"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/03/2022

Jurisprudência 2021 (165)


Cumulação de pedidos;
pedido de reivindicação; pedido de demarcação*


1. O sumário de RP 13/7/2021 (500/20.6T8ALB.P1é o seguinte:

I - A ineptidão da petição inicial existe quando ocorre uma ausência de alegação de factos essenciais para a causa de pedir que se revelem insuscetíveis de ser concretizados ou complementados por força de um convite ao aperfeiçoamento feito pelo tribunal.

II - Na ação de reivindicação, o autor tem o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre a coisa de que se arroga titular; donde já sabe bem o que é seu e, por isso, impõe-se que defina, delimite, aquilo que lhe pertence para além de descrever a concreta ofensa feita a esse direito por quem foi demandado.

III - Na ação de demarcação, o autor, de forma bem distinta, requer junto do tribunal que este demarque (delimite) o seu prédio no confronto com aquele que lhe é adjacente; nesta ação será o tribunal, não o autor, que virá finalmente a elucidar a área e os limites do prédio que o autor possui. Aqui visa-se pôr fim a um estado de incerteza sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios, dúvida essa que o autor também partilha.

IV – Este tipo de ações e decorrentes pedidos formulados resultam incompatíveis entre si e, como tal, desembocam na ineptidão da petição inicial que os tenha cumulado por igual.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I – Relatório

B… e mulher C… e D… propuseram a presente ação declarativa de processo comum contra E…, Lda. com sede em …, Zona Industrial de …, na qual termina peticionando que:

a) se reconheça o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano identificado no artigo 1º desta petição;

b) se ordene a demarcação dos limites entre o prédio dos Autores acima mencionados e o prédio da R;

c) se condene a R. a desocupar a área do prédio pertencente aos A.A. e de que ilicitamente se apropriou, demolindo as construções efetuadas e repondo a área em causa nas condições em que se encontrava antes dos trabalhos de construção civil por si efetuados;

d) se condene a R. a pagar aos Autores, a título de indemnização pelos danos causados na sua propriedade com a destruição de vedações, destruição de culturas e privação do uso parcial da mesma e com a sua consequente desvalorização, a quantia de €15.000,00 (Quinze mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal que se vencerem desde a citação e até integral pagamento. [...]

III – Fundamentação de Direito

O tribunal apelado entendeu acionar, após cumprir o contraditório, a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial com a consequente absolvição da instância da demandada.

Fê-lo assente em duas causas que, no seu entendimento, implicam tal consequência insuscetível de refazimento.

Deste modo, entende que os AA. em momento algum identificam ou descrevem as concretas áreas que estariam a ser ilicitamente ocupadas pela R, “limitando-se a dizer, sem mais, que a Ré ocupou áreas do terreno dos AA.”. Além disso, entendem ainda verificado um outro vício insanável: o da cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, um pedido de demarcação concomitante com um pedido de reivindicação.

Já vimos como o apelante, por sua vez, defende que, caso o tribunal recorrido tivesse entendido existir uma carência de identificação da área em litígio, deveria, nos termos do art. 6º, nº 2 do Código de Processo Civil, ter providenciado oficiosamente pelo suprimento dessa falta, convidando os autores nesse sentido; quanto ao segundo item, argumenta que os pedidos formulados não são incompatíveis entre si, não são contraditórios e não correspondem a formas processuais distintas.

No que concerne à questão de dever, ou não, convidar-se o autor a corrigir a petição formulada, importa, a nosso ver, proceder a uma clarificação conceptual. É que a ineptidão da petição inicial determina, de acordo com o art. 186º, nº1, do Código do Processo Civil (CPC), a nulidade de todo o processo, vício esse de conhecimento oficioso (art. 196º), até à prolação do despacho saneador (art. 200º, nº 2, do CPC), o qual constituiu uma excepção dilatória (artigo 577. alínea b) do CPC); daqui decorre que a ineptidão é insuprível e não pode ser ultrapassada, em termos gerais, por força de um despacho de correção a ser proferido pelo tribunal.

Apenas a petição deficiente pode (deve) ser objeto de correção.

Ponto será apurar, desde logo, se a petição enferma de mera deficiência ou é simplesmente inepta. [...]

Perante a alegação que entendemos como suficiente, plasmada no petitório e devidamente complementada com as plantas e fotografias juntas, considerando estar em causa uma ocupação que terá implicado a destruição de redes e esteios presentes no local, delimitando-o objetivamente, e finalmente tendo em conta a posição assumida pela ré a qual, claramente, afirma ter o prédio dos requerentes uma área total não superior a 570 m2 contra os pretendidos 1281 m2 reivindicados, concluímos, neste segmento, estar perante uma petição possivelmente deficiente mas não passível de ser qualificada como inepta.

