Processo de inventário;
questão prejudicial; suspensão
1. O sumário de RE 30/6/2021 (1752/12.0TBVNO-J.E1) é o seguinte:
I – O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária.
II – Nos termos do artigo 1335.º, nºs. 1 e 2, do anterior Código de Processo Civil, na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12-12, pode haver suspensão do processo de inventário por determinação judicial se se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas no processo de inventário ou ainda quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata designadamente algumas das questões supra referidas.
III – Não estando em causa no processo que se pretende que represente uma causa prejudicial para o prosseguimento do inventário qualquer questão relacionada com a existência do processo de inventário ou com a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha, importa, ainda assim, apurar se esse processo pode constituir uma questão prejudicial relativamente ao inventário.
IV – É prejudicial a decisão que venha a ser proferida no âmbito de um processo judicial pendente relativamente à decisão que venha a ser proferida no processo de inventário quando tal decisão ponha fatalmente em causa o fundamento ou a razão de ser do processo de inventário.
V – Não constitui causa prejudicial do processo de inventário, a decisão que vier a ser proferida no processo onde foi requerida a anulação da deliberação social que determinou o aumento do capital social de uma sociedade, ainda que um dos interessados do inventário tenha licitado, em momento anterior, para o preenchimento do seu quinhão hereditário, uma parte das ações dessa sociedade.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
1 – Requisitos para a suspensão do inventário
Considera a Apelante que na causa dependente, que é um processo de inventário, se se procedeu à licitação de determinada verba, correspondente a ações no capital social de uma sociedade, a alteração desse capital social, após tal licitação, corresponde a uma alteração da situação existente, pelo que intentada ação judicial para apreciar a validade de tal alteração ao capital social, por forma a que seja reposta a situação existente à data da licitação, deve o processo de inventário aguardar a decisão dessa ação, para que a partilha possa corresponder ao que foi a vontade manifestada pelos interessados na conferência de interessados, pois o que se discute na ação respeitante ao aumento de capital interfere e influencia o que se discute no inventário, impondo-se, assim, a suspensão do inventário, por razões de economia, eficácia e validade dos atos processuais, tendo, a decisão recorrida, violado o disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 272.º do Código de Processo Civil que:
1 - O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.2 - Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.3 - Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.4 - As partes podem acordar na suspensão da instância por períodos que, na sua totalidade, não excedam três meses, desde que dela não resulte o adiamento da audiência final.
A decisão recorrida apresentou fundamentação nos seguintes moldes:
Da análise dos documentos apresentados pela interessada (…) verifica-se que ela instaurou efectivamente a acção n.º 1595/20.8T8STR, que corre termos no Juízo Central de Comércio de Santarém, em que veio solicitar que seja declarada nula ou anulada uma deliberação tomada por uma assembleia Geral de sociedade comercial, no caso a aqui donatária (…).Além disso, verifica-se que a interessada (…) veio licitar nos presente autos a verba n.º 1, que é composta por 4.910 acções daquela sociedade (…).Salvo o devido respeito discorda-se da pretensão da interessada (…), que veio indicar no requerimento que juntou agora aos autos de se proceder à suspensão dos presentes autos de inventário, enquanto não for decidida a referida acção de anulação de uma deliberação da assembleia Geral daquela sociedade (…), n.º 1595/20.8T8STR.A forma como opera essa suspensão da instância encontra-se prevista no artigo 272.º do Código de Processo Civil. Estabelece este preceito nos seus nºs 1 e 2 que: 1. O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado. 2. Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.Quanto a este preceito esclarecem os Drs. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, Volume 1º, Coimbra Editora, pág. 500 e seguintes que: O n.° 1 concede ao tribunal o poder de ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando pender causa prejudicial. Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada… Nos termos do n.° 2, o tribunal não pode ordenar a suspensão: se a propositura da acção prejudicial tiver tido exclusivamente em vista obter a suspensão; se o adiantamento da causa for tal que, considerado o tempo previsível de duração da acção prejudicial, os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
Por sua vez, esclarece o Dr. Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 3ª edição, 2000, pág. 43: Quando deve entender-se que a decisão de uma causa depende o julgamento de outra? Quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para decisão de outro leito.Por sua vez, no Ac. da Relação do Porto, de 17-12-1992, in CJ, Tomo 5, pág. 242, decidiu-se que: Enquanto causa de suspensão da instância, a relação de dependência entre uma acção e outra já proposta assenta no facto de, nesta, se discutir, em via principal, uma questão essencial para a decisão da primeira, de tal modo que a decisão dessa acção possa ser afectada pelo julgamento na outra.
Finalmente, no Ac. do STJ de 26-5-1994, in CJ do STJ, Tomo 2, pág. 116, se decidiu que: Uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja resolução por si só possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito.
