"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/03/2022

Jurisprudência 2021 (161)


Absolvição da instância;
recurso; reformatio in peius*


I. O sumário de RG 13/7/2021 (5525/19.1T8VNF.G1) é o seguinte:

1- A propositura de uma ação por quem não tem legitimidade para formular pedidos que pretende ver reconhecidos, uma vez que a ilegitimidade é uma exceção dilatória, determina a absolvição do réu da instância, extinguindo-se o processo sem a decisão do juiz sobre o mérito da causa, e esta não adquire a força de coisa julgada material, mas de coisa julgada formal, apenas vinculativo dentro daquele processo, o que não impede a propositura de novas ações com o mesmo objeto. O oposto ocorre com a absolvição do pedido, que faz caso julgado material e por isso é mais gravoso para o Autor.

2- A proibição da reformatio in pejus impede que a decisão do recurso (ou a decisão que nele tenha origem, caso este anule a decisão recorrida) seja mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada, não permitindo que o Recorrente possa obter um resultado contrário ao pretendido, beneficiando-se a parte que se conformou com a decisão.

3- A esta figura se reporta o artigo 635º nº 5 do Código de Processo Civil, que dispõe: “os efeitos do julgado, na parte recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”, conjugado com os limites do caso julgado.

4- Assim, não é possível ao tribunal de recurso absolver o Réu do pedido em recurso apresentado exclusivamente pelo Autor de decisão que absolveu o Réu da instância.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] apesar de dizer que é filho biológico do autor da herança, não alega factos de onde resulte que possa ser juridicamente considerada tal filiação, pelo que lhe falha um pressuposto processual: a legitimidade que lhe adviria da qualidade de herdeiro (deve por isso dar-se a absolvição dos réus da instância).

No entanto, visto que o Autor se arroga titular do direito e dele beneficiário, entendemos que verificar se o mesmo existe ou não, se o pode ou não provar, é já uma questão de mérito.

Enfim, entendemos que o autor invocou um direito que lhe adviria da qualidade de filho e que não se mostra reconhecido e que, por isso, legalmente não tem, pelo que não é titular da relação jurídica que invoca. Tal determinaria a absolvição do pedido.

No entanto, nesta sede esta nunca poderia ocorrer, sob pena de se prejudicar o Recorrente. A proibição da reformatio in pejus impede que a decisão do recurso (ou a decisão que nele tenha origem, caso este anule a decisão recorrida) seja mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada, não permitindo que o Recorrente possa obter um resultado contrário ao pretendido, beneficiando-se a parte que se conformou com a decisão.

Por um lado, tal funda-se na ideia de que o tribunal não pode ir além do que foi peticionado, à necessidade de não desincentivar as partes a defenderem os seus direitos, por medo de saírem prejudicadas, conjugado com os princípios do caso julgado (embora se corra o risco de fomentar a interposição temerária de recursos).

A esta figura se reporta o artigo 635º nº 5 do Código de Processo Civil, que dispõe: “os efeitos do julgado, na parte recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”, conjugado com os limites do caso julgado. Tem sido afirmado que esta condicionante à decisão do recurso tem como causa o facto de no nosso direito o recurso ter como objeto a reapreciação da decisão recorrida (na parte impugnada) e não um novo julgamento da causa.

Neste sentido, entre muitos e por recente, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/2021, no processo 1310/11.7TBALQ.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt (assim como todos os demais que sejam invocados sem menção de fonte): “I. A decisão do tribunal não pode ser mais desfavorável para o recorrente que a decisão impugnada, e da qual a parte contrária não recorreu, atento o princípio da proibição da “reformatio in pejus” (art.º 635º, n.º 5, do CPC); “.II. Se uma sentença proferiu condenação dos réus e se só estes interpuseram recurso, tendo a Apelação determinado a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, não pode a sentença que venha a se proferida posteriormente, agravar a condenação anterior uma vez que se encontram salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objecto de recurso.”

Esta limitação é aliás, muito clara nestes autos, visto que os réus, afirmando que se verificava uma exceção dilatória, defenderam expressamente que a mesma não impedia que fosse proferida decisão de mérito, e pediram a sua absolvição do pedido; apesar de só terem sido absolvidos da instância, conformaram-se com simples decisão de forma.

