"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/03/2022

Jurisprudência 2021 (164)

 
Obrigação de indemnização;
poderes do tribunal*

 
1. O sumário de RP 14/7/2021 (93/16.9T8AMT.P2) é o seguinte:

I - O tribunal pode dar como provados factos não essenciais não alegados se os mesmos se enquadrarem naqueles referidos no artigo 5.º, n.º 2, do C. P. C., entre os quais os instrumentais, complementares e concretizadores.

II - Um facto não alegado (acordo para cedência de parcela de imóvel dado pelo marido) numa ação de reivindicação de propriedade não se enquadra em nenhuma daquelas categorias quando que está em causa o consentimento alegadamente prestado por outras pessoas que não o indicado marido.

III - Uma expropriação de facto de uma parcela de terreno por parte de um município, sem cumprimento de qualquer regra legal e sem consentimento dos titulares, não deve beneficiar do princípio da intangibilidade da obra pública.

IV - A diminuta importância da área da parcela ocupada, o seu pequeno valor e o facto de as obras que foram realizadas pelo município permitirem uma melhor e mais segura circulação automóvel e de peões, impede o direito à restituição in natura da parcela por haver abuso de direito.

V - Nessa situação, tendo o Réu município alegado a impossibilidade de restituição natural e oferecendo um valor em reconvenção para sua aquisição, pode interpretar-se juridicamente esse pedido também como querendo proceder à restituição em espécie.

VI - Fornecendo os autos informação suficiente para tal restituição em espécie (valor da parcela atendendo à sua área e preço por m2), pode condenar-se o Réu município a restituir em espécie, pagando esse valor.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Assentes os factos que sustentam o litígio, pensamos que se pode concluir que o Réu município invadiu o terreno pertencente à herança aberta por óbito de D… e a E… (pais da Autora) com o intuito de realizar obras de beneficiação de uma estrada (factos provados 12 e 13).

Para o poder fazer, ou celebrava algum tipo de negócio que sustentasse essa ocupação (compra e venda, doação, …) que lhe permitisse adquirir a propriedade do terreno (ou parte dele) ou então teria de recorrer à requisição ou expropriação da parcela que julgasse necessária (artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Não se prova qualquer tipo de negócio celebrado entre o indicado Réu e os co-titulares do direito de propriedade, nem com os primitivos donos do imóvel (pais da Autora); e também não há prova de nenhum ato expropriativo, por mais ténue que pudesse ter sido.

Daí que ocorreu uma invasão da propriedade privada sem estar coberta por qualquer manto de licitude. No fundo, o Réu município praticou atos sobre uma propriedade privada para lograr atingir os seus intentos, sem deter qualquer título que o legitimasse a tal, a saber, aquisição da propriedade da parcela em causa, senão a título negocial, pelo menos com a necessária prévia declaração de utilidade pública que permitisse a expropriação (artigo 13.º, do Código das Expropriações). [...]

Não se questiona no recurso que a parcela onde foram realizadas as obras fazia parte de imóvel pertencente aos herdeiros daquelas duas pessoas acima referidas, o que foi declarado na sentença.[...]

O que se coloca em causa é a restituição in natura dessa parcela, ou melhor, a decisão de que não é possível essa restituição, restando a possibilidade de uma restituição sucedânea. [...]

Neste caso, impedir a restituição in natura, mesmo ocorrendo violação grave dos interesses dos particulares, por existir uma obra que serve os interesses públicos, seria, além de uma violação da Constituição da República Portuguesa como acima referido, premiar um ato ilícito da mesma administração e criar a ideia de que, sempre que atuasse, nada mais restaria ao particular do que se ver desapossado materialmente do que lhe pertencia. [...]

Mesmo a questão suscitada pelo Réu Município, em sede de reconvenção, de pagar o valor que a parcela teria antes da realização das obras não pode ser judicialmente determinado tal como pedido e nesta vertente. Na verdade, o que está em causa, numa primeira abordagem, é o recurso à acessão industrial imobiliária, prevista no artigo 1340.º, n.º 1, do C. C. (se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, …, e o valor que as obras, …tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, ….).

Aqui exige-se a boa-fé do autor da obra a qual consiste ou no desconhecimento, por parte do autor da obra, de que o terreno era alheio ou a atuação com base na autorização do dono do terreno – nºs. 1 e 4, do mesmo artigo -.

Ora, claramente que o Réu Município sabia que o terreno era alheio e não houve consentimento nem dos donos nem dos seus herdeiros (aqui conforme artigo 2091.º, n.º 1, do C. C.) pelo que não se preenche o requisito da boa-fé, sendo impedido o recurso à indicada acessão. [...]

