Processo de inventário;
arrolamento
1. O sumário de RC 8/7/2021 (863/20.3T8CTB-A.C1) é o seguinte:
I) O objectivo do arrolamento não se reconduz, apenas, à identificação dos bens sobre os quais incide o direito do requerente, visando, também, garantir a persistência dos bens até lhe ser dado destino na acção principal.
II) Quando a acção principal é um processo de inventário a utilidade do arrolamento poderá manter-se até à efectiva realização da partilha, uma vez que é este o acto que define os direitos de cada um dos interessados em relação aos bens a partilhar.
III) A mera circunstância de os bens já terem sido relacionados no processo de inventário não é, só por si, bastante para concluir pela inadmissibilidade do arrolamento ou pela falta de interesse em agir do requerente
IV) Tal interesse continua a subsistir até à partilha se, apesar de os bens estarem relacionados, continuar a existir o risco de extravio, ocultação ou dissipação dos mesmos e a consequente necessidade de tutela judicial para o efeito de assegurar a conservação deles até à realização da partilha e à definição dos direitos de cada um dos interessados.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento inicial por ter considerado verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir, argumentando, no essencial:
- Que, destinando-se o arrolamento a suprimir o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens comuns do casal e/ou de bens próprios em poder do requerido, ou por ele administrados, de modo a assegurar a partilha, o mesmo apenas pode ser decretado quando sejam alegados factos de onde se possa retirar a necessidade de intervenção judicial e quando esteja assegurada a verificação de todos os pressupostos processuais, o que não acontece quando a descrição dos bens tenha já sido efectuada em sede de inventário;- Que, no caso, está pendente o processo de inventário onde a Requerente desempenha as funções de cabeça de casal e onde já relacionou todos os bens que entendeu relacionar, e, como tal, já não existe qualquer necessidade concreta de, através do procedimento cautelar, ser prevenida a ocultação de bens;- Que, nessas circunstâncias, a Requerente não tem necessidade de tutela judiciária e, como tal, não tem interesse em agir.
Discordando dessa decisão, argumenta a Apelante, no essencial, que, apesar de relacionado o património do casal, continua a existir risco de ocultação e dissipação dos bens, pelo que a Requerente, sendo titular de um direito relativamente a esses bens, tem necessidade de tutela judiciária com vista a assegurar esse direito e, como tal, tem interesse em agir.
Analisemos, então, a questão.
Embora a lei não lhe faça referência expressa, o interesse processual ou interesse em agir tem sido encarado, pela doutrina e jurisprudência, como um pressuposto processual, correspondendo a falta desse interesse a uma excepção dilatória inominada que, como tal, determina a absolvição da instância. [...]
Conforme resulta do disposto nos arts. 403.º e segs. do CPC, o arrolamento tem como objectivo assegurar a manutenção ou conservação dos bens (ou documentos) actuando como meio de prevenção do risco do seu extravio, ocultação ou dissipação e visando assegurar a efectividade do direito do requerente relativamente a esses bens. E ainda que nas situações previstas no art. 409.º do CC não se exija a alegação e prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens, tal apenas acontece porque o legislador entendeu que a conflitualidade normalmente presente (ou latente) nessas situações – separação judicial de bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento – é suficiente para fazer presumir aquele risco ou receio, tornando desnecessária a sua prova efectiva. Em qualquer caso, o que está subjacente ao arrolamento é sempre o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos e a necessidade de prevenção desse risco no sentido de assegurar a manutenção e conservação desses bens (ou documentos) de modo a garantir a efectividade do direito (ou interesse) a que o requerente se arroga e que lhe venha a ser reconhecido na acção da qual o arrolamento é dependência.
Nessas circunstâncias, entendemos não haver fundamento para considerar que o interesse ou efeito útil do arrolamento termine necessariamente com a apresentação da relação de bens no processo de inventário instaurado com vista à partilha dos bens em causa.
Com efeito e conforme dissemos, o objectivo do arrolamento não se reconduz – ou não se reconduz apenas – à identificação dos bens sobre os quais incide o direito do requerente (no caso, os bens a partilhar), visando essencialmente assegurar a permanência e conservação desses bens até à realização da partilha e prevenir o risco de extravio, ocultação ou dissipação desses bens com vista a assegurar que o requerente do arrolamento possa tomar posse efectiva dos bens que lhe venham a caber nessa partilha. E esse risco não termina necessariamente – pensamos nós – com a mera relacionação dos bens no inventário; esse risco poderá manter-se, naturalmente, após a relacionação dos bens, frustrando a expectativa e o direito do requerente relativamente aos bens que lhe venham a caber. O arrolamento tem como finalidade garantir a persistência dos bens até lhe ser dado destino na acção principal [Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, pág. 259] e, portanto, quando a acção principal é um processo de inventário a utilidade do arrolamento manter-se-á – ou poderá manter-se – até à efectiva realização da partilha, uma vez que é este o acto que define os direitos de cada um dos interessados em relação aos bens em causa.