Ora, da análise da acção de anulação de deliberação social n.º 1595/20.8T8STR, verifica-se que não se discute aí qualquer causa ou questão prejudicial em relação a qualquer questão em causa no presente processo de inventário. Além disso, a decisão que for tomada nesse processo n.º 1595/20.8T8STR, em nada interfere com qualquer questão em causa no presente processo de inventário. Designadamente o objecto em causa no processo n.º 1595/20.8T8STR, em nada interfere e não constitui causa prejudicial quanto à licitação que a interessada (…) efectuou das acções da sociedade (…).Na verdade, por um lado, a interessada (…) não veio solicitar a declaração de invalidade da licitação que efectuou das acções da sociedade (…) naquele processo n.º 1595/20.8T8STR.Além disso, seja qualquer for a decisão que for tomada naquele processo n.º 1595/20.8T8STR, quer seja deferido o pedido de declaração de nulidade da deliberação da assembleia geral da sociedade (…), quer não seja deferido, a licitação realizada pela interessada (…) das acções daquela sociedade, manter-se-á válida e eficaz. Não ocorrerá de forma alguma a invalidade da licitação da interessada (…) quanto àquela licitação.Por outro lado, também não se vislumbra de que forma a deliberação tomada pela assembleia geral da sociedade (…), que a interessada (…) pretende que seja anulada, ou seja a que determinou o aumento de capital daquela sociedade, esvaziou ou possa de alguma forma afectar a licitação que a interessada fez daquelas acções nos presentes autos, conforme ela vem alegar no presente incidente.Por fim, ter-se-á que concluir que a causa de pedir e o pedido em questão nos presentes autos de inventário são autónomos, distintos e independentes da causa de pedir e do pedido que terão sido formulados na acção de anulação de deliberação social n.º 1595/20.8T8STR, não interferindo uns com os outros.Deste modo, não existe fundamento para a suspensão dos presentes autos nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, designadamente a questão em causa naquela acção de anulação de deliberação social n.º 1595/20.8T8STR, não será prejudicial em relação aos presentes autos.
Apreciemos, então.
Conforme dispõe o artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 117/2019, de 13-09, o disposto na presente Lei, quanto ao processo de inventário, aplica-se apenas aos processos iniciados no tribunal a partir da data da sua entrada em vigor, tendo este diploma entrado em vigor em 1 de janeiro de 2020 (artigo 15.º da referida Lei).
Por sua vez, a Lei n.º 23/2013, de 05-03, dispunha no seu artigo 7.º, que a referida Lei não se aplicava aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontrassem pendentes, tendo tal Lei entrado em vigor no primeiro dia útil do mês de setembro de 2013 (artigo 8.º da referida Lei).
Ora, o presente processo de inventário iniciou-se em 12-12-2012, pelo que se aplicaria ao mesmo as regras do processo de inventário constantes da Lei n.º 29/2009, de 29-06, porém, porque a Portaria referida no artigo 2.º, n.º 3, da referida Lei nunca foi publicada, dependendo a entrada em vigor desta Lei da publicação dessa Portaria, também não é esta a Lei que se aplica à presente situação.
Assim sendo, é de aplicar a este processo de inventário, os artigos 1326.º a 1406.º do anterior Código de Processo Civil, na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12-12.
Dispunha o artigo 1326.º do Código de Processo Civil (na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12-12):
1 - O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de realizar-se partilha judicial, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança.2 - Ao inventário destinado à realização dos fins previstos na segunda parte do número anterior são aplicáveis as disposições das secções subsequentes, com as necessárias adaptações.3 - Pode ainda o inventário destinar-se, nos termos previstos nos artigos 1404.º e seguintes, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.
Dispunha igualmente o artigo 1335.º do referido Diploma Legal que:
1 - Se, na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados.2 - Pode ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número anterior.3 - A requerimento das partes principais, pode o tribunal autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração, em conformidade com o que vier a ser decidido, quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial, quando a viabilidade desta se afigure reduzida ou quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória.4 - Realizada a partilha nos termos do número anterior, serão observadas as cautelas previstas no artigo 1384.º, relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.5 - Havendo interessado nascituro, o inventário é suspenso desde o momento em que se deveria convocar a conferência de interessados até ao nascimento do interessado.
Dispunha também o artigo 1376.º, n.º 1, do indicado Diploma Legal, que:
1 - Se a secretaria verificar, no acto da organização do mapa, que os bens doados, legados ou licitados excedem a quota do respectivo interessado ou a parte disponível do inventariado, lançará no processo uma informação, sob a forma de mapa, indicando o montante do excesso.
Dispunha ainda o artigo 1377.º do mencionado Diploma Legal que:
1 - Os interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas.2 - Se algum interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, a qualquer dos notificados é permitido requerer que as verbas em excesso ou algumas lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão.3 - O licitante pode escolher, de entre as verbas em que licitou, as necessárias para preencher a sua quota, e será notificado para exercer esse direito, nos termos aplicáveis do n.º 2 do artigo anterior.4 - Sendo o requerimento feito por mais de um interessado e não havendo acordo entre eles sobre a adjudicação, decide o juiz, por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar.