As obras que foram realizadas permitem uma melhor circulação quer dos peões (foram criados passeios para poderem caminharem ao longo da estrada) quer dos automóveis pois também se visou alargar a curva, assim se obtendo uma maior segurança coletiva para pessoas e bens.

Com a reposição do terreno como se encontrava antes da realização das obras, os peões ficariam impedidos de prosseguirem no passeio, tendo que utilizar a faixa de rodagem para o efeito (facto provado 38).

O benefício para a colectividade, com as obras realizadas, na nossa visão, supera em muito o prejuízo causado ao particular com a não restituição in natura da parcela de terreno.

Pensamos que o comum dos cidadãos não entenderia que para ressarcir o prejuízo sofrido com a atuação da edilidade municipal, consubstanciado em menos de 2% do total do imóvel e sem uso provado dessa parte, se destruísse uma obra que tem utilidade pública notória, assim se prejudicando a colectividade, sem se perceber o efetivo ganho dos donos da parcela.

Note-se que a parcela, tendo por base o preço por m2 que se provou (5 EUR – facto 37), terá o valor de 688,50 EUR, enquanto que, para se destruir o caminho e muro que o ladeia, se teriam de despender 6 350 EUR, ou seja, o valor da parcela revela ser cerca de 10,8% do valor das obras a efetuar, o que, para nós, reforça a ideia de que não se deve permitir que, para tão dispares valores, se permita a efetivação daquele que tem escassa importância.

O direito dos herdeiros ficará igualmente ressarcido se a restituição for por sucedâneo, evitando prejuízos monetários e mantendo a segurança de todos os que passam naquele local.

Daí que entendamos que, atenta a escassa importância do que é pedido em comparação com as consequências que resultariam da restituição natural, é abusivo o exercício desse direito de restituição in natura por exceder os limites da boa-fé e o fim económico desse direito.

Assim, temos que a parcela em questão não foi adquirida de qualquer modo pelo Réu município, pelo que a sua propriedade se mantém na herança aberta por óbito das duas pessoas acima referidas.

E a sua restituição pela ocupação ilegal por parte do mesmo Réu tem de ser efetuada em espécie, ou seja, pelo respetivo valor.

A Autora não formulou este pedido, nem a título subsidiário pelo que se poderia pensar que não se podia condenar o mesmo Réu a pagar qualquer valor – artigo 609.º, n.º 1, do C. P. C. -.

Vejamos.

Em primeiro lugar, o Réu alegou que não era possível restituir a parcela por existirem diversos óbices, incluindo abuso de direito (artigos 22.º e seguintes da contestação) e alegou inclusivamente a excessiva onerosidade da restituição natural (artigo 52.º a 55.º e 58.º, da mesma peça processual).

O que nós, em sede desta decisão entendemos, é que há abuso de direito na atuação da Autora, também atendendo à desproporção de valores existente entre valor da parcela e obras a realizar (e não por o custo das obras ser demasiado oneroso para o Réu); mas o certo é que se concluiu pela impossibilidade de restituição in natura e o Réu pede que se atenda a essa impossibilidade, propondo-se pagar um valor equivalente a tal restituição.

E, em segundo lugar, para nós, estão preenchidas as condições necessárias para se poder, nestes autos, decidir da restituição em espécie nos termos do artigo 566.º, n.º 1, do C. C. pois:

por prova da alegação do Réu, concluiu-se que não era possível a restituição natural;

há pedido formulado pelo Réu no sentido de pagar o valor sucedâneo, assim se podendo converter a obrigação de restituição natural.

É certo que pode não ter sido esta a concreta finalidade jurídica pretendida pelo Réu/reconvinte, que visaria a aquisição da propriedade com o pagamento de uma quantia; mas também é certo que o pedido contém a manifestação de se querer pagar um valor atribuído à parcela pelo que, juridicamente, esse intento também pode ser analisado sob um prisma ligeiramente diferente – em vez de adquirir a propriedade, o pagamento encerra a possibilidade de restituição do imóvel in natura que também é o que o Réu pretende, como já mencionamos -, procedendo em parte esse pedido.

Daí que a condenação do Réu a pagar um valor pela restituição da parcela não viola o princípio do pedido, não sendo uma decisão oficiosa do tribunal; a Autora pediu a restituição e a parte contrária demonstrou que não era possível e pede que se atribua um valor equivalente a essa restituição só que, em vez de o adquirir, «só» consegue pagar o respetivo valor sem o adquirir.[...]

Se os autos fornecerem os elementos necessários para, face ao alegado, se decidir pela restituição em espécie, pode o tribunal apreciar essa questão. E, na nossa opinião, face ao que foi carreado para o processo, pode decidir-se por essa restituição em espécie.

A Autora alegou o tipo de intervenção que tinha sido efetuada na parcela de terreno no sentido do que tinha sido ocupado e destruído e logrou-se provar qual a área que foi ocupada, sendo que não se provou que determinado tipo de bens tinham sido destruídos (vides e esteios).

