29º e documento junto aos autos com a P.I.), o pagamento de tais impostos não poderia recair sobre a locatária por se referirem a um período temporal em que não tinha essa qualidade e, por isso, não estava a autora apelada contratualmente autorizada a debitar tais montantes na conta da locatária.Assim, em face dos valores depositados pela ré e dos valores indevidamente debitados pela autora, sem curar de outros que também não se mostram correctamente justificados, entendemos que se deve retirar a expressão “apenas” à redacção do facto nº 7, porquanto há pelo menos a hipótese de que essas quantias poderiam e deveriam ter sido utilizadas para o pagamento de outras rendas.Tal dúvida não nos permite assim julgar provado que apenas pagou aquelas 51 rendas.(…) » [...]
Impugna o apelante a matéria provada sob o nº 35 (…)Da análise dos documentos juntos aos autos, apesar de, como atrás referimos a propósito do facto nº 7, entendermos que a autora, aqui apelada, não justificou devidamente quantias que debitou na conta associada ao contrato e destinada ao pagamento das rendas e outras despesas contratualmente devidas, nomeadamente por não encontrarmos justificação para o lançamento a débito de quantias relativas ao IMI de anos anteriores à celebração do contrato de locação financeira, não é possível afirmar que essa foi a única causa para que a conta não estivesse dotada de fundos que permitissem o pagamento das rendas nas datas do respectivo vencimento.Concedemos apenas, em face do exposto, que a redacção de tal facto seja alterada nos seguintes termos: “Tal sucedeu porque as quantias depositadas não foram imputadas às rendas que a ré indica, por tal indicação, manuscrita pelo representante da ré, no entender do Banco autor não estar correcta”».
Por outro lado, e no que concerne à impugnação da autora/apelada, o acórdão recorrido julgou improcedente a pretensão da autora/apelada de ver alterada a resposta dada ao ponto 7 no sentido de ser dado como provado que a ré apenas liquidou as primeiras 36 rendas do contrato, com base na seguinte fundamentação:
«Por tudo o que se expôs na apreciação da impugnação deduzida pela ré, de sinal contrário, mas à mesma matéria, tal impugnação terá de improceder.Efectivamente, decorre do facto provado sob o nº 18 (que a apelada não impugnou), que, em contas afectas exclusivamente ao contrato de leasing em questão e para pagamento das obrigações dele decorrentes, somando as parcelas referidas nesse facto, a ré depositou o montante de €110.968,60. Montante bem superior às 36 rendas que a autora pretende se julgue provado [€2451+ (35 x €1751) = € 63.736]. Isto é, a ré depositou para pagamento das prestações e outras obrigações decorrentes do contrato mais €47.232.Excedente que a autora não demonstrou, como lhe era exigível – atentas as suas obrigações de depositária, por isso obrigada a prestar contas à depositante da gestão dos fundos que esta lhe confiou – ser necessário ao pagamento de outras obrigações pecuniárias emergentes do contrato.Pelo contrário, em face da factualidade provada (nºs 27º, 28º, 34º e 36º) verifica-se que a autora lançou a débito na conta da ré valores que não encontram justificação contratual.Como já antes referimos, a autora debitou valores relativos ao IMI referente a anos anteriores à celebração do contrato de locação financeira (2006, 2007, 2008 e 2009).Débitos em conta que os termos das cláusulas 4ª das condições gerais e cláusula 10ª das condições particulares do contrato de locação financeira (factos 28º e 29º), por anteriores à celebração do contrato, não contemplam. [...](…)
Assim, uma vez que os valores depositados pela ré (€110.968,60) são mais do que suficientes ao pagamento das 51 prestações (€90.001) – que o Tribunal “a quo” julgou provado estarem pagas – e não logrou a autora produzir prova convincente de outras obrigações da ré, emergentes do contrato, de valor superior ao excedente depositado pela ré (€21.967,60), sempre improcederia a pretensão da apelada de ver alterado este facto num sentido que até contraria o que alegou e a respectiva causa de pedir» .
Daqui decorre ter o Tribunal recorrido formado a sua convicção sobre a factualidade constante dos pontos 7 e 35 dos factos provados com base em prova testemunhal e nos documentos juntos aos autos, de que salientou os extratos bancários e da “conta leasing”, o teor da carta remetida à autora em 31 de julho de 2014, que conjugados com os factos dados como provados no ponto nº 18, permitiu-lhe concluir que «a autora debitou valores relativos ao IMI referente a anos anteriores à celebração do contrato de locação financeira (2006. 2007, 2008 2 2009)».