Refira-se que, apesar de se dispor no art. 408.º, n.º 2, do CPC que o auto de arrolamento serve de descrição no inventário a que haja de proceder-se, daí não se poderá retirar qualquer conclusão ou ilação no sentido de a finalidade e utilidade do arrolamento se esgotar com essa descrição ou relacionação no inventário. Na verdade, o que se pretendeu com a norma em questão foi apenas consignar expressamente a dispensa de um acto que se insere na normal tramitação do inventário e que se torna inútil pelo facto de os bens já estarem descritos e identificados num auto de arrolamento que foi feito anteriormente; daí não se retira, no entanto, que o arrolamento não possa ser requerido e decretado em momento posterior à relacionação dos bens no inventário no sentido de prevenir o risco de extravio, ocultação ou dissipação dos bens relacionados até à efectiva realização da partilha. Neste sentido se pronuncia, aliás, Alberto dos Reis [Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 3.ª edição, pág. 107] quando afirma que “…o arrolamento pode requerer-se em qualquer altura do inventário, antes ou depois da descrição dos bens, uma vez que se justifique a necessidade ou a utilidade da providência, nos termos do art. 429.º”.
Significa isso, portanto, que a mera circunstância de os bens já terem sido relacionados no processo de inventário não é, só por si, bastante para concluir pela inadmissibilidade do arrolamento ou pela falta de interesse em agir do requerente; esse interesse pode continuar a subsistir – até à partilha – se, apesar de os bens estarem relacionados, continuar a existir o risco de extravio, ocultação ou dissipação desses bens e a consequente necessidade de tutela judicial para o efeito de assegurar a conservação dos bens até à realização da partilha e à definição dos direitos de cada um dos interessados.
É certo que a consolidação – sem oposição – da relacionação ou descrição dos bens a partilhar no inventário retirará, aparentemente, qualquer interesse útil ao arrolamento. Na verdade, se os bens a partilhar já foram relacionados e se não existe, a esse propósito, qualquer divergência ou desacordo entre os interessados não existirá, aparentemente, qualquer risco efectivo de extravio, ocultação ou dissipação de bens que justifique a necessidade de um dos interessados vir requerer o arrolamento dos bens. Nessas circunstâncias, não poderá deixar de concluir-se pela falta de interesse em agir se algum dos interessados vier requerer o arrolamento sem que exista qualquer outro facto que justifique a necessidade de tutela judicial para assegurar o seu direito, ou seja, sem que existam factos com base nos quais se possa concluir que, não obstante estarem já relacionados e identificados os bens a partilhar, continua a existir justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens.
Não é essa, no entanto, a situação dos autos.
No caso em análise, a Requerente – que desempenha as funções de cabeça de casal – já apresentou a relação de bens no processo de inventário.
Já vimos, no entanto, que isso não basta, só por si, para concluir pela inexistência de interesse em agir no pedido de arrolamento dos bens, tanto mais que, no caso, nem sequer se pode dizer que a relacionação dos bens já esteja estabilizada – muito menos que o esteja sem desacordo ou litígio entre os interessados – uma vez que o Requerido reclamou da relação de bens e tal reclamação nem sequer foi ainda decidida.
É certo, por outro lado, que, na reclamação que deduziu, o Requerido alegou desconhecer a existência ou o paradeiro de diversos bens que a cabeça de casal – a Requerente – alega estarem em seu poder e essa circunstância pode justificar, pelo menos em abstracto, o receio de que esses bens – caso existam efectivamente e estejam na posse do Requerido – possam vir a ser extraviados, ocultados ou dissipados.
Nessas circunstâncias e invocando a Requerente a existência de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, não nos parece poder afirmar-se que a Requerente não esteja efectivamente carecida de tutela judicial para o efeito de requerer o arrolamento dos bens no sentido de confirmar a existência dos bens que ela alega estarem em poder do Requerido (o que este nega) e no sentido de prevenir o seu eventual extravio, ocultação ou dissipação e, portanto, não nos parece que estejam reunidas as condições necessárias para afirmar que a Requerente não tem interesse em agir e para lhe negar, com esse fundamento, a pretensão que veio formular."
[MTS]
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