Sabemos o valor por m2 do terreno (5 EUR) e a Autora, que já pedia a restituição natural, aceita a restituição em espécie por esse valor tal como pede no recurso (e certo é que o 1.º réu deduziu o correspondente pedido reconvencional sob a alínea c) da sua reconvenção, pedido esse que deve ser julgado procedente, e ser o réu condenado no pagamento da correspondente indemnização – alegação na parte final do recurso e conclusão yy ) -.

Mas mesmo que não soubéssemos que a Autora/recorrente aceita expressamente o pagamento em sucedâneo, este podia ser decidido, como já mencionamos.

Face aos elementos factuais de que se dispõe nos autos, pode restituir-se em espécie a parcela à herança condenando o Réu município a pagar-lhe a quantia de 688,50 EUR (não se pode condenar no pagamento de juros por não serem pedidos mas essa situação não invalida que os mesmos sejam devidos após a prolação da sentença, conforme resulta do artigo 703.º, n.º 2, do C. P. C. e do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 9/15, de 14/05/2015, D. R. n.º 121/2015, I, de 24/06/2015 [...]).

Conclui-se assim que a decisão recorrida deve ser alterada nos seguintes termos:

1). Mantém-se a declaração da propriedade do prédio rústico na herança aberta por óbito de D… e E…;

2). Condena-se o Réu Município a restituir à Autora e intervenientes a parcela de terreno supra identificada, em espécie, com o pagamento de 688,50 EUR.

3). Absolve-se a Autora e intervenientes da parte restante do pedido reconvencional.


3. [Comentário] a) A Autora pediu que:

se declare que o prédio descrito no artigo 3.º integra a herança aberta por óbito de D… e E…;

se declare que a faixa de terreno descrita no artigo 27.º faz parte integrante do prédio referido na alínea precedente;

as Rés sejam condenadas a reconhecer o referido nas alíneas precedentes e a restituir à herança a referida faixa de terreno;

as Rés sejam ainda condenadas a repor tal faixa no estado anterior à ocupação, a saber, à colocação de vides novas e à recolocação dos esteios referidos no seu local primitivo, à remoção da berma e à reposição natural do terreno sobre o qual assenta, à demolição do muro e à reconstrução de rampa;

se condenem as Rés a absterem-se de ocupar ou fazer uso por qualquer forma da indicada faixa de terreno.


O Réu, em reconvenção, pediu que

se declare que é dono da faixa de terreno em causa e que a Autora e herança o reconheçam;
 
se for necessário pagar pela aquisição de propriedade, deve o preço ser fixado em 550,80 EUR.

A RP condenou o Réu no seguinte:

1). Mantém-se a declaração da propriedade do prédio rústico na herança aberta por óbito de D… e E…; 
 
2). Condena-se o Réu Município a restituir à Autora e intervenientes a parcela de terreno supra identificada, em espécie, com o pagamento de 688,50 EUR.
 
2.1). Absolve-se a Ré freguesia de … dos pedidos. [...] 
 
3. Absolve-se a Autora e intervenientes da parte restante do pedido reconvencional.

 b)  O iter decisório da RP não parece muito claro. A RP argumentou o seguinte:
 
"[...] a condenação do Réu a pagar um valor pela restituição da parcela não viola o princípio do pedido, não sendo uma decisão oficiosa do tribunal; a Autora pediu a restituição e a parte contrária demonstrou que não era possível e pede que se atribua um valor equivalente a essa restituição só que, em vez de o adquirir, «só» consegue pagar o respetivo valor sem o adquirir. 
 
Se os autos fornecerem os elementos necessários para, face ao alegado, se decidir pela restituição em espécie, pode o tribunal apreciar essa questão. E, na nossa opinião, face ao que foi carreado para o processo, pode decidir-se por essa restituição em espécie."
 
Se a RP entende que, "atenta a escassa importância do que é pedido em comparação com as consequências que resultariam da restituição natural, é abusivo o exercício desse direito de restituição in natura por exceder os limites da boa-fé e o fim económico desse direito", então teria sido muito mais simples considerar que o pedido de restituição natural formulado pela Autora não podia ser considerado procedente atendendo ao disposto no art. 566.º, n.º 1, CC.

Só que, salvo melhor opinião, isto situa-se no plano estrito da responsabilidade civil e nada tem a ver com a restituição, "em espécie", da parcela de terreno. No fundo, seria tudo simples: a Autora permaneceria (como permaneceu) proprietária da parcela do terreno, o Réu seria condenado a pagar uma indemnização à Autora (e não a restituir, "em espécie", a parcela de terreno) e o pedido reconvencional seria totalmente (e não apenas em parte) considerado improcedente.

MTS