Por fim, dispunha o artigo 1378.º desse Diploma Legal que:
1 - Reclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que haja de as pagar, para as depositar.2 - Não sendo efectuado o depósito, podem os requerentes pedir que das verbas destinadas ao devedor lhes sejam adjudicadas, pelo valor constante da informação prevista no artigo 1376.º, as que escolherem e sejam necessárias para preenchimento das suas quotas, contanto que depositem imediatamente a importância das tornas que, por virtude da adjudicação, tenham de pagar. É aplicável neste caso o disposto no n.º 4 do artigo anterior.3 - Podem também os requerentes pedir que, transitada em julgado a sentença, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas.4 - Não sendo reclamado o pagamento, as tornas vencem os juros legais desde a data da sentença de partilhas e os credores podem registar hipoteca legal sobre os bens adjudicados ao devedor ou, quando essa garantia se mostre insuficiente, requerer que sejam tomadas, quanto aos móveis, as cautelas prescritas no artigo 1384.º.
Resulta, assim, da análise dos artigos citados, e no que, na situação em apreço, nos interessa, que o processo de inventário se destina a pôr termo à comunhão hereditária, podendo haver suspensão do processo por determinação judicial se se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas no processo de inventário ou ainda quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata designadamente algumas das questões supra referidas (relativas à admissibilidade do processo ou à definição dos direitos dos interessados diretos na partilha). [...]
[...] para que a decisão que venha a ser proferida no âmbito de um processo judicial seja prejudicial à decisão que se venha a proferir num outro processo, é fundamental que tal decisão ponha fatalmente em causa o fundamento ou a razão de ser deste segundo processo, ou seja, que tome decisão sobre questão essencial para a decisão a tomar neste segundo processo.
No caso em apreciação, a Apelante considera que a decisão que vier a ser proferida no processo onde solicitou a nulidade ou anulação da deliberação social que determinou o aumento do capital social da sociedade, relativamente à qual, em momento anterior, no processo de inventário, havia licitado 4.910 das suas ações, pelo preço de € 65.000,00, interfere e influencia o que se discute no inventário.
Na realidade, no presente processo de inventário, a quota hereditária da Apelante corresponde a 1/6 de 2/3 do valor total da herança, encontrando-se a verba n.º 1 licitada pela Apelante no valor de € 65.000,00. Ora, independentemente das razões que possam ter levado a Apelante a licitar aquela verba por aquele montante, verdade é que a ação que a Apelante considera ser causa prejudicial em relação à licitação que efetuou neste inventário, mesmo a dar-lhe razão, manteria válida e eficaz a pretendida licitação, nada afetando o desenrolar deste processo de inventário. E isto porque a anulação da referida deliberação social poderia aumentar o interesse que a Apelante, atualmente, possui nessa verba, ou, contrariamente, perdendo tal ação, reduzir-lhe o interesse, mas relativamente quer ao valor da sua quota, quer à própria licitação que efetuou, em nada alteraria tais factos, ou seja, o processo de inventário prosseguiria as suas finalidades sem qualquer interferência.
Atente-se que a Apelante não invocou a anulabilidade da licitação que efetuou sobre a verba n.º 1, designadamente nos termos dos artigos 247.º ou 252.º do Código Civil, questão essa que poderia, aí sim, influir neste processo de inventário.
Por tais motivos, é de concordar com a decisão recorrida quando na mesma consta que “ter-se-á que concluir que a causa de pedir e o pedido em questão nos presentes autos de inventário são autónomos, distintos e independentes da causa de pedir e do pedido que terão sido formulados na acção de anulação de deliberação social n.º 1595/20.8T8STR, não interferindo uns com os outros”.
Sempre se dirá ainda que, sendo manifesto que a licitação efetuada pela Apelante de 12 verbas das 14 verbas que constituem o acervo hereditário, é manifestamente excessiva, em face do valor de tais verbas e do valor da sua quota hereditária, pelo que, nos termos do disposto no artigo 1377.º, n.º 3, do anterior Código de Processo Civil, na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12-12, caso efetivamente a Apelante não tenha já intenção de que a verba n.º 1 lhe venha a ser adjudicada, basta optar por outras verbas no preenchimento da sua quota.
É, deste modo, evidente que a causa de pedir e o pedido formulados no processo n.º 1595/20.8T8STR não constituem causa prejudicial relativamente a este processo de inventário, porque a decisão que nesse processo vier a ser proferida [...], em nada prejudicará a decisão a tomar neste processo, mantendo-se este inalterado.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir pela improcedência da pretensão da Apelante."
[MTS]