"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/03/2022

Jurisprudência constitucional (207)


Adopção;
menoridade do adoptado


1. TC 15/2/2022 (132/2022) decidiu o seguinte:

[...] julgar inconstitucional a norma contida no n.º 3 do artigo 1980.º do Código Civil, interpretado no sentido segundo o qual se exclui a possibilidade de adoção de um jovem com idade superior a 18 anos à data de entrada do requerimento do adotante no tribunal, quando se trate de filho do cônjuge do requerente, tratado pelo adotante como filho desde a infância, tendo-se estabelecido entre ambos uma relação de afeto, cuidado e assistência idêntica às que habitualmente se estabelecem entre pai e filho, quando aplicado aos casos em que, à data em que o candidato a adotante apresentou o requerimento inicial junto do organismo de Segurança Social, o adotando fosse menor e não emancipado, atingindo a maioridade no decurso da fase administrativa do processo de adoção [...].

2. O acórdão tem a seguinte declaração de voto:

"Não acompanho o projeto de acórdão quanto à decisão e quanto a parte da fundamentação em que a mesma assenta. Revejo-me, sim, em larga medida, na fundamentação e decisão do Acórdão nº 551/2003, em que, em termos de circunstancialismo fático, foi tratada uma questão algo diferente daquela que é descrita nos presentes autos, mas em que a questão de inconstitucionalidade se resume basicamente ao mesmo. De forma simples e breve, a questão essencial é a de saber se a apreciação do requisito da menoridade por referência ao requerimento que dá início à fase judicial configura uma solução inconstitucional porque desproporcionada – questão que pressupõe aquela outra de saber se o requerimento a que alude o n.º 3 do artigo 1980.º do Código Civil (CC) é o requerimento em que se materializa a comunicação da candidatura à adoção (candidatura que dá início à fase procedimental do processo de adoção) ou se é o requerimento que dá início à fase judicial. Seguidamente exporemos as nossas razões, não sem antes fazer uma sintética referência à factualidade pertinente e assente e à norma legal cuja constitucionalidade é questionada.

Começando por esta última, é este o seu teor: “3 – Pode, no entanto, ser adotado quem, à data do requerimento, tenha menos de 18 anos e não se encontre emancipado quando, desde idade não superior a 15 anos, tenha sido confiado aos adotantes ou a um deles ou quando for filho do cônjuge do adotante”.

Relativamente à factualidade pertinente, importa mencionar que no caso concreto dos autos se trata da adoção do filho da cônjuge do adotante. Filho esse que vive com o requerente da adoção desde os cinco (5) anos de idade. Como igualmente consta dos autos, o requerimento que dá início ao procedimento administrativo foi entregue junto dos competentes serviços da Segurança Social um dia antes de o potencial adotado perfazer os 18 anos, vale por dizer, aproximadamente treze (13) anos depois de o adotante e o filho da cônjuge daquele terem passado a viver em comum.

E, justamente, tendo em conta a sugestão de que estaríamos em face de um caso-limite baseada a mesma na circunstância de o requerimento ter dado entrada nos serviços administrativos competentes apenas um dia antes de o adotando perfazer os dezoito (18) anos – o que levaria à asserção, que à partida poderia causar perplexidade, mencionada no Acórdão n.º 551/2003, de que “um menor a um dia de fazer 18 anos nunca poderá ser adoptado” –, dir-se-á que o adotante teve treze anos para dar início ao processo de adoção. Ideia de omissão de atuação que, por motivos distintos, também está presente no referido aresto: “Aliás, mesmo para tal caso-limite invocado pelo recorrente, aproximando-se a maioridade, e resultando a solução normativa em causa claramente da lei, o adoptante poderá, desde logo, acautelar-se e comunicar com a antecedência necessária a intenção de adoptar aos organismos da segurança social. Ainda quando o não tenha feito, todavia – e para um tal caso-limite, que não é o dos autos, repete-se –, não parece de excluir que a lei precluda totalmente a adopção numa tal situação, impedindo que o requerente proponha imediatamente a acção e comunicar a intenção de adoptar aos organismos competentes, mas protestando juntar o respectivo relatório quando lhe for notificado”. De tudo isto decorre para nós que a ideia de que não houve adoção por uma questão de dias corresponde a uma falsa questão (mesmo deixando de parte a circunstância de que o artigo 1980.º, n.º 3, do CC, se reporta a um outro requerimento, aquele que dá início à fase judicial). Resta dizer que, como possível caso-limite, não nos repugnaria aceitar a viabilidade de um processo de adoção se, tendo sido apresentado atempadamente o devido requerimento junto das entidades administrativas competentes, entretanto o adotando tivesse atingido a maioridade antes do requerimento judicial, quando isto se ficou a dever a atrasos apenas imputáveis àquelas entidades administrativas.