Com efeito, a propositura de uma ação por quem não tem legitimidade para formular pedidos que pretende ver reconhecidos, uma vez que a ilegitimidade é uma exceção dilatória, determina a absolvição do réu da instância, extinguindo-se o processo sem a decisão do juiz sobre o mérito da causa, e esta não adquire a força de coisa julgada material, mas apenas de coisa julgada formal, apenas vinculativo dentro daquele processo, o que não impede a propositura de novas ações com o mesmo objeto. O oposto ocorre com a absolvição do pedido, que faz caso julgado material e por isso é mais gravoso para o Autor.

(Não obstante, foi discutido se não se deve impedir que a causa seja repetida quando também na segunda voltam a verificar-se as mesmas circunstâncias levam à mesma exceção dilatória, pelo menos quando o pressuposto lacunoso tenha ligação direta ao direito substantivo, como ocorre com a legitimidade, que depende da análise da relação jurídica substantiva (cf pág. 560, anotação 2 ao art. 289 do CPC, diz Lebre de Freitas apud acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 13/7/2017 no processo 2702/06.9TBALM-2)).

Dúvidas não há, pois, que o primeiro pedido de declaração de propriedade de um direito não pode proceder (se ou enquanto não se alterar a situação registal).

Mas o segundo pedido também depende em absoluto deste direito: o Autor pretende que os atuais herdeiros se abstenham de praticar os atos inerentes a essa qualidade e que restituam os bens à esfera jurídica do Autor, baseando-se em filiação que não pode demonstrar neste processo.

No entanto, o Autor, assumindo já que o pedido não pode proceder sem que esteja reconhecida a sua filiação, pede agora que se suspenda a presente até a decisão onde aquela está a ser discutida. Esta suspensão, como também o mesmo reconhece, ao pretender, neste processo comum, a aplicação de normas destinadas a regular o processo especial de inventário, não tem cobertura legal direta. Mas também a não tem indireta, visto que ali se está a fazer a partilha de bens e nestes o que é peticionada é a simples declaração de um direito que (ainda?) não existe, por se fundar num facto que o Autor não pode demonstrar nestes autos e a condenação dos Réus na omissão de atos com base nesse direito (por ora?) inexistente.

O Autor afirma, em sede de recurso, que pretende acautelar o seu direito, mas a presente ação não é um procedimento cautelar, esse sim admissível para defesa de interesses emergentes de decisões a proferir em ações constitutivas (artigo 362º nº 2 do Código de Processo Civil), nem invoca um risco concreto, sério e grave a tal direito que esteja iminente.

Tudo posto, nem o recurso, nem a ação podem proceder."


*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a orientação da RG quanto à aplicação da proibição da reformatio in peius.

A própria RG entende que a acção não pode proceder. Coloca-se então a seguinte questão: se a RG considera que, com fundamento na proibição da reformatio in peius, não pode proferir uma decisão de improcedência, onde é que essa decisão poderia ser proferida e obtida pelos réus da presente acção? Seria necessário que estes réus propusessem uma acção de apreciação negativa para que lhes fosse reconhecido pela ordem jurídica que o autor não é proprietário da metade indivisa do prédio?

b) O verdadeiro problema suscitado pelo acórdão é, no entanto, outro.

Recorde-se que a RG conclui o seguinte: "Tudo posto, nem o recurso, nem a ação podem proceder". Para assim poder concluir, teria sido necessário que o acórdão não tivesse desconsiderado o que, no caso em análise, era essencial não ter esquecido. 

Se, na opinião da RG, o autor não pode ser considerado parte legítima (o que agora não se discute), a RG, para equacionar o proferimento de uma decisão de absolvição do pedido, teria de ter justificado, com base no disposto no art. 278.º, n.º 3 2.ª parte, CPC, que, apesar da falta de um pressuposto processual relativo ao autor (legitimidade processual), ainda assim pode proferir uma decisão de mérito desfavorável a essa parte. Ora, era precisamente isto que não era viável, dado que a decisão de mérito não pode ser favorável ao autor.

Era por esta via -- e não pela da reformatio in peius -- que a RG, se entende que o autor é parte ilegítima, deveria ter confirmado a absolvição da instância, mas, ao mesmo tempo, deveria ter-se abstido de qualquer apreciação do mérito, precisamente porque, sendo, na opinião da RG, o autor parte ilegítima, não é admissível o proferimento de uma decisão de mérito contra essa parte na presente acção.

c) Não deixa de se referir que o caso analisado pela RG é tipicamente um daqueles que permite questionar a justificação e a função da chamada legitimidade processual directa. Mas isso é uma outra história.

MTS