Vale isto por dizer que, constando os montantes relativos ao IMI debitados à ré em data anterior a Setembro de 2011 da prova documental junta aos autos, a alusão aos mesmos feita em sede de reapreciação da prova, não assume a natureza de questão solvenda, apresentando-se, antes, como o resultado da apreciação crítica feita pelo Tribunal da Relação aos meios de prova existentes nos autos, sendo certo nada impedir o tribunal recorrido de atender àquela prova documental e com base nela, fundamentar as alterações introduzidas nos pontos 7º e 35º dos factos dadas como provados pelo Tribunal de 1ª Instância.
É que, como decorre do preceituado no art. 662º, nº 1 do CPC e refere o Acórdão do STJ, de 20.12.2017 (processo nº 3018/14.2TBVFX.L1.S1) [...], o Tribunal da Relação tem, em sede de reapreciação da matéria de facto e no âmbito da formação da sua própria convicção acerca do facto impugnado, «um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, (…) sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido».
E a verdade é que, contrariamente ao sustentado pela recorrente, nem se vê que ao valorar os «pagamentos de IMIs anteriores à data da resolução bem como as imputações das quantias recebidas/débitos efectuados até Setembro de 2011», o acórdão recorrido tenha conhecido de questões novas e violado o princípio do dispositivo consagrado nos artigos 3.º e 5.º do CPC, pois conforme já se deixou dito, tal atividade insere-se no âmbito da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e na valoração da prova feita pelo Tribunal da Relação à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento.
E muito menos se vislumbra que o acórdão recorrido, ao afirmar que a autora não logrou produzir prova convincente de outras obrigações da ré, emergentes do contrato, de valor superior ao excedente depositado pela ré (€ 21.967,60), viole o disposto nos arts. 342º, nº 2 e 785º, do C. Civil e art. 414º, do CPC e esteja em contradição com o Acórdão do STJ, de 22.03.2018 proferido no processo nº 67525/14.6YIPRT.L1.S1.
Com efeito, tendo a resolução do contrato de locação financeira operada pela autora em 31.07.2014 por fundamento apenas a falta de pagamento de rendas e tendo a ré procedido ao depósito de vários montantes para fazer face às suas obrigações contratuais que não se resumem ao pagamento das rendas, era sobre ela, e não sobre a ré, que impendia o ónus de provar que os montantes depositados, por terem sido imputados ao pagamento de outras despesas, não foram suficientes para efetuar o pagamento das rendas devidas, o que, em nada contradiz o decidido no citado acórdão de 22.03.2018, que reporta-se a situação distinta da dos presentes autos."
*3. [Comentário] Expressam-se algumas reservas ao entendimento de que o art. 662.º CPC atribui à Relação "um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, (…) sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido".
É verdade que a Relação pode dar como provados factos com base em meios de prova distintos daqueles que foram utilizados pelo tribunal de 1.ª instância (art. 662.º, n.º 1, CPC), No entanto, a Relação está apenas a valorar de modo distinto meios de prova que já foram valorados pela 1.ª instância.
Também é verdade que a Relação pode ordenar a renovação da produção da prova realizada na 1.ª instância (art. 662.º, n.º 2, al. a), CPC). Todavia, a Relação está apenas a ordenar a repetição de uma prova já produzida na 1.ª instância
A única situação que tem alguma proximidade com os poderes inquisitórios atribuídos pelo art. 411.º CPC é aquela que consta do art. 662.º, n.º 2, al. b), CPC. Se tiver dúvida fundada sobre a prova realizada (porque, por exemplo, entende que necessita de ficar mais bem esclarecida sobre a prova do probando), a Relação, de molde a evitar uma indesejável situação de non liquet, pode ordenar a produção de outros meios de prova.
Também é verdade que a Relação pode ordenar a renovação da produção da prova realizada na 1.ª instância (art. 662.º, n.º 2, al. a), CPC). Todavia, a Relação está apenas a ordenar a repetição de uma prova já produzida na 1.ª instância
A única situação que tem alguma proximidade com os poderes inquisitórios atribuídos pelo art. 411.º CPC é aquela que consta do art. 662.º, n.º 2, al. b), CPC. Se tiver dúvida fundada sobre a prova realizada (porque, por exemplo, entende que necessita de ficar mais bem esclarecida sobre a prova do probando), a Relação, de molde a evitar uma indesejável situação de non liquet, pode ordenar a produção de outros meios de prova.
MTS