Conforme aflorado supra, temos por certo que o requerimento a que se refere o n.º 3 do artigo 1980.º do CC é o requerimento que dá início à fase judicial do processo de adoção. Para aí chegar, considerou-se, de forma genérica, que a grande maioria dos preceitos que, no CC, regulam a adoção (arts. 1973.º a 1991.º do CC) – e onde está inserido o preceito em causa – dizem respeito à fase judicial. Acresce a isto que da leitura do n.º 3 do artigo 1980.º do CC resulta que o “requerimento” acontece após a fase da confiança administrativa, depois, portanto, da entrega do requerimento que dá início à fase administrativa que ocorre antes. Foi também a esta conclusão que se chegou no já mencionado Acórdão n.º 551/2003.

Significa isto que, para considerar inconstitucional, porque desproporcionada, uma tal solução legislativa, haveria que lhe opor argumentos seguros e sólidos do ponto de vista jurídico, capazes os mesmos de justificar um ‘desvio’ à lei, relativamente a uma questão em que o legislador goza, por força de n.º 7 do artigo 36.º da CRP, de um espaço de conformação razoável (cfr. Acórdão n.º 551/2003: “Neste artigo 36.º, n.º 7, a Constituição impõe autonomamente a disciplina legislativa da adopção, e remete a regulamentação e protecção deste instituto para os «termos da lei», parecendo, pois, com esta «garantia institucional», pressupor que não estará em causa propriamente o direito à constituição de família nos termos do n.º 1, mas, antes, o estabelecimento de um vínculo semelhante ao da filiação”) e em que, quer o CC, quer o diploma que disciplina o regime jurídico do processo de adoção (RJPA - Lei n.º 143/2015, de 08.09) regulam a problemática da exigência de menoridade em termos bastante rigorosos. Vejamos, então, quais são as nossas razões para não acompanhar a solução que fez vencimento.

Antes de tudo, nada impede o legislador ordinário de estabelecer um limite de idade máximo – o requisito de menoridade – para efeitos de condicionar a possibilidade da adoção. Pelo contrário, esse limite de idade máximo afigura-se de pleno sentido se tivermos em mente o propósito da adoção. Que é o de proporcionar um ambiente familiar normal às crianças que, por motivos vários, não o tinham. Isto mesmo é salientado por Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, que sustentam que “Este novo interesse pela adopção corresponde, de resto, a uma modificação radical no espírito do instituto, o qual, centrado antigamente na pessoa do adoptante e ao serviço do seu interesse de assegurar, através da adopção, a perpetuação da família e a transmissão do nome e do património, visa hoje servir sobretudo o interesse dos menores desprovidos de meio familiar normal” – cfr. FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Vol. II, Tomo I, Coimbra, 2006, p. 263).

Retenha-se, ainda, que o artigo 1974.º, n.º 1, do CC, fala no superior interesse da criança. Criança que o mesmo CC entende ser um menor até aos quinze (15) anos de idade (cfr. o n.º 2 do artigo 1890.º: “O adotando deve ter menos de 15 anos à data do requerimento de adoção”). Ou seja, a solução-regra para efeitos de adoção são os quinze (15) anos de idade; só excecionalmente um menor poderá ser adotado até aos dezoito (18 anos) de idade. Argumentos como o da necessidade de assegurar a transmissão do património ou do apelido ou, também, o de consolidar afetos não devem ser considerados como argumentos suficientemente sólidos para afastar a solução escolhida pelo legislador, pois nem sequer correspondem ao propósito da adoção. O qual, por todo o exposto, já nem sequer tem razão de ser no caso relatado nos presentes autos em que o potencial adotado já completou os dezoito anos antes do requerimento mencionado no n.º 3 do artigo 1980.º do CC. Igualmente se rejeita a ideia de haver a necessidade ou a conveniência de assegurar um tratamento idêntico entre filhos e enteados (meios irmãos entre si), igualmente alheio à figura da adoção. Diga-se, em abono da verdade, que a solução legislativa em apreciação não impede que venha a acontecer esse tratamento jurídico idêntico entre meios irmãos – apenas o atraso no início do processo de adoção, não imputável a terceiros, o impediu. Além de que não existe propriamente um direito a ser tratado por igual com essa caracterização. O que nos leva para uma outra questão que também é importante esclarecer. Não está constitucionalmente previsto um direito a ser adotado, nem sequer como refração do direito a constituir família, consagrado no n.º 1 do artigo 36.º da CRP. O n.º 7 deste dispositivo trata autonomamente a questão da adoção e nele se consagra de forma expressa uma garantia institucional e não um direito fundamental. Ora, para Canotilho, “Sob o ponto de vista da protecção jurídica constitucional, as garantias institucionais não garantem aos particulares posições subjectivas autónomas e daí a inaplicabilidade do regime dos direitos, liberdades e garantias” (cfr. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, p. 397). No Acórdão n.º 551/2003 foi rejeitada a ideia de que a constituição do vínculo de adoção se sustenta no direito a constituir família do n.º 1 do artigo 36.º da CRP (aí se pode ler: “Por outro lado, a adopção foi prevista autonomamente, pelo legislador constitucional no n.º 7 do artigo 36.º (assim, também no citado Acórdão n.º 320/2000 se considerou que o parâmetro constitucional indicado para sindicar a norma em causa era o artigo 36.º, n.º 7, e não o do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição, invocado pelos recorrentes”). Acresce a isto que, partindo do princípio de que, segundo cremos (convicção que corresponde ao entendimento da generalidade da doutrina), os sujeitos ativos deste direito de constituir família, tal como presentemente consagrado na Constituição, são os pais e não os filhos, a haver direito com base no n.º 1 do preceito em apreço será o direito a adotar e não, também, o direito a ser adotado. Mas, ainda que se pudesse admitir que haveria um direito a ser adotado como uma das concretizações ou dimensões do direito a constituir família, acompanha-se, uma vez mais, aquilo que foi dito no Acórdão n.º 551/2003 sobre a não existência de uma qualquer restrição inconstitucional (não, certamente, da restrição do respetivo núcleo essencial). Atentemos no que aí se disse:

“8. Seja, porém, como for quanto a este enquadramento constitucional, não pode sequer dizer‑se que resulta da norma em causa verdadeiramente uma restrição ao direito a constituir família.

Na verdade, o legislador – na sequência, aliás, de uma solução tradicional, que vem já da redacção originária do Código Civil – limita o instituto da adopção a menores, por entender que é em relação a eles que a constituição de um vínculo semelhante ao da filiação se justifica, e pode ser necessária e benéfica para o adoptando. No presente caso, a dimensão normativa em causa não é, porém, impugnada na medida em que estabelece o requisito da menoridade – cuja conformidade constitucional o recorrente não questiona –, mas apenas na medida em que tal requisito não deve ser aferido logo no momento do início do procedimento administrativo que tem de anteceder a adopção, sem cuja conclusão se não pode iniciar a acção judicial.

Ora, da exigência da menoridade no momento da propositura da acção judicial, e não no do início do procedimento administrativo – a comunicação da intenção de adoptar aos organismos competentes – poderá resultar, no máximo, uma curta dilação, designadamente nos casos em que, como o presente, se trata da adopção de filho do cônjuge do adoptante, em relação ao qual o período de pré-adopção não excede três meses. Tal curta dilação não configura, certamente, uma solução constitucionalmente inadmissível, mormente quando, por um lado, ela resulta da necessidade de averiguar, em inquérito próprio, a personalidade e saúde do adoptante e do adoptando, a idoneidade daquele para criar e educar este, “a situação familiar e económica do adoptante e as razões determinantes do pedido de adopção”, e quando, por outro lado, o candidato a adoptante pode precaver-se, perante o texto claro da lei – que exige a menoridade à data da propositura da acção –, e comunicar aos organismos da segurança social a intenção de adoptar com a devida antecedência”.

A argumentação expendida é transponível para os presentes autos, esvaziando, segundo cremos, o argumento do desrespeito do terceiro teste de proporcionalidade pela norma que impõe a verificação do requisito de menoridade no momento da apresentação do requerimento judicial. Com efeito, e por um lado, a fase administrativa-instrutória é sempre necessária, mesmo quando o potencial adotado, filho do cônjuge, já vive com o requerente de adoção. Por outro lado, o legislador esteve atento a este particular circunstancialismo, abreviando o período de pré-adoção para três meses. Por último, a exigência da menoridade no início da fase administrativa não impede o desencadear atempado do processo de adoção.

Por fim, diga-se que admitimos que critérios emocionais, como a compaixão, possam ajudar o julgador na busca de uma solução jurídica justa tendo em consideração o circunstancialismo do caso concreto, fazendo-se, para isso, intervir juízos de equidade (sendo que, sublinha-se, os pressupostos do artigo 4.º do CC não se aplicam ao caso dos autos). Já temos dificuldade em aceitar que o controlo da constitucionalidade, ainda que no âmbito de uma fiscalização concreta, possa servir para determinar ou impor um ‘desvio à norma’, enquanto derradeira esperança de permitir a adoção de um maior de 18 anos, em evidente contradição com aquela que é a solução legislativa, e com o objetivo de garantir uma suposta necessidade ou conveniência de assegurar um igual, e por isso, justo tratamento (em termos jurídicos ou com consequências jurídicas, pois a igualdade de afetos não pode ser imposta por lei) dos filhos adotados e dos não adotados. Uma tal possibilidade teria como pressuposto que o enteado tenha direito ao mesmo tratamento jurídico dos filhos biológicos servindo a adoção para esse fim, o que, manifestamente não corresponde ao propósito do instituto em causa.

Em conclusão, e em primeiro lugar, diríamos que a solução jurídica que se impugna – por se considerar que a interpretação segundo a qual a menoridade do adotando deve aferir-se por referência à data do início da fase judicial – não deixa de garantir plenamente o propósito da adoção e, pelos motivos expostos, não se mostra desproporcionada, qualquer que seja a dimensão deste princípio que se tome em consideração.

Em segundo lugar, o circunstancialismo próprio dos presentes autos não justifica que se considere estarmos perante um caso-limite com o intuito de proporcionar um tratamento jurídico excecional ao potencial adotado."

[MTS]