Todavia, importa ainda analisar um segundo fundamento invocado na douta sentença que remete para uma cumulação incompatível de pedidos: um pedido de demarcação e um pedido de reivindicação.

Ora, neste segmento, partilhamos da apreciação do tribunal da primeira instância: a nosso ver, resultam manifestamente incompatíveis os pedidos formulados nas alíneas a) e b).

Na verdade, na ação de reivindicação o autor tem o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre a coisa, no caso, imóvel, de que se arroga titular; por isso, sabe o que é seu e deve, naturalmente, definir, delimitar aquilo que lhe pertence para além de descrever a concreta ofensa a esse direito.

Na demarcação, o autor, de forma diversa, requer junto do tribunal que seja demarcado (delimitado) o seu prédio no confronto com aqueles que lhe é adjacente; nesta ação será o tribunal, não o autor, que virá a definir a área e os limites do prédio que possui.

A norma do art.º 1353º do Código Civil consagra o direito potestativo do dono de um prédio obter o concurso dos donos dos prédios vizinhos para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles. Como resulta do artº 1354º, nº 2, do Código Civil, o direito a demarcar prédios não depende da invocação de uma linha de demarcação decorrente dos títulos na medida em que estes podem não lograr determinar os limites do prédio ou a área pertencente a cada proprietário. Na verdade, desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a proprietários diferentes e inexista linha divisória entre eles, ocorre imediatamente o direito de demarcação, podendo a divisão da área conflituante ser resolvida pelos títulos de cada um ou, sucessivamente, pela posse ou por outros meios de prova; no limite, não podendo ser resolvida por nenhum desses meios, será equitativamente dividida pelos proprietários confinantes.

Deste modo, conclui-se que “das duas, uma: ou o reivindicante está certo de que o terreno que reivindica é, todo ele, parte integrante do seu prédio, ou afirma que são incertos ou desconhecidos os seus limites e então já não é a acção de reivindicação que deve propor.” (citamos Acórdão desta Relação de 25 de Janeiro de 2021, processo nº 4029/18.4T8STS.P1, também acessível em dgsi.pt).

Neste segundo caso, em que existe uma dúvida sobre a configuração do prédio, é que se perfila a ação de demarcação.

Ora, no caso em apreço, os autores, como se lê no relatório acima, peticionam, ao mesmo tempo e de modo inconciliável, que se reconheça o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano identificado no artigo 1º desta petição mas também que se ordene a demarcação dos limites entre o prédio dos Autores acima mencionado e o prédio da Ré.

Porém, não basta afirmarmos esta incompatibilidade.

Torna-se necessário apurar do contexto em que a mesma foi articulada pela parte no âmbito do princípio de gestão processual hoje imposto ao tribunal, designadamente quando a lei estabelece o dever de o juiz providenciar “oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo” (artigo 6º, nº 2).

Vejamos se tal resulta possível, como pretende o recorrente, a partir do modo como surge configurada esta ação.

Alegam os autores que, por si e pelos seus antecessores, estão, há muitos anos, ininterruptamente, na posse, em toda a sua extensão e área, enquanto comproprietários de um prédio composto de casa da habitação de dois andares, quatro dependências e logradouro sito na Rua …, no …, freguesia de …, inscrita na matriz predial urbana desta freguesia sob o artigo 338, conforme descrição da Conservatória do Registo Predial de … sob o n  6376/20040830.

Essa posse reuniria as características de uma posse usucapível, pelo que teriam adquirido, conforme invocam, o direito de propriedade sobre esse prédio.

Após alegam que em meados de Março de 2019, a R. iniciou, no seu prédio, trabalhos de construção civil neles se incluindo trabalhos de terraplanagem para a implantação de edifícios destinados a armazéns, parqueamento de viaturas e muro de vedação. Só que, alegadamente, ao faze-lo, invadiu a propriedade dos autores, identificada no art. 1º da petição inicial, ocupando ilegalmente parte do seu logradouro, com a colocação de materiais de construção e o denominado estaleiro da obra, destruindo a vedação em rede existente e arrancando os esteios de cimento que delimitavam ambas as propriedades.

Por isso, os autores pedem que se reconheça o direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado no artigo 1º desta petição e, como decorrência desse direito, pedem, na alínea c), que se condene a ré a desocupar a área do prédio pertencente aos A.A. e de que ilicitamente se apropriou, demolindo as construções efetuadas e repondo a área em causa nas condições em que se encontrava antes dos trabalhos de construção civil por si efetuados.

Daqui decorre que, para os autores, o prédio com logradouro incluído é propriedade sua, concluindo-se não existir incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios. Aliás, isso mesmo é reafirmado nas doutas alegações de recurso do cessionário onde se pode ler expressamente que “no entender do Apelante, ele não tem dúvidas sobre quais são os limites da sua propriedade” [...].

Como procuramos explicar acima também a ré compreendeu bem o que está em causa e também ela está segura sobre quais as áreas de cada um dos prédios em litígio. Por isso, articula que são os autores que pretendem usurpar um terreno que é parte integrante do seu prédio. Deste modo, alega mesmo existir um conluio entre os autores e outro proprietário confinante para se apoderarem em conjunto de mais de 2.000 m2 de terreno pertencente à ré.

Dir-se-á, portanto, que para todos os litigantes o que está em apreço é uma disputa sobre uma faixa de terreno, localizada, que ambos invocam como sua; não se discutem os limites prediais mas sim a titularidade do direito de propriedade sobre uma definida faixa de terreno.
Todavia no que constitui, a nosso ver, uma contradição com o que foi peticionado, os mesmos autores acabam por acolher a tese de ser controvertida a linha de demarcação entre os dois prédios.

Neste sentido, escrevem no petitório ser “necessário definir claramente uma linha de demarcação entre os prédios dos A.A. e da R., que são confinantes” e, mesmo já em sede de alegações recursivas, reitera o apelante pretender que “fique claramente definido o limite da sua propriedade”.

Dir-se-á que, à luz do que representa o pedido de demarcação e com as implicações decorrentes, o recorrente admite que, diferentemente do que começou por afirmar, pode não ser proprietário daquela parcela de terreno na sua totalidade; só assim se poderá entender o pedido de que sejam fixadas as estremas dos prédios pelo próprio tribunal.

O recorrente, alertado pela decisão absolutória da 1ª instância, alega que, “de acordo com o princípio da economia de processos e de litígios, podia formular nesta ação os pedidos que peticionou” sendo que “se se entendesse que o terreno (logradouro) em causa não era dos A.A., teríamos a situação absurda destes terem que propor uma ação de reivindicação para posteriormente proporem nova ação de demarcação se tivessem ganho de causa na primeira”.

Só que, no caso concreto, a procedência de reconhecimento do direito de propriedade com a consequente restituição da parcela de terreno reivindicada excluiria a necessidade de demarcação a qual, repita-se, se tornaria incompatível por existir uma certeza apurada quanto à delimitação dos dois prédios confinantes, pressuposto para intentar uma qualquer ação de demarcação.

Aliás, a mesma conclusão ocorreria caso se viesse a determinar que a parcela disputada é parte integrante do prédio do réu e não do prédio da autora nomeadamente porque a área do prédio dos autores tinha 570 m2, ou outra área que se viesse a determinar, em lugar dos 1.281 m2 reivindicados (vide nomeadamente a planta topográfica junta pelos autores acima recenseada).

Assim se evidencia a incompatibilidade substancial, não só dos pedidos formulados, mas também das causas de pedir em que se sustentam; estamos perante dois pedidos que, inelutavelmente, implicam efeitos jurídicos que mutuamente se repelem.

Não cabe ao tribunal substituir-se à parte e escolher apenas um deles, em detrimento do outro; igualmente, não se vislumbra como um convite para aperfeiçoamento poderá obstruir a tal inconciliabilidade presente na petição formulada.

E com este desfecho julgamos, em síntese final, dever partilhar a decisão do tribunal “a quo”, quanto a este segundo fundamento, julgando procedente a exceção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial."


*3. [Comentário] Com o devido respeito, não se acompanha a orientação da RP quanto à ineptidão da petição inicial.

Coloca-se uma pergunta muito simples: o que deve fazer alguém que se considera proprietário de um terreno, mas que tem dúvidas quanto à sua demarcação perante o terreno vizinho de que é titular o demandado? 

Segundo a orientação da RP, o que o reivindicante deve fazer é ignorar quaisquer dúvidas sobre as estremas dos prédios e reivindicar o prédio com a dimensão que julga ser a verdadeira. "Depois logo se verá".

Segundo uma outra orientação, o reivindicante deve reivindicar o prédio contra o vizinho e, porque tem dúvidas quanto às estremas dos respectivos prédios, não deixar de, de acordo com uma litigância aberta e clara, as referir e, em consequência, cumular o pedido de demarcação. Porque esta solução é muito mais transparente, não pode deixar de ser esta a solução preferível.

Resta acrescentar que não há nenhuma incompatibilidade substantiva entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação: a reivindicação define a titularidade de prédio; a demarcação define, quando tal seja necessário, a extensão do prédio. Assim, é perfeitamente admissível reivindicar o que resultar da demarcação.

MTS